segunda-feira, 24 de julho de 2017

A moça famosa


* Por Danielle Giannini


Se não fosse a padaria, a vida no bairro não teria curso. Pelo menos ninguém saberia do curso da vida do bairro sem a padaria. Foi lá que ouvi falar de muitas pessoas que não conhecia, embora as visse com freqüência, ou passei a notá-las após ouvir falar sobre elas. Myrella foi uma dessas. Um mulherão para marmanjo algum botar defeito. Pelo menos os marmanjos que não freqüentavam a padaria, pois lá sabia-se tudo sobre ela. Até a verdade que lhe era mais cara.

Foi um choque para o chapeiro quando ouviu pela primeira vez a revelação, foi uma bomba que estilhaçou seus brios masculinos. Demorou cinco segundos para se recompor do susto e fazer a notícia chegar ao caixa, não sem antes passar pelos rapazes do balcão de pães e atordoar o moço que corta frios; quase perdeu o dedo na máquina, o coitado, tamanho assombro. Justo ela, uma mulher tão linda, tão alta, tão simpática, aparecia na televisão todos os dias e não era cheia da metidice de alguns artistas famosos. Conversava com os meninos da padaria sem economizar sorrisos.

Quem contou tudo foi a Zefa, do salão de beleza instalado no meio do quarteirão, entre a padaria e o ponto de táxi. Zefa sabia de tudo porque as clientes, na falta do que dizer, contavam seus segredos. Sabia-se de tudo, então só podia ser verdade. Pensando bem, até que Myrella era mesmo estranha, não notou as orelhas, o jeito de colocar o cabelo. E a sobrancelha, então, aquela linha de pêlos sobre os olhos dizia tudo.

Na tarde em que Zefa do salão entrou na padaria para contar o segredo da moça bonita do bairro, artista de televisão e uma simpatia, o assombro se fez sentir no lanche vespertino em muitas casas. Não teve pão que prestasse. O padeiro beirou o colapso, justo ela que o inspirava na sua tarefa rotineira. Amassava o pão como se fizesse carinhos para ela. Fato é que a receita desandou, aliás desandou toda sua lógica de homem, macho, valente. O pão não cresceu nos dias que se seguiram e os prejuízos já ameaçavam a padaria quando eu soube do caso, caso tremendo. Lembro-me de tê-la visto na televisão na noite anterior balançando os cabelos com brilho de comercial de shampoo. Mas se a moça quis assim, que assim fosse, ou pelo menos parecia ser, sim, pois dessa vez ninguém precisou contar nada a Zefa, ela viu tudo com seus próprios olhos, ou julgou ter visto algo além do esperado.

O que ninguém esperava é que a moça bonita e famosa, artista de TV e educadíssima, com um cabelo que brilhava, resolvesse ir embora. Com tamanho burburinho sobre algo tão pessoal, Myrella mudou-se do bairro sem deixar pistas a não ser o rastro dos comentários que se seguiram à mudança; partiu sem se despedir de ninguém, nunca mais colocou os pés na padaria, nem no salão de beleza, só aparecia mesmo no programa da TV.

A indignação foi geral; era tão boa moça. Até esquecerem o assunto, ninguém deixou Zefa em paz. Zefa, você viu direito? Vi, sim, tá duvidando? Foi quando eu depilei a perna dela. Tinha um volume estranho. Eu tô te dizendo, essa moça é homem. Vocês estão tudo arrastando a asa é pra cima de um homem. Azar de vocês. Mas Zefa, você viu a coisa? Vi foi o volume, o que mais você queria? Desaforada!

* Jornalista – blog http://www.lugaresdomundo.com



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