sexta-feira, 28 de julho de 2017

Mário Sapo e Urariano Mota

Rap da liberdade para José Amaro Correia, o nosso Mário Sapo


* Por Urariano Mota


Em um trecho do Dicionário Amoroso do Recife, escrevi: “José Amaro Correia, Zé Amaro, ou Mário Sapo, como o chamamos, era e continua a ser um socialista, militante político, preso em 1973 no DOI-CODI no Recife...


Quando eu lhe pergunto se depois de tanta luta, se alguma vez ele não pensou em desistir, ele, que sei estar com problemas circulatórios, pressão alta, e que piora todas as vezes em que se emociona, ele me responde:
Desistir? Nunca! Às vezes me dá uma preguiça. Mas dá e passa.

Então ele me conduz, tateante, devagar, até o portão. Às vezes vira a cabeça de lado para ver o meu vulto, quem sabe, algum traço. Talvez não veja mais nem sequer a minha sombra. E não diz. Mas entendo. Devo ser mais real que o seu sonho, que um dia ele escreveu num poema:


Vivo semeando o sonho
Do fim da pobreza
De todas as crianças terem o direito
De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho
Do nascer igual
Perante a natureza dos homens’”. 


Agora em 2017, na quinta-feira à noite, ele falece aos 74 anos de idade. Estava com a saúde ao fim em tudo. Infecção nos pulmões, nos rins, no coração. Quando eu o visitei na UTI, embora ele estivesse sem consciência, pelo que falavam, eu lhe disse na esperança de que me ouvisse:

- Você é meu irmão. Você sabe: não te faltei antes na ditadura, não vou te faltar agora.

Pois bem, porque agora vem o segredo de uma revelação: na quarta-feira, quando o ônibus parou próximo ao hospital onde ele estava internado, subiu um grupo de três jovens que, antes de começarem a pedir uma ajuda, começaram a cantar um rap. Um rap da liberdade.


Eu fiquei comovido até os olhos, porque pensava: o meu amigo no fim e estes jovens cantando a liberdade. Era como a encarnação viva do meu próximo romance. Eu me dizia: cantam para ele. E me vieram associadas as palavras de John Donne:


"Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".

Então os jovens cantavam para Mário Sapo, eu os compreendia muito bem. Cantavam e tocavam pelos guerreiros. Então eu nunca tinha ouvido um rap tão emocionado. E pensei também no Toni, da LiteraRua, na editora do meu próximo romance. E volta agora a apresentação que José Carlos Ruy escreveu para o livro, no trecho:

O tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente... Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista”.

Aquele canto no ônibus, a sua associação ao amigo que padecia não era delírio. É fato. Os jovens cantavam um rap que se unia ao amigo, na mais longa duração da juventude. Então eu aplaudi com entusiasmo, como quem grita: presente! um guerreiro cai, outro se levanta. Esses jovens com violão, percussão e canto levam adiante a resistência . Eles são inconformados como a maior razão de viver.

Agora, com o falecimento de José Amaro Correia vem um breve abatimento. Mas não temos esse direito. Não podemos cair e esmorecer. É levantar a cabeça e continuar a caminhada. Se possível, até o lado ensolarado da rua.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros



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