Coisas
tenebrosas
* Por
Urda Alice Klueger
A
minha infância foi muito marcada pelo terror semanal, às vezes até
diário, emanado pela Igreja Católica pré-Concílio Vaticano II.
Não era nada agradável para uma criança de 5, de 8, de 10 anos
ouvir, em quase todos os domingos, o Frei João, nosso padre no
Bairro Garcia, em Blumenau, falar sobre o fogo eterno do inferno,
sobre o sofrimento requintado e interminável destinado às pessoas
que não conquistavam o céu, sobre o Grande Inimigo chamado Diabo.
Havia
uma alternativa para não se ir para o inferno, é claro: a Igreja
Católica. E ela nos impingia quase o tempo todo a imagem de um Deus
sofredor, um Jesus Cristo torturado, pregado a uma cruz, retorcido de
sofrimento. Brevemente, em tempo de Páscoa, falava-se de Jesus
Cristo ressuscitado, mas o efeito era pequeno, depois de toda uma
Quaresma a se curtir com volúpia os atrozes sofrimentos do Filho de
Deus. Para que gente comum, como nós, pudesse um dia ter acesso ao
maravilhoso céu que Jesus Cristo um dia conquistara para nós, havia
que se sofrer nesta vida. E os heróis que a Igreja Católica nos
apresentava eram os mártires da fé, pessoas que tinham sofrido
horrores sem abjurarem a sua fé. O mais popular era São Sebastião,
cuja imagem eu podia ver na Igreja, bonito moço com o corpo todo
trespassado de flechas. O que mais terror me causava era São
Lourenço, que fora assado numa grelha para que desistisse do
cristianismo. São Lourenço, além de não desistir, ainda avisava
aos seus algozes quando estava bem assado de um lado, para que o
virassem. Com certeza, não eram aquelas imagens adequadas a uma
criança.
É
claro que com todo aquele clima de terror, eu queria ir para o céu,
embora achasse o céu bem enfadonho, com todo o mundo cantando e
rezando eternamente, sem tempo para brincar. Mesmo muito pequena, eu
já arranjara autonomia para separar as coisas, e tinha
compartimentos estanques para a vida religiosa e para a vida real, e
a vida real era ótima, e nela eu podia imaginar milhares de
histórias lindas, todas sem sofrimento, todas cheias da mais pura
felicidade. E ainda era muito pequena quando o Diabo foi
personificado no mundo em que vivia: passou a chamar-se Comunismo.
Fez
furor, naqueles tempos, o livro de um padre católico que fora preso
e torturado na China comunista. Eu já fora alfabetizada e li o
livro, e aquele padre passou a representar o ideal moderno de mártir
da fé. As pessoas faziam a maior cara de piedade ao falar nos
sofrimentos do padre, mas eu tinha a minha secreta opinião pessoal:
não gostava nada do sofrimento, principalmente do sofrimento físico.
E como, dia a dia se avolumava no Brasil a ideia de que o Comunismo
era uma grande ameaça, que o Comunismo poderia tomar conta do nosso
País, aumentava o meu pavor de que, chegando o Comunismo, eu iria
ser torturada. A Igreja Católica botava a maior lenha na fogueira
contra o Comunismo, e a opinião geral era de que chegaria a haver
uma guerra.
Sempre
fui muito prática. Com a ideia da guerra comunista achei logo uma
solução para não ser torturada: quando a guerra começasse, quando
os comunistas chegassem, eu iria me esconder. Vivia num vale cercado
de morros ainda cobertos de mata nativa, não seria difícil me
esconder. Eu levaria para o morro um caixote grande, para dormir
dentro, garrafas com água, uma boa quantidade de farinha de
mandioca, já que tal farinha poderia ser comida sem ser cozida.
Ficaria lá até a guerra passar e os comunistas irem embora, e,
assim, não seria torturada. Só que eu não sabia quanto tempo
demorava uma guerra: dois dias, cinco dias? Fui perguntar isso,
então, à minha prima Hélia, que já era moça de ginásio, a mais
sabida de todos nós. Quanto tempo durava uma guerra? Fiquei arrasada
com a resposta de Hélia: a última grande guerra durara mais de
quatro anos! Como poderia levar para um morro água e farinha para
tanto tempo? Prática como sempre fui, pensei numa alternativa: virar
comunista para escapar à tortura. Só que aí dava com a cara na
parede: virar comunista significava ir mais tarde para o inferno,
para uma tortura maior. O que fazer?
Foi
tenebroso o que a Igreja Católica fez com as crianças do meu tempo.
Foi tenebroso o que as autoridades fizeram, permitindo que se
disseminasse entre nossa ignorância tal medo do comunismo. Tive que
viver muito, tive que ir a um país comunista (Cuba), para ver o
quanto tinham nos mentido. Eu amei Cuba, até escrevi um livro sobre
a minha viagem (Recordações de amar em Cuba II) – as
pessoas em Cuba são felizes e cultas, muito mais cultas que nós,
muito mais cultas que um europeu comum. Encheram a minha infância de
terror injustificado, e tenho, ainda, laivos de mágoa por terem me
mentido assim.
Blumenau,
02 de junho de 1996.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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