domingo, 17 de janeiro de 2010




Era uma vez


* Por Cecília Gianetti

O inesperado crescimento dos índices de leitura nacionais refletiu sobre a TV aberta brasileira na forma de uma queda até então inédita de Ibope - ou seja: do nada, o pessoal começou a ler insaciavelmente e parou de ver televisão.

Afundados em números vermelhos, fumando debaixo de sinais de Não Fume nas sedes das principais redes de TV do país, os diretores de programação compreenderam (!) que só haveria saída através de uma reformulação drástica em suas grades. Num primeiro momento, as mudanças insinuaram-se discretas, com reprises de "Meu Pé de Laranja Lima" e "Sítio do Pica-Pau Amarelo". A Globo até começou a exibir "Orgulho e Preconceito" no horário da "Malhação" (aquela minissérie da BBC que tem o Mr. Fitzwilliam Darcy saindo de um lago com as roupas de baixo do século XIX molhadas, coladinhas ao corpo). Mas o público brasileiro não era mais tão facilmente impressionável. Os diretores – ainda fumando desbragadamente – decidiram que era a hora de ousar. E dá-lhe "Arco-Íris da Gravidade" com Lima Duarte como o tenente Tyrone Slothrope (um pouco velho para o papel mas já era hora de darem alguma coisa cutting-edge pra ele) e a voz de Zé Wilker pontuando a narrativa.

E como o negócio pareceu agradar um bocado mais que o "Sítio do Pica-Pau", logo em seguida emplacaram adaptações de "Everything is Illuminated" ("Tá Iluminado, Tá Tudo Iluminado!", com a excursão do protagonista pela Ucrânia substituída por um desses safaris urbanos que levam gringos montados em jipes às favelas cariocas. O guia Alexander Perchov, como não podia deixar de ser, ficou a cargo de Matheus Nachtergaele); "Eles eram Muitos Cavalos", do Ruffato, virou minissérie, e toda a obra de João Antônio e Ferrez foi filmada no esquema "Caso Verdade".

Era muito mas não era o bastante para o nível de exigência atingido pelo brasileiro. Seus (nossos) elevados padrões envergonhavam a Europa – especialmente os franceses, que voltaram a atear fogo em carros, bicicletas e velocípedes, indignados. De olho no mercado estrangeiro, nossos roteiristas faturaram em dólar escrevendo material de gosto duvidoso. Caso de "The Gel Bar", sobre duas garotas taradas por Silvia Plath que de dia traduzem "The Bel Jar" e à noite lutam numa boate de strip lambuzadas de gel.

Era difícil superar o brilho de "Arco-Íris da Gravidade" – Hans Donner é Hans Donner, né, gente – e logo o público tornou a desviar da telinha o pouco interesse que ainda dedicava a ela para retomar grossos volumes de Thomas Mann e Pynchon instead. Claro que foi engraçado ver Murilo Benício imitando Byron no Faustão ("Dr. Fausto", na nova versão do programa dominical), mas entretenimento não podia ser só isso. As crescentes hordas intelectualizadas pediam mais. "More, more!".

Reluzindo ao sol com seu home made bronzeador de urucum com cenoura, numa das mãos o espetinho de queijo coalho, noutra a cerveja envolta num isopor no formato da lata, o povo brasileiro zombava de boca cheia no "Caldeirão do Huck": "Wölbt sich der Himmel nicht dadroben? Liegt die Erde nicht hierunten fest?. O mundo invejava a nação cheia de riquezas naturais que arrotava erudição na TV.

O Ibope, no entanto, ainda perigava despencar, e a alta cúpula das redes televisivas teria continuado a perder dinheiro e paciência se não fosse por uma idéia genial...

O BIG BOOK BRASIL

O BBB foi o pulo do gato. Cada um dos participantes, enquanto concorresse na casa pela preferência do público, tinha que produzir um livro, conto ou romance. Já na primeira prova, que decidiu quem escreveria o quê, o revés para alguns BBBs: teve contista que deu azar de pegar romance e romancista obrigado a aprender a arte do fazer curtinho. Ao longo de 70 dias de confinamento, o público teria nove saraus para decidir quem era o autor da obra mais interessante. Ao vencedor, o Milhão e a primeira edição do livro pela Cosac (capa dura).

Escrever na frente das câmeras é estranho para qualquer um, mas dificuldades maiores encontrariam a blogueira e o jornalista que entraram no programa "pela janela".

Com apenas uma ligação, Márcia Moreira da Silva, a MarSil, garantiu seu lugar na casa. Mineira de Poços de Caldas, chegou humildezinha com seu laptop quando os participantes cultos já estavam instalados na casa. Desde o começo não escondeu de ninguém o desconforto que sentia ao ser chamada de blogueira pelo crítico da Veja.

- O problema, Bial, é que ele fala isso como se eu fosse sifilítica, leprosa e analfabeta. Pelo menos eu sei qual é meu sonho desde a primeira vez que liguei um computador. Eu sempre quis ser escritora. Ele não. Passou a vida enrustido e veio sair do armário na frente do Brasil inteiro. É um frustrado, Bial!


Réplica da ABL construída no Projac, onde ficaram os participantes do BBB

Da Pavuna surgiu Antonio Maria. "Meu pai era amigo do cronista", explicou ele, que também enfrentaria o preconceito dos colegas por preferir escrever não-ficção. Com experiência na cobertura de Cidade em jornais como O Povo e O Dia, seu sonho de publicar uma grande reportagem só poderia ser realizado com o Big Book Brasil. À beira da piscina, enquanto os outros discutiam "Aspectos do Romance", de E.M. Forster, Antonio Maria conquistava o carinho do público e o coração de MarSil, lamentando-se sobre a vida de repórter da geral.

Esse não foi o único namoro que engatou na casa. Os saraus sempre terminavam com um casal debaixo do edredon: Sonia Sanja – a escritora de São João do Meriti influenciada por Bukowski, literatura dos anos 20, W.C. Fields e Graciliano Ramos (de quem roubara o estilo de beber cachaça enquanto batia nas teclas) – e Pedro Paulo Thiago (o que psicografava).

O Brasil parou quando Mauro Cunha, o crítico literário, teve seu primeiro bloqueio de escritor. Encolhido em posição fetal numa das prateleiras da dispensa, chorando muito, pediu a Deus para que o tirasse da Casa. Seu analista, que assistia ao programa no pay-per-view, garantiu que o paciente fazia charme: 'Cunha não acredita em nada, muito menos em Deus. Isso é molecagem dele'.

No auge dessa efervescência cultural, um "terrível golpe" armado contra o Presidente – aquele que de nada desconfiava – pôs abaixo toda a literatura emergente. Sem o apoio do líder deposto com que a cultura contara enquanto durou o mandato, nunca mais a TV brasileira experimentaria tamanha abertura (sic), nem o povo brasileiro leria tanto. (Se vocês acharam o final decepcionante, imagina a gente).

* Escritora e jornalista carioca, tem contos publicados em revistas e em antologias das editoras Record, Ediouro e Casa da Palavra. Seu primeiro romance será lançado em 2006 pela Agir. É colaboradora do site NoMínimo [www.nominimo.com.br] e edita a revista eletrônica Bala [www.revistabala.com.br]. Faz stand-up comedy todos os dias no [ www.escrevescreve.blogger.com.br


2 comentários:

  1. Texto delicioso.
    A referência ao livro "Meu pé de laranja
    lima" me fez viajar no tempo. Sempre fui
    rata de livros, lembro-me que chorei muito com
    ele.
    Adorei.
    Abraços

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  2. Perfeito. Pena que é ficção. Adoraria que as pessoas ficassem mais exigentes. Caso comecem a ler, logo ficarão. E a programação televisiva vai ficar às moscas.

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