sábado, 30 de janeiro de 2010




A vez da música prapular brasileira

* Por Euclides Farias


Foi provavelmente o ferino Carlos Imperial, ao publicar uma notinha em sua influente coluna na Revista do Rádio, nos idos de 1963, quem detonou a pretensão de Nelson Motta de se tornar músico. Fã da então novíssima bossa nova, época da proliferação dos sextetos, Motta também lançou o seu, batizado pelo padrinho da banda, Ronaldo Bôscoli, de “Seis em Ponto”. Imperial escreveu, devastador: “A idéia não é boa: o nome vai dar chance a trocadilho dizendo que só vieram para fazer hora”. Depois do petardo, o Brasil começou a ganhar um lúcido crítico musical, letrista talentoso e excepcional historiador da música chamado Nelson Motta.

A lembrança do episódio – contado no livro Noites Tropicais, pelo próprio Nelson – vem no rastilho de pólvora espalhado por músicos que vêem a si próprios como reinventores da roda. Pretensos donos de estilos vanguardistas, mutilam composições irretocáveis, imprimem arranjos de mau gosto com a percussão sufocando vergonhosamente violão e sopros, interrompem a interpretação para grunhidos supostamente modernos e, com suprema soberba, ainda esperam aplausos da platéia. Um giro por bares e shows nas cidades e por catálogos fonográficos revela a tal genialidade que não resiste à primeira audição.

Não vai aí nenhuma simpatia pelo conservadorismo que despreza o experimental e o estudo que requalifica e leva às novas gerações a beleza de obras musicais, sem desfigurar-lhes a essência poética ou melódica. Mas a tolerância, por isso é assim chamada, tem limite. A “nova roupagem”, “a releitura” e a “visita”, expressões cunhadas para muitas vezes invadir a produção alheia sem nada acrescentar-lhe, povoam os cadernos de cultura de jornais e páginas de revistas, anunciando a reabilitação de uma música ou de um compositor postos no ostracismo, momentâneo ou secular. O show, você vai assistir, são outros quinhentos. É muito barulho por nada.

Grande parte dos partidários desse tipo de experimentalismo inconseqüente merecia estar mesmo sob o alvo de um código de defesa do consumidor de música e do tiroteio verbal de Imperial.

De Elza Soares veio talvez o melhor exemplo de reabilitação musical que dignifica o artista. No último disco da cantora, com composições de gente da pesada, ela escancara a verve jazzística que mesmo o samba-jazz deslustrava. Elza solta a voz como fazia na época em que escandalizou o auditório de Ary Barroso com sua cruel sinceridade, sem auto-piedade, ao relatar a vida severina que levava num morro carioca. O melhor do disco, porém, é que Elza libertou-se de certo repertório que lhe aprisionava o timbre, como já admitiu a própria cantora.

Se pudesse ouvi-la hoje, Imperial, o impiedoso, teria corrido à velha máquina de escrever, falsamente generoso: “A carne mais barata do mercado é a carne negra. Mas, no caso de Elza, vale a pena pagar mais caro por ela”. Atordoado pelos tempos modernos, aprenderia com a fina ironia de Nelson Motta que a discografia nacional pôs de lado a qualidade para se dedicar preferencialmente à música prapular brasileira.

Jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.



2 comentários:

  1. Elza Soares é uma diva da música
    popular brasileira, não é a única
    óbvio, mas sua voz rasgada vai lá
    no fundo. Espero ouvi-la ainda por muito
    tempo.
    Abraços

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  2. Ficou o suspense sobre o quanto de músico teria Nelson Mota. Surgiu o critico de música e escritor, além de letrista. A troca parece ter sido melhor.

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