quinta-feira, 1 de outubro de 2009




Tudo é oblíquo

* Por Pedro J. Bondaczuk

O comportamento social das pessoas, em relação aos semelhantes, pouco ou nada mudou, ao sabor dos séculos. Prevalecem hoje, como ocorria há quatrocentos anos, os critérios de nascimento e de condição econômica na forma de avaliação e, principalmente, de tratamento dos indivíduos, em detrimento dos que tiveram origem obscura ou que jamais tivessem, como se diz popularmente, “ sequer um gato para puxar pelo rabo”. Essa constatação levou o gênio de Stratford-upon-Avon, William Shakespeare, a concluir, em uma de suas peças: “tudo é oblíquo”.

Você não trata, por exemplo, um político, digamos, um deputado federal, da mesma forma que o Seu Mané, do botequim da esquina, mesmo que seja público e notório que o primeiro seja um rematado corrupto, um ratão de esgoto, que drena para o seu bolso dinheiro indevido, que deveria servir para melhorar a vida dos cidadãos que ele representa e o segundo um cidadão honesto, rigoroso cumpridor dos deveres, bom pai de família, um sujeito religioso e, sobretudo, virtuoso.

Deixamo-nos levar (salvo exceções), até inconscientemente, por aparências, pelo “nome”, pelo cargo que determinada pessoa ocupa para determinar a forma como a devemos tratar. Nesse aspecto, portanto, todos somos um tanto hipócritas e consagramos um costume injusto e, no mínimo, inadequado, que se tornou tradição, quando deveria ser modificado. O ideal é que a transparência prevalecesse em nossos julgamentos e, sobretudo, na forma de tratarmos os outros. Não é, óbvio, o que ocorre.

Shakespeare expressou, a esse propósito, pela boca de um de seus personagens: “Dois gêmeos nascem da mesma matriz; doure-se um deles, o melhor aquinhoado desprezará o outro. Eleve-se o mendigo, seja rebaixado o senhor: ao nobre unir-se-á um desdém hereditário, ao mendigo, uma dignidade nativa. A comida engorda o animal emagrecido pela fome. Quem ousará, quem ousará levantar-se em sua lealdade de alma e dizer: 'Este homem é um adulador'? Se ele o é, todos também o seriam; pois cada lance da escada social é exaltado pelo que o antecedeu: o salafrário sábio prosterna-se diante do imbecil empanturrado de ouro”.

Portanto, o bardo de Stratford-upon-Avon tem ou não razão ao assegurar que “tudo é oblíquo”? Qual seria a sua reação, se vivesse nos dias de hoje e constatasse que nada mudou, em termos de comportamento social e de avaliação das pessoas, em relação ao que ocorria na Inglaterra do século XVI (e provavelmente no restante da Europa e, por extensão, no mundo todo)?

Querem um critério mais estúpido do que esse, o da “linhagem”, da origem, da família em que se nasceu? Quem pode assegurar, com absoluta certeza, que seu pai é, realmente, o que consta em sua certidão de nascimento? Quem pode jurar sobre a Bíblia que é filho “legítimo” e não fruto de uma relação extraconjugal? Talvez aquele que tenha como atestado um teste de DNA. Todavia, nem este é 100% infalível! E, ademais, isso importa? No quê? Tolice. Pura tolice. Mas é um dos critérios que prevalecem para que uns se considerem superiores a outros.

Quanto à ocupação que se exerce, se trata de algo até mais idiota do que a questão do nascimento. Ninguém é eterno e muito menos insubstituível. Hoje o sujeito ocupa um cargo que lhe dá certa soma de poder e amanhã poderá ser demitido, ficar doente ou morrer. E toda aquela empáfia anterior irá por água abaixo.

Já nem comento tanto a questão da fortuna, posto que esta é instabilíssima. Conheço muita gente que recentemente nadava em dinheiro e que hoje está atolada até o pescoço em dívidas, fugindo dos credores e tentando achar uma forma de garantir o jantar do dia.

Shakespeare, pois, tem ou não razão, ao constatar que “cada lance da escada social é exaltado pelo que o antecedeu: o salafrário sábio prosterna-se diante do imbecil empanturrado de ouro”? Os critérios para medir o valor de uma pessoa não poderiam e nem deveriam ser estes. Isto é para lá de óbvio, mas esse comportamento estúpido, de bajulação explícita, estranhamente, permanece imutável em pleno século XXI, no terceiro milênio da Era Cristã.

O compositor carioca, Billy Blanco, fez uma tirada genial, na letra do samba “A banca do distinto” (consagrado na voz de Dóris Monteiro), em que diz, em determinado trecho: “A vaidade é assim, põe o bobo no alto/e retira a escada/mas fica por perto esperando sentada/mais cedo ou mais tarde/ele acaba no chão./Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco, afinal/todo mundo é igual quando a vida termina/com terra em cima e na horizontal”. E não é o que acontece?!!! Tem razão, portanto, o bardo Shakespeare: tudo, de fato, é oblíquo! E até demais para o meu gosto!

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

2 comentários:

  1. Caro Pedro, parabéns pelo combate ao preconceito; principalmente, o preconceito de classe que varre o mundo desde sempre e, entre nós, chega a se confundir com o racismo. Acima disso tudo, relembro Heiddeger (devo ter escrito errado, claro): "Você é aquilo que você faz com o que fizeram de você". Ou numa versão patrícia de Noite Ilustrada: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".

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  2. Mesmo com um discurso progressista como este, nos pegamos e você possivelmente também se pega fazendo essas horrendas avaliações. O meu filho garante que eu não o ensinei nenhum preconeito. Quando penso de um ponto de vista preconceituoso trato de me redimir, mesmo que tudo tenha acontecido apenas em pensamento. A aparência ainda é o maior e mais importante predicado avaliado socialmente. Vemos fazer e fazemos isso sistematicamente. Sua análise nos diz como somos tolos, até quando queremos mostrar o oposto.

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