sábado, 17 de outubro de 2009




Da paixão e outros deciframentos

* Por Anna Lee


Eu devia ter uns seis anos quando me dei conta de que sabia ler. Quer dizer, ler conforme os dicionários definem: percorrendo com a vista o que está escrito, proferindo ou não as palavras, mas conhecendo-as e interpretando-as.

No entanto, antes disso, o fato de não ser capaz de dar sentido às letras que se apresentavam diante de mim ajuntadas em palavras e frases nunca me impediu de ler, ler ao meu modo.

Uma vizinha, dois anos mais velha, andava pra lá e pra cá com o livro O Barquinho Amarelo. Lia-o de frente para trás e de trás para frente, às vezes em voz alta, outras silenciosamente, exibia suas figuras, sem jamais me deixar folheá-lo. Sequer tocá-lo. Era capaz de emprestar a boneca mais querida, mas O Barquinho Amarelo de jeito nenhum. Era pequena, poderia amassá-lo e, além do mais, para quê? Não sabia ler...

A mãe me explicou – desta e muitas outras vezes na vida, sem que eu possa até hoje entender – que todas as coisas do mundo têm o seu tempo.

Não preciso nem dizer que O Barquinho Amarelo se tornou o tesouro da infância a ser conquistado. Decidi que aprenderia a ler por mim mesma. Desde então, nenhuma palavra, nenhuma frase, nenhuma página preenchida por letras me passou despercebida. Li cada uma delas, a meu modo. Fiz sair histórias mirabolantes dos livros que o pai guardava na mesa de cabeceira. Era um mundo onde eu comandava e era também comandada. E isso pouco importava. Afinal, era eu a dona de todos os significados.

Mesmo com tanto empenho não me tornei uma autodidata. Na idade de alfabetização, fui parar na escola e, como a mãe havia previsto, lá estava O Barquinho Amarelo a minha espera.

Só que ele pouco me interessou. Não que não tenha havido deslumbramento imediato. Houve. Mas coisa rápida. E isso não era simples volubilidade. Tratava-se da descoberta de que me tornara amante irremediável dos livros. Amante que não se contenta com amor singelo, mas que tem a paixão de Kant. Aquela em que há uma inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.

Depois de O Barquinho Amarelo, vieram Reinações de Narizinho; O Minotauro; Histórias de Tia Nastácia e tudo mais que pude ler da obra infantil de Monteiro Lobato, com direito a ter medo da Cuca, sonhar com o Príncipe Escamado e me encantar com o pó de pirlimpimpim. O Orígenes Lessa também veio me provocar com Napoleão em Parada de Lucas e Confissões de um Vira-Lata, desbravando caminhos para eu dar a volta ao mundo em 80 dias e viajar vinte mil léguas submarinas com Júlio Verne. Foi nesta mesma época que Alexandre Dumas me conduziu pela história que inventou da França em O Máscara de Ferro.

O tempo passou e um dia veio parar em minhas mãos Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres da Clarice Lispector, que eu já conhecia de A mulher que matou os peixes. Essa foi paixão de difícil deciframento – e é até hoje. Para compensar, me levou a Cem Anos de Solidão - presente de alguém que, sabendo do desconforto que me invadia àquela altura, quis me mostrar que somente as paixões à flor da pele nos fazem escapar da destruição total que a realidade, sempre truculenta, causa. Esse Gabriel García Marquez volta e meia freqüenta minha cama em noites de insônia e não tenho nenhuma vergonha de assumir que meu preferido é um best-seller, ao invés de um Mallarmé.

Talvez porque seja amante que nunca se importou de ser deixada já que também sempre quis partir. E, se isso me faz parecer infiel, asseguro que nunca perdi meus livros de vista. Estão todos eles egoisticamente armazenados – não vendo, não empresto, não permito que sejam tocados, tal e qual a vizinha da infância – para que, um dia, lhes renda a minha contemplação vetusta, se não puder amá-los mais uma vez.



* Texto publicado na Revista da Câmara Brasileira do Livro/ Maio/2005.


*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

Um comentário:

  1. Também caminhei por esses caminhos, mas raramente voltei. Assim, amo os livros, mas sou mais volúvel que você: depois de lidos eu os esqueço para sempre. A exceção é "Clarissa", desde os 14 anos. Quando falo de paixão, ele vem atormentar meu sofrido coração. Não releio em papel, mas em pensamento. Essa fidelidade é uma mancha no meu coração de fiel leitora infiel.

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