sexta-feira, 15 de janeiro de 2010




Raquel, a viúva

* Por Urariano Mota


Tudo começou com uma troca de emails. Na primeira mensagem, eu me referia a um projeto de site, a um sítio que pudesse abrigar as manifestações de literatura e arte de um coletivo chamado “Os amigos de 68”. Dizia eu, no primeiro email:
- Os amigos de 68 deveriam ter um sítio. É claro, não mais para encontros clandestinos, como antes em Igarassu, por exemplo, de uma louca e extraordinária viúva.

Ao que me responderam:
- Mas que história é essa de "como antes em Igarassu" (terra natal de minha falecida mãe), "encontros clandestinos de uma louca e extraordinária viúva" ?

Então eu voltei:
- A viúva, mulher extraordinária, não me recordo do nome dela agora. Mas o fato é que na granja de .... Sara? fizemos reuniões clandestinas de AP. Ou mais precisamente, onde estive presente, da UBES com Mirtes – liderança valorosa (que despertou muitas paixões, nem todas revolucionárias) no comando.

E recebi de volta:
- Qualquer paixão é revolucionária, ao menos para quem está apaixonado. A viúva tem alguma coisa a ver com o Eremias?

O meu correspondente se referia a Eremias Delizoicov, um bravo, assassinado aos 18 anos em 1969. E por isso respondi:
- Na mosca, no que se refere à paixão amorosa, que é subversiva e desestabiliza.

Mas a viúva nada tinha a ver com Eremias. A reunião da UBES foi em 1970 ou 1971. Ela era amiga de um amigo meu, Tonhão, grande violonista, magro, altíssimo e anarquista, que nos apresentou a ela, e daí.... Tonhão possuía uma paixão nada platônica por ela, que disso sabia, e dava-se ares de rogada. (Parece que esse ar de rogada foi tudo o que nosso Tonhão conseguiu.) Tonhão hoje, infelizmente, é falecido. Eu lhe fiz uma homenagem como um dos personagens do meu romance “Os corações futuristas”. A gente faz o que pode.... Vida que segue.

E aqui ficamos Ou ficaríamos. Mas a pessoa a quem eu chamava de Sara, e que na verdade se chama Raquel, não merece a injustiça de ser mencionada de passagem, de não receber sequer um registro. Primeiro do que tudo, de Raquel deve ser dito que se não fosse ela a pessoa que respeitávamos, todos que fomos à sua casa poderíamos hoje estar mortos. Ela, viúva, louca e desfrutável para os nossos corações, somente para os nossos corações de esperança e mais nada, e, se Tonhão não nos enganou, para ninguém e mais nada, cedeu, doou a sua granja para encontros clandestinos da organização (que chamávamos de partido) Ação Popular, em uma parte rural de Igarassu. (Que a norma burra manda que se escreva Igaraçu, porque etc. etc. e etc.)

Mas não só. Essa mulher, (e como eram solitários, desertos e secos de tudo aqueles anos de nossas vidas) essa mulher que em mais de uma oportunidade foi combustível de nossa imaginação, também cozinhava como uma feiticeira, e produzia umas galinhas da sua criação, e temperava um arroz natural, que parecia ser cultivado nas margens do rio que cortava sua propriedade, e, achando isso pouco, gargalhava e sorria conosco, não sei, não sei, agora, se por um instinto de perversão, de serena crueldade, porque, mais velha que nós, e sendo por natureza, formação e vontade fêmea, devia adivinhar o efeito sobre nós do seu riso aberto. Nós então sorríamos também, sorríamos muito, sorríamos até de nervoso, mas sorríamos, gargalhávamos, como quem diz, vamos rir, vamos sorrir, porque talvez amanhã os nossos risos sejam apenas os dentes.

Lembro que a “conheci” duas vezes. Na primeira delas, como me referi na mensagem acima, ela me foi apresentada por Tonhão, o negro mais alto e irresponsável e gentil que os nossos olhos já viram. Tonhão, de batismo Antonio Agostinho, era um homem bom, sei agora. Sei porque nos apresentar a Raquel foi uma divisão conosco de uma pessoa amorável, o que só é possível em quem é generoso. Claro, nisso havia também uma exibição dos seus dotes para nos mostrar a mulher que ele poderia ter (e o futuro do pretérito então era um futuro do presente, quando não um presente a seguir), claro, nisso havia um certo exibicionismo, porque não existem indivíduos puros, santos de madeira inteiriça e homogênea, ainda que se chamem Tonhão, um negro como nós e falecido. Dessa primeira vez, em um dia de domingo, levamos para a granja em Igarassu algumas cervejas e fome, fome de tudo, que nada tínhamos de mais natural naqueles tempos. Os selvagens chegaram, Raquel poderia nos ter dito. Mas não. Recebeu-nos como se recebem as pessoas mais ricas e importantes em um dia de domingo. Arroz da terra, feijão que parecia pular do solo a nossos pés, galinha ao molho de um modo que não é cristão e misericordioso lembrar. E redes. E conversas. E música de Baden Powell, que Fernandão pôs no que ele considerava o seu carro e casa da época, pelo sacrifício com que o conseguira: um toca-discos Philips, portátil, que transformava qualquer merda de vida em paraíso. Lembro que Tonhão bebia, piscava um olho para Raquel, que, maliciosa, não o desesperançava, nem tampouco o incentivava para um passo adiante, e sorria. Nós todos acompanhávamos essa corte como se fôssemos marinheiros de reserva, prontos a substituir o nosso almirante negro.
- Senhora, aqui nos tem. Ele é nosso grande amigo, mas, mas, enfim....

É interessante notar, percebo agora, que Raquel nos acordava a esperança de possuí-la sem qualquer recurso vulgar, vale dizer, decotes (talvez, murmura-me um diabo contraditório, talvez porque os seios já não fossem assim tão plenos de formas), não nos insinuava uma saia mais curta, porque ela, percebo bem, batia-se por uma moral que era libertária, mas não exatamente Mary Quant. Ela nos acendia pela pessoa que era, pelo que adivinhávamos das reticências da sua fala e da sua vigorosa liberdade. Mas isso, essa percepção, somente ganhamos a distância, no instante em que somos menos burros e, valha-nos Deus, quando temos infinita melhor paciência, um bom nome para o decréscimo do vigor que fodia até borboletas.

Na segunda vez, foi a “trabalho”. Estávamos em um encontro (Congresso? Não sei, gostávamos dos nomes mais pomposos) da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, nome que repete a observação anterior entre parênteses. E para isso Raquel nos cedeu a sua granja, uma vez mais. Pois bem, não pensem por favor que sou humorista. Pois bem, eu era o segurança. Eu estava ali para cuidar da segurança de todo o grupo, onde sobressaía a pessoa ruiva, de coxas laceradas por ácido, cujo nome era Mirtes. Melhor, éramos dois seguranças, e não pensem de novo que sou humorista, os seguranças éramos eu e Spinelli. Amigo de infância, alto, magro e com habilidade para uma corrida de tartarugas, Spinelli era o parceiro ideal para sondar e perscrutar o horizonte, se policiais, facínoras e exércitos com metralhadoras nos assaltassem. Que armas tínhamos? – Os olhos. Que instrumentos de prospecção possuíamos? – Eu, um livro de Hemingway, Paris é uma festa (“Esse cara é revolucionário, lutou na Guerra Civil da Espanha”, eu dizia), Spinelli, um volume de Lukács, cuja luz deveria iluminar a nossa vigilância. Posto de observação? – Duas redes, que balançavam e eram boas, na fresca das matas da tarde.

Súbito, um movimento ao longe. Um ser magro e pequeno como uma ave avança por entre as árvores. Eu sabia quem era, na época eu enxergava bem, eu sei na hora que se trata de Geraldo Sobreira, mais conhecido pelo honroso nome de Galo Cego. Ele assim se chamava porque era míope profundo, e descarnado como os galos magros e sem pêlo. Por isso, de brincadeira, anuncio a meu companheiro de segurança:
- Atenção. Um cego sobe o caminho.

Ao ouvir isso, o meu companheiro na segurança corre, à sua maneira corre, para anunciar ao grupo que discutia a luta contra a ditadura:
- Um cego! Cuidado! Um cego vem aí!

Essas coisas vêm quando lembro a pessoa de Raquel, a quem todos amávamos, de uma forma carnal ou de uma forma idealizada. Raquel, a viúva, a quem tanto devemos, até mesmo a vida. É triste, esta é minha nota final, que pessoas tão indispensáveis quanto ela jamais recebam um agradecimento, um busto, uma página, quando falamos dos grandes vultos que amargaram e sonharam a revolução.

* Escritor e jornalista





5 comentários:

  1. Para quê um busto pomposo ou honrarias
    gravadas em metal?
    Nada disso traduziria nem a metade do
    que nos proporcionou.
    Adorei Urariano.
    beijos

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  2. Tanta ternura e delicadeza para falar desse tempo e dessa personagem. Não é preciso embrutecer-se para lidar com brutos. Belas armas, belos sonhos, melhores lembranças. Sobreviveu e veio nos contar. Toda uma geração subiu no cometa e voou longe. Hoje essa coragem parece menor, mas sabemos que foi imensa.

    Destaco: " porque não existem indivíduos puros, santos de madeira inteiriça e homogênea", foi demais. E a vitrolinha? Veja só: "um toca-discos Philips, portátil, que transformava qualquer merda de vida em paraíso".

    Vontade de voltar no tempo.

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  3. Núbia e Mara,o que seria da gente sem os comentários de vocês?
    Passei a manhã de hoje ouvindo Santana, Samba pa ti, Oye como Va... com o pensamento nos anos 70.
    Abraço.

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  4. Quantos sonhos, quantas lembranças carregadas de ternura...E pensar que tiranos, cujos nomes teimam em não querer revelar,assassinavam a sangue frio jovens como vocês eram em 70.
    Em tempo, Urariano: em 70 eu estava no Recife, fui presa no lugar onde passei minha infância , e depois levada pro dops, no Recife.Motivo? Tirei um foto do quartel onde eu andava de patins...

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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