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Fora de moda
* Por Mara Narciso
Órfão de pai desde criança, com mãe e irmã, teve de ir cedo para detrás do balcão. Vendia aviamentos, mas não distinguia as cores. Impressionava-se com as compradoras detalhando o tom. Para ele, tudo era indecifrável. Então foi dado o diagnóstico de daltonismo. Mero detalhe de quem não se curva a dificuldades.
Em busca de melhor colocação, mudou-se de cidade, mas nunca deixou a mãe para trás. Empregou-se numa estatal, e depois se casou com a irmã da namorada do colega de trabalho. A jovem esposa, de lindos olhos verdes, não podia ter essa característica física admirada, pois ele não distinguia cores.
O que sempre o destacou dos demais foi a sua correção. O seu estilo, planejando cada gesto, o levava a uma vida sem atropelos, onde tudo, praticamente tudo, era previsível. A religiosidade aprendida com a mãe, o respeito pelo outro, e a certeza de que é possível fazer as coisas honestamente, nortearam a sua vida. Anualmente, mesmo já sendo pai de três filhos, não passava férias sem aportar na casa materna. Por essa ocasião, fez a faculdade de administração, e em seguida foi lecionar na universidade em que se formou.
O curioso é que sua rigidez não o levou a ter uma existência carrancuda, pois manifestava uma maneira equilibrada e amena de ser, fazer e existir. Tabagista inveterado, um alguém para quem a família nunca saiu do primeiro lugar da sua lista, acabou manifestando pressão alta, mal tocou nos trinta anos. Então foi preciso fazer revisão de rumos, e acabou abandonando o vício antes que a vida o largasse de mão.
Como professor, estudava, ensinava e exigia do aluno o que era preciso saber. Persistiu no meio universitário a fama de pessoa íntegra. Adiante, quando penetrou no pantanoso mundo da política, como Secretário Municipal da Fazenda, não deixou dúvidas de que, mesmo fora de moda, é possível lidar com o dinheiro público sem encher os bolsos. Ninguém ousou pensar o oposto sobre sua ilibada conduta.
Como pai, dirigia a vida dos filhos da forma que sempre guiou a sua própria. Pagava escola, e esperava o melhor retorno, e não se frustrou com isso. O resultado acadêmico dos filhos foi de muito brilho. Pode-se dizer que como pai foi um sucesso. É possível que os filhos não achem que foi perfeito, pois é da obrigação filial dizer que algo poderia ser melhor: se não nesse ponto, então que fosse naquele outro.
O equilíbrio financeiro é a norma dessa vida de honestidade. Há o suficiente para a manutenção da casa, para a troca do carro, para as viagens à praia, para ajudar os filhos e netos. Não há grandes sobras, e muito menos desperdício. Há projeções, estudos e possibilidades. Também não há perdas pelo caminho. O que era dele voltou, mesmo que tenha sido pela força da lei, acionada nas ocasiões em que se viu injustiçado.
Porém, há sempre algo que não funciona perfeitamente. Houve uma falha no encaixe das peças, e essa falha chamou-se infarto. O custo da retidão foi que as altas taxas de colesterol, triglicérides e pressão arterial causaram uma placa de gordura, que impediu a passagem do sangue. E adiante dela, aonde não chegaram nutrientes, parte do músculo cardíaco morreu, sendo que se fosse muito amplo poderia até matá-lo. Mas há o recurso do stent (a “molinha” que abre caminho), que foi colocado, não sem antes causar um temor, uma breve insegurança nessa tranquilidade férrea, de homem que não se enverga. Mas a medicina existe para quê? Junto com remédios, caminhadas eternas e diárias, a gangorra se refez em novo equilíbrio. A vida continuou. Recuperou a confiança, e uma nova etapa da vida aconteceu.
Aposentar, sim, quando é chegada a hora, mas sem permitir que o vazio se aloje em seu redor. Leituras, filmes, viagens, cuidar da casa, dos filhos, dos netos, tudo pode ser motivo para continuar no mesmo caminho de sempre: a linha reta.
Houve a necessidade da colocação de um novo stent, este medicamentoso, há um ano. Então, a novidade da vez é a glicose alta. À alimentação restrita de tempos, onde há corpo magro e peso estável, exercício, pouco sal, pouca gordura, e quase sem açúcar, é preciso somar novas restrições. Os controles médicos, os exames periódicos, a lembrança de que se é cardíaco, não atrapalha as outras conquistas. A carruagem vai avançando, quase em segurança, considerando-se os percalços normais de quem é portador de doença coronariana.
A pergunta é: ser inflexível e ter uma vida na qual não se permite improvisações são agravantes de doença das coronárias? Tentemos uma jogada infantil: sem brincar com as convicções, permitindo-se uma ou outra transgressão, é possível lentificar o endurecimento das artérias? A medicina holística e a psiquiatria poderão responder a essa questão. Podem fazer as suas apostas, mas que dá vontade de revirar tudo, isso dá.
* Médica endocrinologista, no oitavo período de Jornalismo, autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
* Por Mara Narciso
Órfão de pai desde criança, com mãe e irmã, teve de ir cedo para detrás do balcão. Vendia aviamentos, mas não distinguia as cores. Impressionava-se com as compradoras detalhando o tom. Para ele, tudo era indecifrável. Então foi dado o diagnóstico de daltonismo. Mero detalhe de quem não se curva a dificuldades.
Em busca de melhor colocação, mudou-se de cidade, mas nunca deixou a mãe para trás. Empregou-se numa estatal, e depois se casou com a irmã da namorada do colega de trabalho. A jovem esposa, de lindos olhos verdes, não podia ter essa característica física admirada, pois ele não distinguia cores.
O que sempre o destacou dos demais foi a sua correção. O seu estilo, planejando cada gesto, o levava a uma vida sem atropelos, onde tudo, praticamente tudo, era previsível. A religiosidade aprendida com a mãe, o respeito pelo outro, e a certeza de que é possível fazer as coisas honestamente, nortearam a sua vida. Anualmente, mesmo já sendo pai de três filhos, não passava férias sem aportar na casa materna. Por essa ocasião, fez a faculdade de administração, e em seguida foi lecionar na universidade em que se formou.
O curioso é que sua rigidez não o levou a ter uma existência carrancuda, pois manifestava uma maneira equilibrada e amena de ser, fazer e existir. Tabagista inveterado, um alguém para quem a família nunca saiu do primeiro lugar da sua lista, acabou manifestando pressão alta, mal tocou nos trinta anos. Então foi preciso fazer revisão de rumos, e acabou abandonando o vício antes que a vida o largasse de mão.
Como professor, estudava, ensinava e exigia do aluno o que era preciso saber. Persistiu no meio universitário a fama de pessoa íntegra. Adiante, quando penetrou no pantanoso mundo da política, como Secretário Municipal da Fazenda, não deixou dúvidas de que, mesmo fora de moda, é possível lidar com o dinheiro público sem encher os bolsos. Ninguém ousou pensar o oposto sobre sua ilibada conduta.
Como pai, dirigia a vida dos filhos da forma que sempre guiou a sua própria. Pagava escola, e esperava o melhor retorno, e não se frustrou com isso. O resultado acadêmico dos filhos foi de muito brilho. Pode-se dizer que como pai foi um sucesso. É possível que os filhos não achem que foi perfeito, pois é da obrigação filial dizer que algo poderia ser melhor: se não nesse ponto, então que fosse naquele outro.
O equilíbrio financeiro é a norma dessa vida de honestidade. Há o suficiente para a manutenção da casa, para a troca do carro, para as viagens à praia, para ajudar os filhos e netos. Não há grandes sobras, e muito menos desperdício. Há projeções, estudos e possibilidades. Também não há perdas pelo caminho. O que era dele voltou, mesmo que tenha sido pela força da lei, acionada nas ocasiões em que se viu injustiçado.
Porém, há sempre algo que não funciona perfeitamente. Houve uma falha no encaixe das peças, e essa falha chamou-se infarto. O custo da retidão foi que as altas taxas de colesterol, triglicérides e pressão arterial causaram uma placa de gordura, que impediu a passagem do sangue. E adiante dela, aonde não chegaram nutrientes, parte do músculo cardíaco morreu, sendo que se fosse muito amplo poderia até matá-lo. Mas há o recurso do stent (a “molinha” que abre caminho), que foi colocado, não sem antes causar um temor, uma breve insegurança nessa tranquilidade férrea, de homem que não se enverga. Mas a medicina existe para quê? Junto com remédios, caminhadas eternas e diárias, a gangorra se refez em novo equilíbrio. A vida continuou. Recuperou a confiança, e uma nova etapa da vida aconteceu.
Aposentar, sim, quando é chegada a hora, mas sem permitir que o vazio se aloje em seu redor. Leituras, filmes, viagens, cuidar da casa, dos filhos, dos netos, tudo pode ser motivo para continuar no mesmo caminho de sempre: a linha reta.
Houve a necessidade da colocação de um novo stent, este medicamentoso, há um ano. Então, a novidade da vez é a glicose alta. À alimentação restrita de tempos, onde há corpo magro e peso estável, exercício, pouco sal, pouca gordura, e quase sem açúcar, é preciso somar novas restrições. Os controles médicos, os exames periódicos, a lembrança de que se é cardíaco, não atrapalha as outras conquistas. A carruagem vai avançando, quase em segurança, considerando-se os percalços normais de quem é portador de doença coronariana.
A pergunta é: ser inflexível e ter uma vida na qual não se permite improvisações são agravantes de doença das coronárias? Tentemos uma jogada infantil: sem brincar com as convicções, permitindo-se uma ou outra transgressão, é possível lentificar o endurecimento das artérias? A medicina holística e a psiquiatria poderão responder a essa questão. Podem fazer as suas apostas, mas que dá vontade de revirar tudo, isso dá.
* Médica endocrinologista, no oitavo período de Jornalismo, autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Mara, talvez se eu tivesse maior entendimento...
ResponderExcluirTalvez se tivéssemos percebido os sintomas...
Talvez, ainda a teríamos por perto.
Parabéns!
beijos
Núbia, pela maneira que você diz, uma pessoa muito querida tinha características semelhantes as do personagem, e acabou falecendo de infarto. Há oito anos sofri esse mal e tenho um temperamento parecido com o da história. Eu mudei muito, mas ainda quero ficar mais solta e leve. Obrigada pela leitura e comentário.
ResponderExcluirMara,
ResponderExcluira vida não tem controle. Não é a virtude que nos livra das doenças. É algo ainda sem explicação. Conheci um senhor, pai de uma amiga, que praticava esportes, aparentemente saudável, calmo, sereno, teve dois AVCS. Ficou em cima de uma cama durante um tempo,não resistindo ao segundo.
A vida não tem lógica e muito ainda foge a explicação humana.
Hoje mesmo, sobre a tragédia de Angra, um rapaz que escapou, deu um depoimento em que dizia " Aprendi a respeitar a natureza. Ela é muito mais forte do que imaginamos. Do que nós."
Existe sempre um poder maior. Algo grandioso. Por mais que busquemos o equilíbrio, o controle, viver é incontrolável. Nunca sabemos se no dia seguinte estaremos aqui. Você pode garantir ? Nem eu.
Beijos e Feliz 2010 !
Celamar, sou do tipo certinha e infartei há 8 anos. Não tenho nenhum fator de risco, mas tenho uma família de infartados. O stress fez o restante do serviço. Hoje sou muito mais leve do que antes. Espero viver um pouco mais.
ResponderExcluirObrigada pela leitura. Estive há pouco no seu blog. Lá eu sempre me divirto, e ainda o divulgo.
Tudo de melhor para você!
vc precisa contar pra gente de onde tira essas ilustrações irônicas pros textos pedro
ResponderExcluirQue bom iniciar o ano com mais uma lição de vida em forma de boa literatura. Feliz 2010, Mara. Continue nos brindando com seus ótimos textos.
ResponderExcluirFernando, também achei a ilustração perfeita.
ResponderExcluirMarcelo, você é muito gentil. Tudo de melhor para você também.