sexta-feira, 23 de outubro de 2009




Chico Buarque, meu caro amigo

* Por Urariano Mota


Quando Chico Buarque divulgou para o mundo “meu caro amigo”, os brasileiros sofríamos o ano de 1976.....não é isso. Que começo mais triste e medíocre para estas linhas! Deveríamos dizer, quero dizer:

Quando ouvi pela primeira “Meu caro amigo”, eu estava angustiado e fodido em São Paulo, sufocado em um quarto do tamanho de uma cama, um passa-discos e um banquinho.

“Meu caro amigo, me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra ‘tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá
preta.....”

Bebíamos cachaça e a agulha retornava pesada, bêbada e sôfrega para a mesma faixa. Embriagávamo-nos de música, podíamos quase dizer. Se me entendem, quero não apenas dizer, mas apenas começar a dizer que a música, naqueles anos, já trazia em si a nossa dissolução, que seus acordes já exigiam, para a sua plenitude, o álcool, o álcool e o álcool: o nosso inferno, o nosso fogo e a nossa dor. Era um suicídio de representação. À distância, ficamos sem saber como escapamos. Ou vendo de outra maneira, porque sobrevivemos a essas anulações de fera que sente: somente a distância compreendemos que por isso mesmo, por essas celebrações musicais, representações da morte, escapamos.

Ouvir Chico naqueles anos não era bom. Era necessário, vital, urgente. Não sou cocainômano, não sei, mas possuidor de outros vícios, posso imaginar a sua sofreguidão. Por isso digo que buscávamos a música de Chico à semelhança de um viciado que procura a sua salvação, urgente, agora, para ontem. E isto, se aliviava, deixava em seu próprio alívio a ferida mais aberta. Até onde a memória alcança, lembro que nos momentos em que ouvíamos Chico a alegria não tinha morada. E isto, dividam comigo por favor a dúvida, não sei se vinha da própria natureza da sua composição ou das circunstâncias, do tempo miserável da ditadura militar em que vivíamos. Pois ele era a expressão musical da nossa asfixia.

Não pensem que reagimos como amestrados cães de Pavlov. Isto é, como ouvíamos muito Chico durante a ditadura militar, teríamos para sempre associado o azinhavre da baioneta à sua música. Ouçam, por exemplo, o Chico sem panfleto, sem mensagem antiditadura, um Chico sem bandeiras de maio de 68:

“O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh’alma se sentir beijada, ai

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai...”.

É uma celebração do amor, é certo. Um porque me ufano do prazer e carinho que meu amor me extrai e me dá. Um canto da alma feminina, segundo a tradição crítica, à qual poderíamos acrescentar: um canto do homem que faz a mulher cantar o prazer que recebe. Há muita beleza, e verdade nessa letra, percebemos. Mas reparem, é uma comemoração de Dioniso. Nela não há mãos dadas dos amantes ao pôr-do-sol, o relaxar após o êxtase. Pelo contrário, é um cântico aos jogos amorosos que anunciam a tempestade. A flecha rumo às nuvens carregadas, prenhes de raios e tormentas. Queremos dizer: é do estilo, é do gênero, é da alma do compositor a inquietação, a ansiedade, um mal-estar no mundo. O amor como um sempre contentamento descontente. A léguas de distância do “quando a gente gosta de uma pessoa, somente estar juntinho dela já é um grande bem”. Mas, mas, pero, pero. Falar próximo, da coisa real com a coisa real, falar da música desse grande compositor é tecer composições cheias de adversativas, de contradições, de idéias que zarpam, às quais temos de rápido agarrar no espaço.

Mas, primeiro. Essa ausência do amor apolíneo, esse ausência do cantar maturado da felicidade que partiu, como num Cartola, enfim, essa falta de serenidade, longe está de ser uma falta de beleza, uma restrição da arte plena. Desde Kafka aprendemos que de uma só maneira se faz arte: de todas as maneiras.

“De todas as maneiras
Que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos
Agora já passa da hora
‘Tá lindo lá fora
Larga a minha mão
Solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão...”

Porém, segundo. É de um barbarismo grande falar de música sem a música mesma. Não sei se na frase anterior eu consegui ser mais bárbaro. Porque desejo dizer: o aproximar-se, pela compreensão, pelo deciframento, de uma arte específica exige uma imitação de sua especificidade. Danou-se, parece que desta vez me expressei pior. Porque desejo dizer: um marciano não compreende um terráqueo. Sim, por incrível que pareça, agora estou mais próximo, porque desejo dizer: a arte, como expressão maior de e da humanidade, exige e impõe a visão e o usufruto humanos. E se vemos a arte como um total oceano, repleto dos outros Pintura, Literatura, Cinema, Música...., o atingir o específico desses mares é melhor feito por quem é da fauna, ou pelo menos sabe imitá-la tão bem como se não parecesse uma imitação. Aquele dito eterno de que a melhor arte esconde a sua arte. Ao que acrescentamos, tortamente: a boa crítica imita o que critica. A melhor, nem parece.

Sem embargo, terceiro. Nessa busca da música popular, cantada, é de um bárbaro reducionista (e não seria todo bárbaro uma redução? – aquela pessoa é um inimigo, e um inimigo é um pescoço a ser cortado?), é uma violência estúpida o amesquinhamento da canção à sua letra, que por sua vez se transforma em objeto autônomo, elevado a poema. Esta é uma operação que não engrandece primeiro àqueles a quem julga beneficiar, os compositores de música, e em segundo, muito menos, aos poetas. Os compositores, reis e soberanos, indispensáveis a todos nós, não precisam dessa invasão de domínio. Os poetas, por sua vez, sentem-se com toda justiça espoliados. E acompanhem essa dupla violência e injustiça: quando alguém destaca a letra da música sempre o faz com a lembrança da melodia; quando alguém destaca um poema, destaca-o do quê?, destaca-o da própria força do seu ritmo, imagem, verdade, expressão e síntese. Os poetas, soberanos absolutos no reino do poema, só têm as palavras, o compositor popular tem palavras e melodia, e, por vezes, ninguém sabe ao certo o que mais tem.

Porém, por fim. Falar de um compositor a partir das letras de suas músicas é abstrair a “interferência” da música em suas palavras, é, mais longe, esquecer o arranjo feito para a canção que não sai da lembrança, e, bem mais certo, é cortar a cabeça do intérprete, esse novo artista que relê e nos devolve uma canção absolutamente renovada, quando não outra, com toda radicalidade. Uma história da música sempre será uma omissão se desprezar o papel do intérprete. Em nome da nossa inteligência, dessa comunhão e cumplicidade que se estabelecem entre quem escreve e quem lê, façamos de conta que esquecemos inúmeros e infindáveis exemplos de músicas que não existiriam sem os seus cantores/intérpretes.

Um último entretanto. Milton Nascimento, o escultor e inventor de melodias, já declarou certa vez que não gosta de quem aponta em Chico a excelência da letra. Que isto é um elogio contra. (Saibam que no Brasil, aqui e ali, elogiamos contra. “Lima Barreto, o maior escritor brasileiro”, dizemos, contra Machado de Assis. “Grande coração tem este homem”, dizemos, para constranger uma pessoa a quem o generoso ajudou.) Isto porque esse destaque se faz para obscurecer a qualidade da música de Chico. Mas como, não digo realçar, mas como não lembrar as letras de um homem que acerta

“Ó pedaço de mim,
Ó metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu” ?

No momento em que escrevo, uma pequena pluma, vinda de não sei onde, desceu pela janela, soprada pela brisa da manhã. Procuro-a pelo chão, inútil. Quem sabe se isto não significa que é hora de suspender o coração e deixar para outra oportunidade estas anotações sobre a música de Chico? Eu não sou supersticioso, mas uma pluma pela manhã, de repente, enquanto escrevo sobre o compositor Chico Buarque, sei não, melhor parar. Até amanhã, se Deus quiser, mas se não quiser...

* Jornalista e escritor

3 comentários:

  1. Urariano
    Dizer o que, depois de tamanha beleza de texto? e ainda mais, sobre o Poeta que escreveu meu (de todo brasileiro consciente) roteiro de vida? Muitos tiveram seu roteiro com músicas do Roberto Carlos. Embora até hoje goste de "Detalhes", meu roteiro foi outro. Foi com as canções de Chico. Sim, foram os melhores anos de minha vida, nos piores momentos de meu país.
    Obrigada por esta página antológica. Chico precisa ler isto. Vou enviar à Anna de Holanda.
    Abração
    Risomar

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  2. A minha mãe lia muito, mas alardeava ter horror a poesia. Nesse parecer de inutilidade, eu sempre disse que não sei o que seria de nós se não fossem os poetas. Por isso isso eles foram inventados: para o nosso prazer. E tantos entre tantos, mas sem haver ninguém contra ninguém, entronizo Chico Buarque( estou lendo Leite Derramado, e me derramando sobre a falta de memória do personagem). E não faço favor nenhum e muito menos sou original. Caso eu morra depois de Chico, chorarei a sua morte e não será pouco não. Será quase como arrumar o quarto...

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  3. Grato, Risomar, pelo comentário generoso, conforme a tua pessoa. Grato, Mara, pelas observações e fidelidade na leitura.
    Chico é o homem mais amado do Brasil. Isso, por um lado, mata a gente de inveja. Por outro, deixa a gente muito feliz. Que bom que as brasileiras amem um cidadão, um compositor tão bom e fecundo.
    Abração.

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