Botões, controles e comandos
* Por Amilcar Neves
Gabriel não é um cara desta década, a segunda (já!) do século 21. Apesar do seu ano e meio incompleto, Gabriel nasceu na década passada. Há, pois, no mundo, gente muito mais moderna do que ele. Se ele fosse um dispositivo eletrônico qualquer, um sistema ou programa (também chamado software) de computador, um aplicativo dessa coisa antiquíssima e em vias de extinção a que, muito tempo atrás, se deu o nome pomposo e restritivo de telefone celular, sabiamente abreviado, nos dias de glória do dispositivo, para celular, apenas (há hoje muitos equipamentos dessa família que fazem milagres sem conta e maravilhas sem que se as imagine mas, talvez por esquecimento ou distração, não fazem ligações telefônicas ou não são usados para tal fim (na verdade usam o skype e outros recursos virtuais que, além de agregarem imagem em movimento e transferência de quaisquer tipos de arquivo, passam olimpicamente ao largo das velhas, superadas e vetustas companhias telefônicas que, na ânsia de se manterem vivas e rentáveis, autobatizaram-se de operadoras, algo supostamente muito mais nobre e elevado (desde que lucrativo, obviamente) do que uma reles companhia qualquer prestadora de serviços quaisquer.
Então: se o Gabriel, um aninho apenas completado em janeiro passado, já lá tão longe no tempo e nas nossas preocupações (qual era mesmo o nosso grande problema, o nosso enorme desafio, a nossa grandiosa dificuldade, o nosso monumental, insuperável, pesadelo no começo deste ano da graça de 2011 DC?), se ele fosse uma qualquer dessas bugigangas eletrônicas, tecnológicas, inúteis para o progresso humano e social do ser humano e social, ou outro miraculoso dispositivo de extraordinário sucesso relâmpago (um relâmpago é súbito, intenso e fugaz) que certamente surgirá no mercado no intervalo compreendido entre este momento em que escrevo o presente texto (à mão, com caneta e papel, lembram desses arcaicos instrumentos de escrita?, nas cadeiras da Ressacada, apenas para deixar aqui um registro romântico e sentimental) e esse momento em que lês o passado texto (praticamente o mesmo, embora concebido e degustado em situações, condições e estados de espírito totalmente diversos).
Assim: caso o Gabriel fosse qualquer dessas coisas efêmeras cada vez mais, ele já teria que ter sido descartado por obsolescência. No entanto, apesar disso tudo, ele tem a missão de testemunhar o rompimento do século 22.
O que acontece é que o Gabriel já está mesmo superado. Hoje espera-se muito mais, outras habilidades mais condizentes com as exigências e expectativas da vida, dos novos seres humanos, dos modelos-tipo da segunda década do corrente século, o qual corre à velocidade, não dos tempos presentes, mas da angústia existencial, cada vez mais acelerada e desnorteada, da vida pós-moderna, dessa atroz pós-vida.
Desde a mais tenra idade Gabriel foi fissurado por botões, teclas, chaves, interruptores e controles remotos. Desde cedo ele percebeu que, acionando-os, ele muda o mundo em redor: a televisão fica com chuvisco, o computador é instantaneamente desligado no meio de um trabalho importante, o volume do som sobe a alturas insuportáveis.
O que o está tornando obsoleto é o fato de que, numa atitude de resistência, Gabriel está sendo educado a perceber que existem comandos, que estes é que definem as funções dos botões e dos controles, e que os comandos é que devem ser vigiados e usados pelas pessoas. E não ao contrário.
Isto é muito grave.
• Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.
* Por Amilcar Neves
Gabriel não é um cara desta década, a segunda (já!) do século 21. Apesar do seu ano e meio incompleto, Gabriel nasceu na década passada. Há, pois, no mundo, gente muito mais moderna do que ele. Se ele fosse um dispositivo eletrônico qualquer, um sistema ou programa (também chamado software) de computador, um aplicativo dessa coisa antiquíssima e em vias de extinção a que, muito tempo atrás, se deu o nome pomposo e restritivo de telefone celular, sabiamente abreviado, nos dias de glória do dispositivo, para celular, apenas (há hoje muitos equipamentos dessa família que fazem milagres sem conta e maravilhas sem que se as imagine mas, talvez por esquecimento ou distração, não fazem ligações telefônicas ou não são usados para tal fim (na verdade usam o skype e outros recursos virtuais que, além de agregarem imagem em movimento e transferência de quaisquer tipos de arquivo, passam olimpicamente ao largo das velhas, superadas e vetustas companhias telefônicas que, na ânsia de se manterem vivas e rentáveis, autobatizaram-se de operadoras, algo supostamente muito mais nobre e elevado (desde que lucrativo, obviamente) do que uma reles companhia qualquer prestadora de serviços quaisquer.
Então: se o Gabriel, um aninho apenas completado em janeiro passado, já lá tão longe no tempo e nas nossas preocupações (qual era mesmo o nosso grande problema, o nosso enorme desafio, a nossa grandiosa dificuldade, o nosso monumental, insuperável, pesadelo no começo deste ano da graça de 2011 DC?), se ele fosse uma qualquer dessas bugigangas eletrônicas, tecnológicas, inúteis para o progresso humano e social do ser humano e social, ou outro miraculoso dispositivo de extraordinário sucesso relâmpago (um relâmpago é súbito, intenso e fugaz) que certamente surgirá no mercado no intervalo compreendido entre este momento em que escrevo o presente texto (à mão, com caneta e papel, lembram desses arcaicos instrumentos de escrita?, nas cadeiras da Ressacada, apenas para deixar aqui um registro romântico e sentimental) e esse momento em que lês o passado texto (praticamente o mesmo, embora concebido e degustado em situações, condições e estados de espírito totalmente diversos).
Assim: caso o Gabriel fosse qualquer dessas coisas efêmeras cada vez mais, ele já teria que ter sido descartado por obsolescência. No entanto, apesar disso tudo, ele tem a missão de testemunhar o rompimento do século 22.
O que acontece é que o Gabriel já está mesmo superado. Hoje espera-se muito mais, outras habilidades mais condizentes com as exigências e expectativas da vida, dos novos seres humanos, dos modelos-tipo da segunda década do corrente século, o qual corre à velocidade, não dos tempos presentes, mas da angústia existencial, cada vez mais acelerada e desnorteada, da vida pós-moderna, dessa atroz pós-vida.
Desde a mais tenra idade Gabriel foi fissurado por botões, teclas, chaves, interruptores e controles remotos. Desde cedo ele percebeu que, acionando-os, ele muda o mundo em redor: a televisão fica com chuvisco, o computador é instantaneamente desligado no meio de um trabalho importante, o volume do som sobe a alturas insuportáveis.
O que o está tornando obsoleto é o fato de que, numa atitude de resistência, Gabriel está sendo educado a perceber que existem comandos, que estes é que definem as funções dos botões e dos controles, e que os comandos é que devem ser vigiados e usados pelas pessoas. E não ao contrário.
Isto é muito grave.
• Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.
Que gracinha de Gabriel, obsoleto aos 18 meses, e com a missão de viver 90 anos. Notável e original maneira de ver o descarte de tecnologias.
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