segunda-feira, 31 de julho de 2017

À sombra de um acordo, a ortografia

* Por Rubem Costa

Desnecessário é lembrar que, originário do latim, o verbo reformar traz ínsito em seu étimo um potencial de largo espetro que tem por lastro o significativo conceito de corrigir, emendar, modificar. Consequentemente, sempre que se fala em reforma, aflui ao pensamento a sensação de alarme, advertência que abisma o ser diante do desconhecido. Agredindo o princípio da inércia, a ideia de mutação cria para o espírito um estado de vacilação e dubiedade que o leva a uma espontânea resistência ao novo.
Fruto dessa consequência se constata agora na aplicação do acordo ortográfico sancionado pelo Brasil; proposição que, alterando a tradição resultante de reformas anteriores, codifica em grande angular novas normas para uso da Comunidade de Países da Língua Portuguesa. Importante, todavia, é considerar que, acima do termo legal para a mudança, necessário se faz compreender para aceitar. Em decorrência, promulgada a lei, como não podia deixar de ser, agitaram-se desde logo os meios culturais numa tarefa pedagógica que, não raro, à falta de recursos didáticos dos mensageiros mais tem confundido que esclarecido.
Indubitavelmente, este é um ponto capital que coloca em estado de alerta a confiança dos educandos. Espreita que cresce naturalmente quando a iniciativa de divulgar provém da atual Secretaria de Educação do Estado, uma pasta desmoralizada que, traindo o seu passado, se desmancha atualmente em incompetência abissal, traduzida recentemente na insanidade — que a imprensa amplamente divulgou — de distribuir, para uso das escolas, atlas geográfico da América do Sul com Paraguai trocando lugar com a Bolívia. Assim, diante de descalabros que colocam o poder público numa ínfima qualificação cultural, é salutar e até imperativo que a iniciativa particular se movimente para corrigir e compensar o que deveria ser dever do estado.
Essa é a razão que me leva a saudar a publicação da obra assinada por Luiz Antônio Alves Torrano, mestre da língua e cultor do direito que, associando as duas virtudes, oferta agora ao uso da comunidade de língua portuguesa o mais completo manual até hoje conhecido para o exercício das novas normas ortográficas. A par da exposição clara e acessível de cunho didático, o livro encerra toda a legislação pertinente ao novo acordo, ao qual adere o protocolo modificativo anteriormente assinado.
E essa organização pedagógica — provindo de quem provém — não podia deixar de assim ser. O autor é uma figura incomum de intelectual que, acoplando a condição de filólogo e jurista, possui no currículo invejável soma cultural em que se inscrevem títulos múltiplos: licenciado em letras pela Faculdade de Filosofia de Catanduva/SP, graduado em direito pela PUC, mestre em letras também pela PUC-Campinas; mestre em direito civil pela PUC-São Paulo, mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Unesp-Franca, doutorando em Direitos Difusos pela PUC-São Paulo, e também professor adjunto de Direito Civil na PUC-Campinas e Unip. Professor assistente da Escola Paulista de Magistratura. Membro da Academia Campinense de Letras, é atualmente juiz titular da 1 Vara da Família e diretor do Fórum da Comarca de Campinas.
Como gramático é autor de uma obra essencial aos estudantes de Direito: A Língua Portuguesa em seu uso forense. Dele, no prefácio do livro, o desembargador Marino Falcão Lopes, assim fala: “Na dúplice condição de professor e magistrado, Torrano tem a perfeita conscientização de que o direito é o núcleo polarizador da vida em comunidade. Situa-se com nítida visão nos parâmetros desse extraordinário universo de atuação, mas sempre fiel ao seu antigo amor pelo idioma pátrio.” É uma visão plena do gramático e do jurista; do ser voltado para a manifestação correta do pensamento como veículo de aplicação exata do direito. Na trilha desse entendimento, foi que o saudei quando de sua posse na Academia Campinense de Letras, acentuando então a interpenetração dos dois valores para concluir que, se o bem julgar desperta o juiz, o bem falar desperta o gramático. Ou até de forma anagramática, pelo avesso, com igual correção, pode-se dizer também que o bem julgar desperta o gramático como o bem dizer desperta o juiz. Essa é qualidade cultural do mestre que assina o manual de A Nova Reforma Ortográfica da Língua.
* Advogado, professor, escritor e membro da Academia Campinense de Letras.



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