sábado, 30 de janeiro de 2010




O poema “Sertão”, de Ascenso Ferreira

* Por Luiz Carlos Monteiro

O poema “Sertão”, de Ascenso Ferreira (Palmares, 1895/ Recife, 1965), segundo do livro Catimbó (1927), mereceu uma breve análise de Manuel Bandeira, no prefácio que este fez à edição de luxo de Poemas, lançado em1951, no Rio de Janeiro. Nesta análise, que aparece juntamente com a de poemas de outros livros, Bandeira chama a atenção para o “extremo limite em que o verso já é quase música, [que] constitui a virtude mais característica da forma tão pessoal de Ascenso Ferreira”.

E isto nos motiva a dizer, embora de outro modo, que Ascenso, neste poema, intenta surpreender e talvez deixar pasmo, instantaneamente perplexo e sem ação o leitor de poesia. Assim, para melhor compreensão e acompanhamento de nossa análise, breve também, igualmente à do autor de Estrela da manhã, faz-se necessário, logo de início, a transcrição do poema:

Sertão! – Jatobá!
Sertão! – Cabrobó!
– Cabrobó!
– Ouricuri!
– Exu!
– Exu!
Lá vem o vaqueiro, pelos atalhos,
tangendo as reses para os currais...
Blém... blém... blém... contam os chocalhos
dos tristes bodes patriarcais.
E os guizos fininhos das ovelhinhas ternas:
dlim... dlim... dlim...
E o sino da igreja velha:
bão... bão... bão...
O sol é vermelho como um tição!
Lento, um comboio move-se na estrada,
cantam os tangerinos a toada
guerreira do Tigre do sertão:
“É lamp... é lamp... é lamp...
é Virgulino Lampião...”
E o urro do boi no alto da serra,
para os horizontes cada vez mais limpos,
tem qualquer coisa de sinistro como as vozes
dos profetas anunciadores de desgraças...
– O sol é vermelho como um tição!
– Sertão!
– Sertão!

O que imobiliza – e, ato contínuo, leva o leitor a um estado emocionalmente ativo –, é tanto a sonoridade viva e gradativa dos seus versos, quanto a intensa plasticidade visual sugerida. A evolução vocabular das tônicas finais permite, além das frequentes e identificáveis elevações de tom, alternâncias diversas na disposição e na logicidade das sequências de consoantes e vogais. Acompanhados de ressonantes e insistentes vibrações exclamativas, que geram, como em diapasão, efeitos positivos de entusiasmo e empatia, os lugares sertanejos sucedem-se, repetem-se ou se revezam: “Sertão! – Jatobá!// Sertão! – Cabrobó!// -- Cabrobó!// -- Ouricuri!// -- Exu!// -- Exu!”.

Os dois versos seguintes, em decassílabos, vão referir-se à entrada do vaqueiro em cena, no seu papel secular vivido entre a rudeza de bois e cavalos, a persistir em livrar-se do perigo de valas, grotas, veredas, garranchos, desvios ou eventuais emboscadas. Ao aviso de sua presença e do gado que tange, somam-se chocalhos, guizos e o sino, associados, nesta sequência, à morosidade dos “bodes patriarcais”, à tranquilidade das “ovelhinhas ternas” e à resignação do “sino da igreja velha”. Os sons produzidos ligam-se, por sua vez, aos objetos que os representam: blém – chocalhos, dlim – guizos e bão – sinos. A aparição do mito mais admirado dos sertanejos, Lampião, é registrada numa toada bastante conhecida: “É lamp... é lamp... é lamp.../ é Virgulino Lampião...”
.
O movimento final volta-se à perspectiva espacial (a serra e os horizontes) e aos reflexos sonoros (o “urro do boi” e as “vozes dos profetas anunciadores de desgraças”). O efeito sonoro-visual do meio do poema (“– O sol é vermelho como um tição!”) é retomado como um grito de alegria e esperança do poeta nesta terra de todos e de ninguém, onde tanto pode operar-se a violência mais surda e radical, como a hospitalidade mais humilde e verdadeira. Ao término do poema, retornam os efeitos sonoros com as tônicas do início: “– Sertão! – Sertão!”

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com




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