domingo, 17 de janeiro de 2010




Fazer macarrão

* Por Letícia Nascimento

“Ou vocês assumem o papel de jornalistas ou, então, é melhor ir fazer macarrão...”.

A afirmação não era necessariamente assim, mas nunca vou me esquecer do termo: “fazer macarrão”.


As broncas do professor Ademir tinham apenas uma finalidade: fazer com que dezenas de cegos em tiroteio se ligassem que jornalismo precisava de doses generosas de paixão ao trabalho e pulassem fora logo no primeiro ano de estudo. Quem não estivesse disposto a voltar os próximos anos de suas vidas à arte de informar, o mais recomendado era procurar fazer qualquer coisa que ocupasse o tempo, menos uma vaga tão disputada nas redações.

“Fazer macarrão” se tornou um jargão e foi muito utilizado nas piadas em sala de aula nos três anos seguintes da faculdade, mas só agora consegui descrever seu significado para mim.

Há 17 horas, sem pausas, encontro-me sentada em frente ao pc da redação do meu atual local de trabalho. Foram quatro dias, intensos, de pura caça às notícias, paciência e autocontrole.

Mesmo longe dos luizenses, senti a dor no coração e ouvi, ao vivo, o barulho do desmoronamento da matriz de São Luis do Paraitinga. As fortes chuvas dos últimos dias deixaram a cidade debaixo d’ água e pela primeira vez, nesses cinco anos de radiojornalismo, chorei por causa de uma notícia.

- Moça, tá acabando tudo. Desse jeito a gente vai morrer. Pelo amor de Deus avisa os bombeiros, aqui ta desmoronando. Caiu terra, tem um homem soterrado.

Quando ouvi essas palavras senti-me impotente, por não ter condições de resgatá-la. Mas consegui ser forte o bastante para perguntar o telefone e o bairro. O nome não deu tempo, pois a ligação caiu e a comunicação em São Luis voltou a falhar.

Respirei fundo, saí do estúdio da Band Vale FM e corri para o telefone da redação. Falei no 190 da PM, depois sentei e chorei por alguns poucos minutos. Não dava tempo de chorar mais que isso, pois os telefones tocavam a todo instante e alguém precisava atendê-los.

Infelizmente a informação de soterramento se confirmou. Trata-se de um homem, no Bairro Bom Retiro, e que desde o dia três de janeiro é procurado pela Defesa Civil e pelo Corpo de Bombeiros.

Na segunda-feira a correria prosseguiu na redação. A equipe precisava reunir todas as informações divulgadas desde quinta para bolar as suítes.

À tarde fui pra casa, tentei dormir, mas a adrenalina não permitiu. Fechava os olhos e via São Luis alagada. Abria os olhos e buscava explicações do porquê desta tragédia. Não que as mortes em Angra ou no Sul não tenham sentido para mim, mas São Luis faz parte da minha história. Os melhores carnavais... Assisti aos jornais da tv, chorei com as imagens novamente, com as declarações e desta vez, com tempo e calma, deixando a ficha cair. Tanta emoção que passei a noite em claro (não quis apelar para algum remédio).

No dia seguinte, mais correria, mais suítes e pautas destinadas ao novo cenário de SLP, como riscos de leptospirose, animais perdidos, doações que não paravam de chegar... Acompanhava tudo da redação como se da janela enxergasse a água baixando no centro histórico. Por volta do meio-dia de terça-feira o cansaço bateu. Cheguei em casa bêbada de sono e dormi a tarde toda. Não liguei a tv à noite, nem o rádio. Desliguei-me do jornalismo por algumas horas.

De terça pra quarta sonhei com o Ademir dando a bronca do “vai fazer macarrão”. O que me inspirou a começar a escrever esse texto. A cobertura da tragédia em São Luis do Paraitinga teve o mesmo efeito que as lições do meu antigo professor. Fez-me chegar a tempo a conclusão de que “Jornalismo é carreira motivada por doses generosas de paixão a arte e importância, supremas, de informar. Doação não apenas ao trabalho, mas a sua eficácia na vida de quem o acompanha”.

* Letícia Nascimento, 22 anos, é jornalista formada em 2008 pela Fatea – Faculdades Integradas Teresa D´Ávilla – Lorena/SP e atualmente trabalha na Band Vale FM, em São José dos Campos.

3 comentários:

  1. Noticiar das zonas de tragédia ou conflito põe ainda mais calor nessa necessidade de disposição. O realismo precisa ser tamanho que o repórter algumas vezes se acidenta dentro da notícia que relata.

    ResponderExcluir
  2. Falar de tragédias ou anunciar mortes
    que causam comoção sem perder a lucidez
    e a frieza, não...provavelmente eu
    não conseguiria.
    Ótimo texto
    Abraços

    ResponderExcluir
  3. Sim Letícia, é muito duro conviver direto com as notícias, pois parece que só as ruins chegam aos jornais. Já vivi isso durante muito tempo, e também chorei muitas vezes, e nem sempre eram tragédias. Às vezes era visitando asilos de velhos, ouvindo depoimentos de prostitutas, de aposentados...Eram tragédias do dia-a-dia, e era preciso engolir o choro e continuar a escrever. Entendo sua sensibilidade, mas o texto lindo que você produziu é fruto da tristeza que a tragédia provocou em você.Que fazer?
    Beijos

    ResponderExcluir