sexta-feira, 28 de julho de 2017

O álbum de fotografias



* Por Raymundo Netto


As cinzas da noite espalhavam em brasa no quarto de Cícera.

Toda a solidão de uma vida oprimida entre suas coxas lhe ardia. A televisão a convidava para comprar uma nova marca de detergente, sabonete e palha de aço. Mas, para viver a sua vida nunca, never more.

Casara cedo, muito jovem e tola. Não conhecia nada da vida. Cria no noivo, experiente e de olhar interessado, penetrante... Acreditava que ele poderia fazê-la a mulher mais feliz do mundo. Não o conseguiu. Teria sido sua culpa?

Há anos, reclusa à vida doméstica: passava, encerava, cozia, pregava botões e cerzia as meias. Em troca de quê? Todos os dias, rádio na cozinha, lamentos sonoros de amor eterno respingados a óleo quente da frigideira, comida no forno, lavagem de cuecas e muita, muita, muita vista grossa…

À tardinha, com almofadas embaixo dos cotovelos, reclinava-se à janela sisuda a comparar a sua vida com a dos passantes. A visão de uma mulher magra e jovem lhe era imperdoável, capaz de estragar até o fim de semana. Roia as unhas.

Revolvia gavetas, revolvia gavetas, procurando nem ela sabia o quê. Chorava nos portais da cozinha. Chorava por detrás das portas. Chorava. Cheirava esmaltes. No banho, perdia horas se ensaboando, se esfregando, catando o surro, sensação de sujeira, muita sujeira. Cuidava das plantas no jardim, matava formigas, caçava baratas, limpava ratoeiras…

Um dia, recebeu um telefonema diferente: seu marido sofrera um grave acidente. Morrera! Solicitavam-na para fazer o reconhecimento do corpo.

Desligou o telefone e poisou-o no console. Não chorou. Não sabia o que pensar. Não sabia o que fazer. Não sabia para onde ir. Não sabia a quem procurar. Não sabia nada de coisa alguma.

Foi ao quarto, ficou de quatro e pegou embaixo da cama uma encadernação vermelha amarrada com uma fita puída. Abriu-a. Era um álbum de fotografias. Pequeno, feito de cartolina, comido por cupins, cada página separada por papel manteiga amarelado. As fotos, à medida que passava as páginas, caíam pesadas. Ela as recompunha. Fitava-as. Não, não as reconhecia, não reconhecia nada e nem ninguém. Sorriu aliviada e gargalhou com uma estranha sensação de liberdade.


* Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, e um sonhador declarado que ainda se encanta com as pessoas.




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