domingo, 31 de janeiro de 2010




A vida é assim

* Por Fábio de Lima

Noemi entrou no Pet Shop. Ela olhou para a direita e viu cachorros. Então, olhou para a esquerda e viu cachorros. Depois, olhou para frente, e por todos os cantos do lugar, mas só viu cachorros – muitos cachorros. Logo teve certeza estar no lugar certo.

Quem via aquela mulher com roupas muito elegantes – com trejeitos muito finos – e, ainda assim, pegando no colo todos os cãezinhos, falando com eles como se fossem bebês – garantiria que ela amava cachorro. Mas o fato é que Noemi não suportava nenhum animal de 4 patas, incluindo os irmãozinhos do Snoop. Estava naquela loja por obrigação. Isso mesmo, obrigação. Quem mandou ser mãe?

Aline tinha 5 anos e deixara claro, através da psicologia de uma criança de 5 anos, muito choro e gritos agudos, querer um ‘au-au’. Noemi que se virasse. O apartamento não era muito grande? Problema de Noemi. Não haveria quem cuidar do cachorrinho? Problema de Noemi. O síndico não gostava de cães nas dependências do prédio? Problema de Noemi. Ela, já um pouco estressada, só faltava enfartar de tanto nervosismo nos últimos dias. Era uma mulher agitadíssima. Era o estresse em pessoa. Era neurótica mesmo! E teve que parar sua atribulada rotina diária para ir ao Pet Shop. Estava decidida a comprar o cachorro para Aline. A verdade é que sua querida filha já lhe enchera o saco.

A atendente do lugar chegou para ajudar Noemi a escolher um cachorrinho. Coitada da mocinha. Ela não conhecia Noemi.

-Vou levar esse daqui.
-Claro, ele é lindo! Mas a senhora mora em casa ou apartamento?
-Pode embrulhar, minha filha! Vamos logo que eu não tenho tempo a perder.
-Mas a senhora já conhece a raça? Este é um Dog A...
-Minha filha, eu sei inglês. Cachorro e Dog, tudo a mesma coisa. Coloca ele numa caixa. Depois coloca ele no banco de trás do carro.
-Sim, senhora.

A vendedora trabalhava na loja há muitos anos e sabia o tipo de pessoa com quem estava lidando. Não adiantava argumentar. E, verdade seja dita, nem valia a pena. Noemi era uma mulher estressadíssima. Fumava 2 maços de cigarro por dia. Bebia quase 2 litros de café diariamente. Gritava com superiores e subordinados. Era chata, sem paciência, neurótica, vingativa, presunçosa e..., bem, pelas próprias palavras dela – era mãe, não era filha, portanto, não devia satisfações.

-Está aí seu cachorro! Agora não me encha mais a paciência. Vá brincar com ele, Aline. Preciso trabalhar.

Aline estava feliz. Seu cachorrinho era bonito, brincalhão, pequenininho igual a ela e tinha os olhos azuis, também iguais aos da menina. Noemi trabalhava 14, 16, 18 horas por dia. Saia muito cedo de casa e chegava muito tarde. Quase não via Aline. Quase não via o Picolé. Não se assuste leitor, esse foi o nome que Aline deu ao cachorrinho. Picolé era o nome do ‘au-au’. Aliás, ele estava crescendo rápido, muito rápido. Até a babá de Aline andava assustada. A empregada da casa também andava assustada. Mas como ninguém via quando Noemi saia ou quando chegava o assunto estava quieto. Já Aline tinha um cachorrinho como queria e, com o crescimento do animal, este já servia também como cavalinho. Para a criança eram 2 animais em 1.

De repente a situação ficou insustentável. As funcionárias da casa organizaram uma campana e esperaram Noemi chegar pela madrugada. Quando chegou achou um absurdo ser esperada por empregadas numa hora daquela. Nada podia ser tão importante. Ela estava cansada e queria descansar.

-Amanhã a gente conversa. Preciso dormir.
-Mas, Dona Noemi, é sobre a Aline.

Noemi era uma megera, mas como toda megera – lá no fundo, mas bem no fundinho do peito, tinha um coração. Afinal, o problema envolvia sua filha. Ela tinha que escutar, embora não achasse que fosse nada muito importante. Devia ser travessuras da menina, pensava.

-O que a Aline aprontou dessa vez?
-Nada senhora...
-Poxa! E vocês me enchendo a paciência uma hora dessas. Assim não dá. Não vêem que trabalhei o dia todo...
-Senhora, é o Picolé!
-Que diabos de Picolé? Ah, o cachorrinho da Aline?
-Senhora, o cachorrinho cresceu.
-Mas como vocês são burras. Isso é normal. Cachorros crescem. A Aline cresce. Vocês um dia foram crianças e hoje são grandes, não são? Grandes e burras! Vou dormir!
-Mas, senhora. Ele cresceu muito.
-Ele está bravo?
-Não, mas...
-Se ele bagunça muito, então dêem uma tapinha nele. Aliás, isso também vale para a Dona Aline. Já autorizei vocês.
-Mas, senhora. Venha cá!

As empregadas pegaram a patroa pela mão e levaram-na rapidamente ao quarto de Aline. Abriram a porta devagar e apenas com a luz do abajur mostraram para Noemi. A mulher ficou muda. A mulher ficou pálida. A mulher ficou perplexa. Noemi estava trêmula. Noemi estava horrorizada. Noemi correu!

Era inacreditável. Picolé havia crescido. Picolé havia crescido muito. Picolé tinha o tamanho de 3 Alines. Picolé era bem maior que a cama da menina. Aquilo não era um cachorro, avaliara, Noemi, depois do pânico. Definitivamente aquilo era um cavalo. Aquilo ou aquele era o maior cachorro que Noemi já havia visto em sua vida.

Foram mobilizados o porteiro, o síndico e o zelador do prédio. Todos estes e mais a empregada e a babá. Eram 5 para levar Picolé de volta ao Pet Shop. Eram 5, mas Noemi pensou até em chamar o corpo de bombeiros. Só não o fez, porque os funcionários insistiram não ser necessário. Mas, ela não acreditava que um inofensivo cachorrinho tinha se transformado naquele bicho.

Noemi entrou na loja e visualizou a atendente que vendera o cachorro.
-Você! Foi você!

A atendente já vira aquela cena ridícula outras vezes. Dava tédio. Mas, lá estava outra madame, como tantas outras, que comprava um cãozinho para os filhos como se compram brinquedos. Comprava para se livrar dos filhos e não para presenteá-los. Comprava por que achava que tudo e todos têm um preço. Achava que a felicidade dos filhos podia ser comprada com um bichinho de 4 patas e cheio de pêlos. O importante era que os filhos não a incomodassem por um bom período.

-Senhora...
-Senhora uma ova! Que bicho é esse?
-Um belo cachorro, senhora.
-Senhora uma ova! Olha o tamanho do monstro!
-Ele só está com 6 meses, senhora. Ele ainda vai chegar ao tamanho ideal.
-Ideal uma ova! Ele está do meu tamanho! Em pé ele dá 2 de mim!
-Normal, senhora. Ele é um Dog Alemão. Uma das maiores raças do mundo.
-Você é louca! Me vender um cachorro desses. Eu o dei de presente pra minha filha de 5 anos. Eu e ela moramos num apartamento.
-Mas senhora...
-Senhora uma ova! Você é maluca!
-Mas senhora, eu tentei avisá-la quando escolheu o cãozinho...
-Cãozinho uma ova! Devolva meu dinheiro!

Depois de 30 minutos de um monólogo de Noemi disfarçado de diálogo. Depois dela chamar a atendente de insana, burra e toupeira. Chamar o gerente de incompetente, imbecil e traste, Noemi saiu do Pet Shop com o nariz empinado. Havia devolvido o bicho e retomado parte do dinheiro. Mostrara quem era Noemi Baunmer. Mostrara quem mandava. Agora bastava passar numa loja de brinquedos e comprar um cachorro de pelúcia para Aline. Ela choraria alguns dias – mas seria apenas frescura de criança. Logo passaria.

O tempo passou e Aline Baunmer cresceu. Hoje, tem 43 anos e um casal de filhos. Mora em uma casa grande e adora cães. Ela tem 5 em seu quintal: 2 Pastores alemães, um Poodle, um Husk siberiano e um Dog alemão. Os nomes dos outros cães não importam, mas do Dog alemão é PICOLÉ. A vida é assim!

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.


3 comentários:

  1. Mãe e filha com a mesma personalidade forte: decididas. Boa lembrança e excelente resgate Pedro. Fábio Lima, foi bom reler você.

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  2. Sou apaixonada por bichos e como filho de pobre
    não tem frescura só não criávamos cobra.
    Quando a gente pega amor a um animal ele se
    torna "parente", não dá para se desfazer dele.
    Abraços

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  3. Por onde andará Fabinho? Saudades dele.

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