quinta-feira, 21 de janeiro de 2010




Difícil talento - IV

* Por Gustavo do Carmo

Agostino pediu demissão.

Não ficou muito tempo desempregado. Logo que saiu da obra foi esfriar a cabeça em um botequim de Botafogo, bairro onde Agostino, Elielton e outros cinquenta pedreiros erguiam o prédio residencial de oito andares.

Evangélico, Agostino não bebia e pediu um refrigerante no bar quando uma mulher de meia idade, um pouco gorda, mas bonita de rosto, com cabelos longos e desgrenhados sentou-se ao seu lado no balcão e pediu uma dose de cachaça.

Sem ter o que fazer Agostino ficou encarando a mulher que, incomodada com a observação alheia perguntou, mal-humorada:
— Tá me olhando por quê? Tá me achando feia?
— Não. Pelo contrário.
— Tá me cantando, é? Não sou chegada a homem não. Sou sapata com muito orgulho.
— É a sua voz que é muito bonita. Já pensou em cantar?
— Que cantar o quê? Não tenho dom pra isso não.
— Quem te garante que não?
— Eu. Tu tá muito chato! Eu nem te conheço, vim tomar minha pinga em paz e tu fica me perturbando pra cantar! Ah! Vai tomar banho! Tá querendo o quê?
— Bom, eu queria te ajudar. Mas se você não quer, não vou fazer mais nada.

A moça ri de deboche e provoca:
— Tu não tem cara de empresário porra nenhuma! Tu tem cara do maior 171!
— Se não quer ser ajudada, tudo bem! Mas não precisa me ofender, tá?
— Eu não quis te ofender, porra! Eu só não confio na sua cara! Nunca te vi mais gordo e você vem dizendo que quer ser meu empresário sem eu ter mostrado talento algum? Se não é 171 é maluco.
— Está bem. Está perdoada. Eu só quero ter o prazer de descobrir o talento de alguém.
— Por que não descobre o seu então, pô!?
— Porque eu não tenho talento algum. Aliás, por causa de duas pessoas não tenho talento nem para descobrir talento. Tentei descobrir um sanfoneiro e na filha dele uma jogadora de vôlei. Os dois me fizeram passar vexame. Acabei de brigar com o cara e agora estou desempregado.

A mulher, já bêbada, dá um sorriso sarcástico antes de descobrir a pólvora.
— Aaaaah! Já saquei! Tu tá precisssando de dinheiro! Por que não vai trabalhar? Por que, ao invés de ficar aqui bebeeeendo como eu, não vai procurar um emprego?
— O álcool já está fazendo efeito na sua atenção. Eu não disse que acabei de ser demitido?
— E daí? Sai de um emprego e vai procurar outro. Não tem nada demais.
— Ah! Amanhã eu procuro. Hoje estou cansado. Vou pra casa. Dá licença.

(Continua na próxima quinta-feira)

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores




Um comentário:

  1. A grosseria da mulher e os palavrões parecem muito exagerados, mas diante das circunstâncias, estão convincentes. O homem, manso demais, deve ser devido a religião que o ajuda a controlar-se. Dia difícil ele está tendo.

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