quinta-feira, 28 de janeiro de 2010




As nossas contradições expostas nas ruínas do Haiti

* Por Raul Fitipaldi

Na temporada de turismo 93/94, tivemos um barzinho numa esquina da Barra da Lagoa. Botequinho pobre para encher a barriga até que chegasse a época das aulas. Tinha umas madeiras pintadas de verde, limpas e bonitas, que usei para que as pessoas conhecessem os nomes dos nossos libertadores. O primeiro nome que pintei com tinta preta foi François-Dominique Toussaint Louverture (20 de maio de 1743 — 8 de abril de 1803). Louverture tinha sido o primeiro homem a vencer as forças coloniais que ainda açoitam a América Latina, e negro. Meu fascínio por Haiti e sua gesta tinha ingredientes literários: “Os governantes do Orvalho”, de Jacques Roumain (1907 – 1944). Li este livro numa semana gélida em Buenos Aires, num bairro de classe trabalhadora na Rua White, que ironia.

Desde então Haiti fez parte do meu menu de preocupações. Quando viemos para Meiembipe, em 1991, tinha findado o primeiro capítulo de Jean-Bertrand Aristide e o segundo tinha começado. Em ambos capítulos, o Império foi ator principal. Como Aristide tinha obtido um 67% nas eleições que o levaram à presidência, era importante dar um susto no novo líder e deixar bem claro que só voltaria ao poder se os gringos quisessem. Portanto, meses depois de assumir, Aristide sofreu um golpe de estado. Nada demais, num país onde 21 presidentes tiveram finais trágicos, e os governos provisórios se mesclavam com ditaduras sanguinárias como as de Magloire e Papa Doc e Baby Doc Duvalier. Em 1994, quando já iniciávamos nossos projetos de aulas e em Meiembipe governava o Prof. Sérgio Grando, Aristide voltou ao “poder” da mão da gringada. A mesma que o destituiu definitivamente em 2004 e o tirou da sua casa de um chute até a África do Sul (avant première do que fizeram com Zelaya em Honduras, junho - 2009). Aristide não aprendeu do trato que os ianques deram ao seu amigo, o narcotraficante Manuel Antonio Noriega, ex-ditador panamenho. Sadam Hussein também não. Hoje muitos líderes de esquerda apóiam Aristide e seu retorno, mas, é bom lembrar que Aristide pelo menos foi ingênuo e sua provável ingenuidade é paga com sangue, miséria e morte pelo seu povo.

Os gringos e os franceses têm estado sempre manipulando as fragilímas e ocasionais democracias haitianas, e massacrando seus habitantes. Contando naturalmente com o apoio das oligarquias negras e brancas de toda a ilha que compreende o próprio Haiti e a República Dominicana. As multinacionais e as empresas de exploração humana, como a do Vice-Presidente do Brasil, José Alencar – Coteminas, têm se refestelado com as tripas do povo haitiano. É interessante perguntar-se por quê um governo dito democrático e de “esquerda” como o do ex-operário Lula dirige a horrenda força de ocupação conhecida como MINUSTAH, constituída por soldados de 20 países, e pior, por quê a metade das tropas pertencem a países da América Latina. Será que há outras Coteminas na América Latina preocupadas pela paz dos cemitérios no Haiti? Claro que há, mas não só, há liberação de empréstimos do BID, do FMI etc. É contraditório com o discurso e o momento histórico da América Latina, em pleno desenvolvimento de uma nova ofensiva imperialista que Brasil siga ocupando Haiti, e há que rechaçar na rua essas invasões militares armadas até os dentes, que por conta do terremoto de 12 de janeiro aumentaram seu poder de repressão e violação aos direitos humanos. Vejamos que países têm tropas perseguindo gente pobre, miserável, explorada, violada, assassinada no Haiti, defendendo os interesses dos grandes negócios, e a estratégia do imperialismo gringo e francês. Com efetivos militares: Argentina, Benim, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Sri Lanka, Estados Unidos e Uruguai.

Com policiais e civis: Argentina, Benin, Burkina Faso, Camarões, Canadá, Chade, Chile, China, Colômbia, Egito, El Salvador, França, Granada, Guiné, Jordânia, Madagascar, Mali, Maurício, Nepal, Níger, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Romênia, Federação Russa, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Espanha, Togo, Turquia, Estados Unidos, Uruguai, Vanuatu e Iêmen.

Os casos mais aberrantes da América Latina não são os da Colômbia ou do Peru. Nada mais natural que essas pontes imperialistas façam parte da invasão. O desprezível e contraditório é que haja militares argentinos, bolivianos, brasileiros, chilenos (já deixará de ser aberrante nos próximos meses), equatorianos, paraguaios, e uruguaios. E como cereja no bolo, policiais e civis salvadorenhos. Será que os povos destes países concordam, será que o pleno desses governos concorda, quais são os interesses, os acordos, quando foram feitos e por qual razão, por exemplo, Evo Morales e Rafael Correa não retiram essas tropas? Por quê no marco da ALBA os países não tomam mais uma decisão soberana, além de ajudar Haiti com médicos, enfermeiros, técnicos diversos, maestros... não retiram já essas tropas indecentes? Lugo e Mujica entendem como normais e benéficas essas tropas de ocupação? Argentina, Bolívia, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai também integram as forças de ocupação no Congo, comandadas pelo Reino Unido. Será que essa invasão de tropas estrangeiras trouxe paz e equidade no Haiti e no Congo?

Certamente não, mas usurpa riqueza e dá controle estratégico e militar numa região como a que ocupa o Haiti, onde os ventos mudaram bastante para gringos e europeus. O crescimento e estabilização de governos progressistas, a desinteressada contribuição da Venezuela e de Cuba com os países da região, o protagonismo dos povos originários, isso tudo cria um alerta para o Império e as oligarquias imundas que ainda pretendem usufruir do que resta em cada país da região, e que além disso, possuem um ódio racista violento contra todo o que seja índio e negro, e uma patologia criminosa contra os pobres e as classes trabalhadoras. Portanto, é impossível pensar que um país, por exemplo, como a Bolívia, dirigido por um cidadão originário, tenha tropas no Haiti, não há desculpa o suficientemente boa. É uma contradição inaceitável. Como também é uma contradição inaceitável que o Equador tenha pessoal prestando serviço aos interesses que Correa insistentemente denuncia como inimigos da liberdade dos nossos povos. Ou Haiti não é nosso povo? Que exclusões a mais precisa sofrer o primeiro país que já foi livre na América Latina?

É preciso que em homenagem à história da América Latina toda, em defesa da humanidade, do meio-ambiente, da liberdade, dos mais pobres e danificados pelo capitalismo imperialista se anule de maneira imediata e incondicional a dívida externa que se impõe ao Haiti, e que seu povo não produziu nem da qual é responsável; que os recursos que se disponham através das agências e organizações internacionais para reconstruir o Haiti não se tornem em dívidas e sejam plena doação; que se iniba a implantação sob qualquer desculpa de novas plantas de produção de indústrias multinacionais estimulando o investimento sem visa de lucro acumulado nas pequenas produções familiares e cooperativas; que não se alienem do poder do Haiti seus recursos naturais e que seu povo receba um salário acorde com os outros países da região garantindo a paz, a harmonia, a instrução e a reconstrução do país irmão. A ALBA, o Banco do Sul, as organizações sociais da América Latina devem brindar-se a esta tarefa, exigindo que países poderosos como Brasil sirvam de proteção política e econômica ante a visível e violenta tentativa imperialista e européia de avançar colonialmente encima do sofrimento infinito do povo haitiano e bloqueando as ameaças re- colonizadoras da nova ofensiva imperialista e das oligarquias apátridas. Que nossa Pátria Grande se levante na memória dos milhares de mortos e feridos do Haiti em defesa da Nossa Soberania Regional!

Neste verão de 2010, 16 anos depois de pintar aquele nome maravilhoso de François-Dominique Toussaint Louverture na humilde parede de um botequinho que driblou minha fome em Meiembipe, volto a pintá-lo no jardim da minha casa, junto ao fícus, para que floresça com as pitangas, os abacates, as goiabas e tudo o que Meiembipe dá para fazer um convite imaginário, e esperar os primeiros raios do amanhecer, com o espírito posto no coração dos verdadeiros governadores daquela terra das compas e orvalho, os negros que voltarão a ser livres nas terras do Haiti.

(Texto enviado pela escritora Urda Alice Flueger, de Blumenau/SC)

* Jornalista de Florianópolis/SC

Um comentário:

  1. "...Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?..."

    Esse pequeno trecho de "O Mercador de Veneza" sempre ressurge em minha lembrança...
    Que o Haiti volte a se erguer sem o peso do "martelo".

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