A voz do dono
* Por Deonísio da Silva
Nas últimas vinte e quatro horas do Terceiro Reich, Hitler designou como sucessor o jornalista, doutor pela Universidade de Heidelberg e seu ministro de Propaganda e Informação, Joseph Goebbels. Seguindo o exemplo do antecessor, Goebbels suicidou-se no dia seguinte, depois de matar a mulher e as seis filhas. Um de seus conselhos é citado com freqüência: "caluniai, caluniai, alguma coisa restará". Informações podem evitar tragédias. Calúnias, não. O jornalista Goebbels não cumpriu seu ofício.
Mas Goebbels disse isso? Pode ser que sim, à semelhança de muitos outros que o repetiram, mas o dito popularizou-se depois que os italianos Paisiello e Rossini musicaram O Barbeiro de Sevilha, comédia do autor francês Pierre-Agustin de Beaumarchais. Este incrustou o conselho em seu texto, extraindo-o de um dos ensaios do filósofo inglês Francis Bacon, que o recolhera da voz rouca das ruas. Em resumo, o aforismo não tem dono. Por que, então, é atribuído a Goebbels? Talvez porque tenha sido ele quem melhor personificou a sentença.
Como no Brasil as óperas são mais raras, a imprensa e as telenovelas estão contribuindo para popularizar frases famosas, quase sempre sem conferir a autoria, no que foram precedidas pelo rádio, a música, o teatro e o cinema. Às vezes não há vítimas nesta guerra da citação apressada contra a paciência da pesquisa.
"Elementar, meu caro Watson" é outro exemplo de autoria indevida. Com esta frase, o personagem Sherlock Holmes, mais famoso do que seu criador, o escritor britânico Arthur Conan Doyle, conclui deduções baseadas em lógica irrepreensível. O doutor Watson rende-se admirado à inteligência do amigo. Mas nos contos e romances do autor não encontramos a frase e nem a indumentária característica de Sherlock. Foram acréscimos dos roteiristas nas adaptações para outros meios, como o cinema e a televisão.
Já o brasileiro Eduardo Alves da Costa escreveu um poema sobre a audácia daqueles que começam furtando uma flor e terminam arrasando o jardim alheio. Por erro de citação, os versos têm sido freqüentemente atribuídos ao poeta russo Vladimir Maiakovski. A autoria virou uma casa da mãe Joana? Se virou, também esta definição é injusta. A rainha Joana regulamentou os bordéis de Avignon, onde vivia refugiada, impondo-lhes normas rígidas. Mas a expressão é associada a bagunça.
Ocasionalmente os verdadeiros proprietários, não apenas de frases, podem ser reconhecidos de modo insólito, como na origem da expressão A Voz do Dono, também marca de antigo fonógrafo, que tem origem em episódio ocorrido com Thomas More. Um mendigo apresentou-se como dono de um cãozinho que Lady More recolhera das ruas. O famoso humanista inglês, para dirimir a contenda, pôs o animal no meio da sala, deixando a esposa e o mendigo em cantos opostos. E mandou que ambos chamassem o cachorrinho. Sem vacilar, o melhor amigo do homem correu para o mendigo, reconhecendo a voz do dono.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
* Por Deonísio da Silva
Nas últimas vinte e quatro horas do Terceiro Reich, Hitler designou como sucessor o jornalista, doutor pela Universidade de Heidelberg e seu ministro de Propaganda e Informação, Joseph Goebbels. Seguindo o exemplo do antecessor, Goebbels suicidou-se no dia seguinte, depois de matar a mulher e as seis filhas. Um de seus conselhos é citado com freqüência: "caluniai, caluniai, alguma coisa restará". Informações podem evitar tragédias. Calúnias, não. O jornalista Goebbels não cumpriu seu ofício.
Mas Goebbels disse isso? Pode ser que sim, à semelhança de muitos outros que o repetiram, mas o dito popularizou-se depois que os italianos Paisiello e Rossini musicaram O Barbeiro de Sevilha, comédia do autor francês Pierre-Agustin de Beaumarchais. Este incrustou o conselho em seu texto, extraindo-o de um dos ensaios do filósofo inglês Francis Bacon, que o recolhera da voz rouca das ruas. Em resumo, o aforismo não tem dono. Por que, então, é atribuído a Goebbels? Talvez porque tenha sido ele quem melhor personificou a sentença.
Como no Brasil as óperas são mais raras, a imprensa e as telenovelas estão contribuindo para popularizar frases famosas, quase sempre sem conferir a autoria, no que foram precedidas pelo rádio, a música, o teatro e o cinema. Às vezes não há vítimas nesta guerra da citação apressada contra a paciência da pesquisa.
"Elementar, meu caro Watson" é outro exemplo de autoria indevida. Com esta frase, o personagem Sherlock Holmes, mais famoso do que seu criador, o escritor britânico Arthur Conan Doyle, conclui deduções baseadas em lógica irrepreensível. O doutor Watson rende-se admirado à inteligência do amigo. Mas nos contos e romances do autor não encontramos a frase e nem a indumentária característica de Sherlock. Foram acréscimos dos roteiristas nas adaptações para outros meios, como o cinema e a televisão.
Já o brasileiro Eduardo Alves da Costa escreveu um poema sobre a audácia daqueles que começam furtando uma flor e terminam arrasando o jardim alheio. Por erro de citação, os versos têm sido freqüentemente atribuídos ao poeta russo Vladimir Maiakovski. A autoria virou uma casa da mãe Joana? Se virou, também esta definição é injusta. A rainha Joana regulamentou os bordéis de Avignon, onde vivia refugiada, impondo-lhes normas rígidas. Mas a expressão é associada a bagunça.
Ocasionalmente os verdadeiros proprietários, não apenas de frases, podem ser reconhecidos de modo insólito, como na origem da expressão A Voz do Dono, também marca de antigo fonógrafo, que tem origem em episódio ocorrido com Thomas More. Um mendigo apresentou-se como dono de um cãozinho que Lady More recolhera das ruas. O famoso humanista inglês, para dirimir a contenda, pôs o animal no meio da sala, deixando a esposa e o mendigo em cantos opostos. E mandou que ambos chamassem o cachorrinho. Sem vacilar, o melhor amigo do homem correu para o mendigo, reconhecendo a voz do dono.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
Grande contribuição ao "Literário" e ótima leitura de sábado. Deonísio sempre encantando seus leitores com conhecimento, excelente texto e bom senso. Parabéns!
ResponderExcluirMuito oportuno seu texto Deonisio. Tenho recebido inúmeros textos atribuidos a Drummond, a Vinícius... Textos tão ruins que devem fazer com que esses autores se revirem nos túmulos.
ResponderExcluirEsse do Eduardo Alves da Costa que é muito bonito, toda vez que o recebo como sendo de autoria do Maiakovski, respondo esclarecendo o equívoco.
Talvez a gente precise fazer uma campanha de "ecologia da Literatura", que tal?
Forte e fraterno abraço
Risomar