domingo, 23 de julho de 2017

Paris


* Por Laís de Castro

Era uma clara sexta-feira de manhã quando tudo começou. Se algum dos presentes adivinhasse o furacão que se desencadearia a partir de então, imagino, fugiria de lá antes que houvesse sido dado o pontapé inicial. Que também foi involuntário. Do jeito que ela vinha guiando aquele carro, devagar, não era para atropelar o cara. E, na velocidade que foi atropelado, ele não tinha nada que morrer depois de dois dias, com a cara toda arrebentada, só porque bateu no pára-brisa. Não havia ninguém que a condenasse, mas como sempre acontece, culpa-se quem não é culpado e restam aquelas hordas de criminosos soltos por aí. Não digo por revolta, mas, caramba. Uma mãe de família, dedicada, lutadora, que atropela um andarilho a 20 por hora, tem que ser processada? Tudo bem, é a lei, mas que lei é cumprida quando se trata de, por exemplo, um ricaço? Não tem aquela coisa de arquivar tudo por falta de provas? Não tem? Ah, tem, se tem.

Todo mundo que está aqui, velando essa moça, que é assim que acaba esta história e eu não consigo deixar de contar o fim antes do começo. A gente sabe que tem um monte de gente que alimenta contas com milhões de dólares no estrangeiro que se livra de cada crimão. Fico revoltada e me embaralho, mas não é por isso que conto o fim da história. Eu conto porque não tenho nenhuma vocação para escrever livros de detetives e nem para ler, porque depois de uns três capítulos, leio o último para saber quem é o assassino. E sempre erro. Nunca consegui ganhar um jogo de detetive, aquele em que dois grupos disputam quem descobre antes o criminoso. Nunca tive nenhum tipo de dedução lógica, sempre errei. Por isso já fui contando o fim da história.

Uma pena isso, porque acaba com o suspense, mas tudo já é tão intricado que não há suspense que resista. Bem, depois daquele atropelamento começaram a acontecer fatos estúrdios e bizarros, como, por exemplo, aparecer uma camisa velha e ensangüentada na casa dela.

Sendo sua melhor amiga fui chamada para testemunhar o fato, ela me falou em tom de descrença e repugnância que desde a partida do marido, nunca tinha havido uma camisa de homem por lá. Até porque tem duas filhas. Diga-se de passagem, partida desta para melhor, o marido tinha morrido há poucos meses.

Depois veio a perna de uma das meninas, quebrada no tombo da bicicleta, o processo pelo atropelamento, a outra filha reprovada na escola, algo também nunca dantes navegado. Não há um sem dois e nem dois sem três, diz o ditado popular, mas ali não haveria seis sem sete, sete sem oito.

Quando o pai dela morreu, numa cidade distante três horas (de avião) e a passagem foi comprada em prestações para ir ao enterro as coisas ainda não tinham atingido o limite do insuportável. As pessoas compareciam, ouviam, falavam, havia presenças amigas na casa. Isso foi desaparecendo na mesma medida em que o terror foi aumentando.

O raio na pia da cozinha que mandou a empregada para o hospital foi pouco diante do caminhão de lixo que derrubou o muro e matou o cachorro. O silêncio dos vizinhos era também pouco considerando os olhares de espanto de todo o vilarejo. Espanto, essa é a palavra. Todos estavam tão apopléticos diante dos fatos, que ninguém mais reagia. Onde ela pisava, parecia não nascer mais grama. A mesa em que ela jantava com as crianças, no restaurante, ficava vazia por uma semana e só voltava a ser ocupada por algum incauto vendedor vindo de fora que, acreditava-se, então, “limpava” a maldição e liberava o local para novos clientes.

Distraída, ela não tinha notado ainda este tipo de comportamento. Quando apareceu com o carro novo, todos se entreolharam, que nova desgraça viria agora? Três meses se passaram na mais perfeita ordem e na mais perfeita paz, porque, como diz outro ditado, não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe. Isso é bom de ouvir. Se o fim de semana acaba, sabemos que a semana de labuta também vai ser vencida e assim por diante.

Como um chope vem depois do outro, um olhar depois do outro, depois do fim vem o recomeço e assim, recomeçaram as desditas desta pobre mulher que está aqui agora prestes a ser levada à cremação porque deixou por escrito essa vontade.

Um dia, conversando, ela também me disse isso: “Quero ser cremada, nada de ficar lá fechada, quero minhas cinzas voando por aí, assombrando todo mundo o tempo todo e é isso que eu temo que possa acontecer e que esta cidadezinha vire uma cidade fantasma, pois ela já anda tomada pelo medo e ninguém mais sai à noite, a não ser os bem jovens, que não têm vocação para ver televisão e nem tino para entender temores”.

Da segunda vez que começou aquela onda de arrebatação negativa, as manifestações eram diferentes, não havia mais sangue e nem ossos quebrados, mas prejuízos do tipo contas de telefone de duzentos mil reais e avisos de que o imposto de renda tinha encontrado um débito de quatro anos atrás. Sem contar a explosão, sem vítimas, do motor da máquina de lavar roupa e outros pequenos pesadelos que levam as pessoas à loucura. Parecia haver um boicote organizado pelo destino contra ela, pois a cada semana uma pedra de 500 quilos caía sobre sua cabeça para amolar e desolar.

Eu, com essa minha preguiça ancestral, se tivesse que resolver um décimo daqueles problemas, já desistiria. Nada disso, não resolvo. Deixa que desliguem o telefone, lavo a roupa na mão ou bato a abominável roupa no liquidificador, pago a divida no imposto de renda, mas não ando atrás de nenhum burocrata nesse mundo para resolver feitiçarias menores.

Não dou o menor valor para a vida, olho em volta e acho tudo uma bobagem, o carrão bacana do vizinho, as jóias da vizinha, detesto os intelectuais de esquerda e de direita e abro um sorriso de dentes escurecidos pelo cigarro a quem fica falando que vou morrer de câncer no pulmão. Nem um minuto dessa vida pervertida e inútil eu gastaria para diminuir minhas penas num tribunal por homicídio doloso ou culposo, sei lá, que nem sei qual é aquele considerado de propósito ou o sem querer. Não me formei em direito e não quero exercitar minha memória. Se não fosse uma herdeira por natureza, viveria embaixo de uma ponte para poder descansar.

Ela corria de cá para lá, de lá para cá, se safando de uma por uma das perseguições vitalícias do azar, não fala essa palavra que pega, diga falta de sorte, amém. E me chamava para testemunhar. Meu infortúnio, ou a mais profunda de todas as desditas, ou seja lá o que for, começou numa dessas chamadas para testemunhar fatos incomuns. Ela inventou que, se algo acontecesse, eu cuidaria de suas filhas. Pela primeira vez em toda a minha porcaria de vida, não dormi bem. Tive insônia, imagine. Eu, que não sabia o que era isso até aquele dia, que sei muito bem que dia era, mas não vou dizer, só vou mencionar que o mês era agosto, de cachorro louco. Fiquei ali, sentada na cama, o corpo cheio de conhaque, acendendo um cigarro no outro, pensando no sorriso lindo daquelas duas meninas e na alegria que elas exalavam só por viver, invadindo minha casa seca. Garganta seca. Gole seco no conhaque molhado. Parecia que eu tomava pó de vidro. Nem plantas e nem um gato eu tinha, agora, que história era essa de crianças, estou me exonerando, estou fora, peço demissão.

Aqui ninguém entra, pensei, já imaginando como mandaria a amiga perseguida pela desdita para longe da cidade antes que ela tomasse o golpe fatal do destino e ficasse ali estendida, como está agora, que desgosto. Pensei a noite inteira, conclui que ia lhe dar de presente uma casa na Birmânia, onde mesmo ficava a Birmânia, era isso mesmo, eu não nem queria saber. Com três passagens só de ida e dinheiro suficiente para sobreviver um ano, para não voltar de jeito nenhum. Dormi em paz com meus planos e uma ressaca enorme.

Como contei o fim da história, todo mundo sabe que não deu tempo. Talvez porque eu não soubesse onde era a Birmânia, porque minha preguiça sempre me vencesse ou porque eu não quisesse mesmo despachar aquelas crianças. Ou ainda também porque antes de tomar qualquer providência precisava acabar o livro que estava lendo, cortar o cabelo, retirar a roupa na lavanderia. Eu não vou responder porque não mexi um palito no sentido de me livrar daquela responsabilidade e ninguém tem nada a ver com isso.

Amanhã, quando minha ex-amiga não passar de poeira circulando em rodamoinhos no vento da tarde, vou entrar com o pedido de guarda provisória e depois com o de adoção plena das duas meninas. Antes disso vou pedir ao juiz uma autorização para viajar com elas, pode ser que elas gostem de passear em Paris, mas, se não gostarem levo as duas até o parque do Asterix, porque assim se distraem um pouco de tanta bordoada que o mundo lhes deu em tão pouco tempo. Morrer a mãe também é demais.

* Jornalista, autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.




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