sábado, 23 de janeiro de 2010




Ainda há juízes no Brasil

* Por Deonísio da Silva

Em 1745, o todo-poderoso Frederico II, rei da Prússia, manda construir o famoso castelo de Sans-Souci, que fica pronto dois anos depois. Déspota esclarecido, amigo de escritores e artistas, rodeia-se ali de sábios de várias nacionalidades, especialmente franceses. Voltaire é um dos que mais freqüentam sua residência.

Um de seus áulicos, porém, mais arbitrário do que o governante a quem serve, ainda que sem as mesmas luzes, quer espantar para longe da vizinhança um modesto moleiro, para que o pequeno empresário e seu moinho não ofendam a bela paisagem que cerca a construção. O intendente tem a seu favor a lei informal, jamais promulgada, mas vigente em tais circunstâncias, que o político brasileiro José Maria de Alckmin tanto temeu quando ousou imaginar o que iria fazer com todos os poderes do Ato Institucional Número 5, não o ditador ou seus ministros, mas o guarda da esquina.

Parodiando Camões, nessas horas "uma nuvem que os ares escurece/ sobre nossas cabeças aparece". E "tão temerosa vinha e carregada/ que pôs nos corações um grande medo". Dando a entender que fala em nome do Rei, a autoridade vai fazendo propostas em cima de propostas para que o moleiro se mude dali, ensejando assim a destruição do moinho. Nenhuma delas surte o efeito desejado. O intendente passa, então, às ameaças. Não é, aliás, assim que um de nossos senadores disse ter alcançado o poder? Ou, de acordo como sintetizou: "verba numa das mãos, chicote na outra"?

O moleiro, porém, permanece irredutível e não teme as ameaças. A querela chega aos ouvidos de Frederico II e o monarca resolve conversar com aquele homem que lhe parece tão corajoso. Pergunta-lhe qual o motivo de ele não ter medo de ninguém, nem do rei. A resposta do moleiro foi resumida em frase que se tornou célebre, depois freqüentemente invocada em situações em que o Judiciário é chamado a limitar o poder dos governantes: "ainda há juízes em Berlim". Ele lutaria contra o rei na Justiça. E um juiz teria que amparar sua decisão em lei que obrigasse o moleiro a se mudar dali. Frederico era poderoso, mas não era burro. E o moleiro continuou onde estava. O episódio passou à posteridade transfigurado na literatura, tendo inspirado o escritor francês François Guillaume Jean Stanilas Andrieux a escrever o conto O Moleiro de Sans-Souci.

Pois no Brasil, nos tempos que vivemos, algumas frases também haverão de se tornar célebres, resumindo momentos decisivos de nossa crônica política. "Confesso que menti", do senador José Roberto Arruda, pode vir a ser uma delas. O senador poderia, quem sabe, escrever um livro cujo título seria sua frase, na linha de Confesso que Vivi, de Pablo Neruda. Regina Borges, a funcionária do Prodasen, escreveria outro: "Confesso que obedeci". Falta, porém, ainda o livro de ninguém menos do que o ex-presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, de quem seus inquisidores esperam que pronuncie a frase: "confesso que mandei". Por enquanto, ele, exagerado em tudo, já pronunciou outra frase famosa: "eu tenho a lista". Depois negou, renegou e finalmente admitiu ter tomado conhecimento de uma lista com os votos dos senadores na sessão que cassou o senador Luiz Estevão. Mudou, porém, para: "eu vi, mas rasguei a lista".

Desconfio mais dos santos impolutos do que dos pecadores, confessa o cronista depois de ler, ouvir e assistir às sessões do Conselho de Ética do Senado. No Senado, nas Câmaras federal, estaduais ou municipais, já foram cometidas injustiças que demoraram ou não puderam mais ser reparadas. No Judiciário é mais difícil acontecer isso. Pode ser que culpados não sejam punidos, mas é quase impossível punir um inocente.

* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.


2 comentários:

  1. Essas são algumas das frases que
    não gostaria que caíssem na "boca
    do povo".
    A banalização se espalha como uma virose
    que poucos combatem...
    Parabéns pelo texto.
    Abraços

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  2. Também não acredito, e com você faço coro à frase " Desconfio mais dos santos impolutos do que dos pecadores". Aqueles sim, são os mais dissimulados, e por isso mesmo perigosos feito cobras.

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