quarta-feira, 5 de outubro de 2011



Viagem em torno do homem

* Por Rubem Costa

A atual crise financeira que assoberba a Grécia traz-me ao espírito a lembrança de Sófocles que, nascido em Atenas há 24 séculos, conserva-se na história como o maior dos trágicos da antiguidade helênica. Conta a lenda que aos 80 anos de idade, desafiando a acusação de demência senil que lhe imputavam parentes ávidos de sua fortuna, comparece ao areópago — grande e severo tribunal de Atenas — onde, deslumbrando os atônitos magistrados, oferece — como prova de lucidez — a leitura de Édipo em Colona que acabara de escrever. (Lembrem-se: Édipo encarna a figura trágica do ser que mata o rei da Fóscida, ignorando que é seu pai e casa-se com a viúva, Jocasta, sem saber que é sua mãe).
Filósofo, do episódio tribunício de Sófocles, aproveitou-se Cícero — grande tribuno da velha Roma — para lastrear apreço à idade provecta no seu grande livro: Diálogo sobre a Velhice, escrito também 100 anos antes do surgimento de Jesus. Uma obra que enaltece o poente da existência e procura fazer da última idade um consolo da vida. Inobstante, ironia da história, esse mesmo Caio Túlio Cícero, senador e filósofo que profligou no senado romano a depravação de sua era com a célebre verrina — “ó tempora, ó mores” (ó tempos, ó costumes) — não viu a vida entardecer. Morreu aos 40 anos — em 43 a.C. — degolado pelos inimigos, seus pares revoltados no senado, que dele colocaram a cabeça e a mão direita expostas no fórum para execração pública. Assim, não chegou a constatar o óbvio, isto é que, não raro, para muitos a senectude é o tempo que marca o conflito do homem consigo mesmo, a dialética do ser que, enquanto moço, achincalha e despreza o velho — mas que na hora em que a juventude se esvai, clama pelo respeito devido aos seus cabelos brancos.
A par dessa reflexão, já na quadra dos 90 anos, confesso que minha intenção não é reclamar, apenas evidenciar para mim mesmo o princípio cartesiano do “cogito, ergo sum!” — penso, logo existo! Dedução que, como se sabe, contraditoriamente adveio da dúvida. Da dúvida diante do mundo exterior do qual, quando supunha que tudo era falso, retirou Descarte a certeza de que, se assim podia pensar, é porque era um corpo presente na existência. O que não impede a consciência de se defrontar com a inevitável interpenetração dos contrários a que nem a física se subtrai.
O próprio Einstein, ao sugerir que a massa é simples energia congelada e que a energia é matéria libertada, terminou por anunciar que não há valores absolutos. Vale dizer, entanto, que, na esfera das oposições, um espiritualista, James Van Praagh, em dias recentes, tomando carona na intuição cartesiana, ousa ir mais longe, quando, enfrentando a dicotomia do ser e do ter, admite que o pensamento é coisa. Tão real (o que é duvidoso) como os órgãos do nosso corpo, diz ele para concluir (o que é plausível) que a nossa vida cotidiana é o resultado daquilo que pensamos. Divergências à parte, nesta visão, todavia, importa considerar que a existência reflete um tempo incerto e um espaço amorfo no qual — a exemplo de Xavier de Maistre, que viajava em redor de seu quarto — o homem desde o nascimento, contrariando as regras do “discurso do método”, caminha imperceptível em torno de si próprio, na perseguição de uma realidade que, mordaz, desafiando o conhecido preceito de Aristóteles — “a verdade é o que é” — nunca se mostra por inteiro. Entre uma descoberta e outra, há sempre de permeio apenas uma hipotética verdade. Talvez, por essa suspeita, é que um velho alemão chamado Immanuel Kant, acreditando que o homem traz consigo o espaço e o tempo, afirmava que a realidade é um juízo assertório, ou seja, abrange tanto a afirmação como a negação, o que leva à convicção de que a coisa em si mesma pode ser muito diferente do que parece, quando simplesmente a vemos através concepção e não pela percepção. Ensino que me ajuda a compreender a antiga confusão que espreitei na primeira infância. Menino de colo, minha mãe para fazer-me dormir, entoava baixinho a cantiga do “tutu-marambaia”.
Enquanto o ninar escorria pelos meus ouvidos, me encolhia assustado nos braço mornos, fechando os olhos com medo do corpo assombrado que se escondia no telhado. Inocente, Olívia, coitada, não suspeitava que a “estória” carinhosamente cantarolada ganhava dentro de mim os contornos corpóreos de um assustador bicho papão. Ao passo que me oferecia uma piedosa mentira, eu recolhia apavorado uma aparente e dolorosa verdade.
Todavia, essa mesma hipotética concepção do ser que se instala na cronologia do homem, aparece, também, em longitude e latitude, na extensão visual do espaço. Para um garotinho de dois anos de idade que com suas perninhas curtas se esforça por subir em uma cadeira comum, o assento parece muito alto. Entretanto, para meu vizinho, gigante de dois metros, o banco é muito baixo. Tudo depende da relação das partes ou da posição em que se encontra o observador. Fenômeno que encontra paralelismo, mais uma vez no terreno da física tradicional, a exemplo do que concluiu o mesmo Einstein quando na crítica dos “quanta” alertava que o ato de observar muda o objeto que está sendo observado. Esta assimetria de avaliação, face ao mistério das relações, é que leva o homem, desde o seu aparecimento na terra, a defrontar-se com uma estrada de duas mãos, quando o visível ou palpável se torna imaginário e o abstrato reflui ao concreto. Da incógnita exsurge o mito: do sol, da lua, do mar, dos ventos. Hélio, Selene, Netuno, Eolo. Ficções deificantes que pela maré das crenças retornam ao espírito como entidades concretas a dirigirem o destino do homem. E aí, na mistura do próximo e do remoto, chega um momento em que não se sabe mais onde fica o ponto de fusão. Amplia-se a saga. Para fundamentar o maior, os gregos dizem Zeus e o romano proclama: Júpiter existe! Nascem os alumiados. Na estampa pendurada na parede, São Jorge luta contra uma figura de cauda de serpente e garra de abutre. Sem discutir o improvável o homem vê o santo e crê no dragão. Vai rezar genuflexo ao pé do altar e se benze pedindo a bênção.
O Rio de Janeiro entendeu o grande evento. Para não privar ninguém da mística consagração, a prefeitura decreta feriado municipal no dia consagrado ao santo. Gazeta carioca na paisagem urbana. A cidade para de trabalhar. Homenagem à santidade, o dragão entra na festa e se espoja na favela. Assim, no fantástico teatro, o ser se movimenta em um cenário de paradoxos no qual a um só tempo é ator e assistente. Influencia e se deixa influenciar. Age, aplaude e condena. É aplaudido e condenado. E no espaço de tempo que traz consigo, cada um tenta desentocar sua partícula de verdade, mesmo que tenha o sabor de uma ilusão.




• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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