segunda-feira, 26 de outubro de 2009




Me ampare, Madame Bilu

* Por Eduardo Murta

Nasceu numa noite de bebedeira sã, dessas em que álcool genialmente trapaceia a razão, a ideia que alçaria G. Santos da vala dos comuns. Eram ele e S. Martins à mesa do bar, envoltos em cortina de fumaça beirando o sólido, onze garrafas de cerveja, odor em que cachaça era rainha e um cardápio de variedades na conversa: mulheres, futebol, fé, tragédias, sentimentos sinceros.

Ah, sentimentos sinceros... Foi num estalo do destino esbarrando em roseiral de oportunidades que S. Martins, capitão de jornalismo por aquelas plagas, vislumbrou futuro naqueles diálogos embriagados e sentenciou: o aprendiz de repórter iria abandonar a coluna dedicada aos mortos, aos buracos de rua, aos pequenos delitos, para virar um conselheiro sentimental. Melhor: conselheira. Até nome já havia lhe chegado: Madame Bilu.

A foto de uma tia sessentona ao cabeçalho, uns corações brejeiros à borda, e o título “Me conta tudo” alimentaram preciosa coleção de cartas e e-mails. G. Santos logo assumindo ares de terapeuta barato, por vezes cerimonioso, noutras sugerindo que os apaixonados mergulhassem sem contagem regressiva “no oceano da pessoa amada”. Como funcionou. Um fenômeno que só não o levou a abrir um consultório porque acabaria enquadrado por duplo charlatanismo.

E havia um quê de felicidade marota naquele poder de incorporar um alterego que, blindado-se na rotina farsesca, recusava entrevistas, títulos de cidadania honorária e glamour de festas. Ele pensava nessa condição de estrelato, quando abriu a primeira carta daquela terça-feira. Perfumada. Letras caprichosas. Tom feminino. Notou nos borrões de lágrimas marcando as entrelinhas. Eram verdadeiros. Uma certa Clotilde se derretendo por Anunciação, cego a seu querer.

Dúzia de conselhos resvalando em pieguice (“Sua paixão te guiará”; “Cultive esse sentimento como a uma rosa”...), ela insistiu. Persistiu. Foi percebida. Desejada. Se lembrou de Madame Bilu à beira do altar, no nascimento dos gêmeos. E, agora, dois anos mais tarde, na separação. Voltou a escrever-lhe, desta vez num e-mail e, convencida da tática de reconquista indicada, mandou flores por 30 dias seguidos. Carro de som com foguete, declarações que soavam a um bolero. Nada.

No desamparo, decidiu pedir audiência à própria conselheira sentimental. Viesse não, lhe avisaram, porque feria as normas da empresa. Deu de ombros. Pranteou à portaria, ameaçou cortar pulsos, e acabou sendo atendida por ninguém menos que G. Santos, ali travestido em reles assistente para assuntos amorosos. Dois, cinco, sete, nove encontros no jornal, e veio então a correspondência sinalizando beco sem saída.

Confessava ter desistido do ex-marido. Ufa! E, Santo Cristo, declarava paixão rasgada pelo braço-direito de Madame Bilu! G. Santos gelou. Gostava de negras – e ela uma ruiva. Vidrado em cinturas estilo pera – e a dela em molde barrica. Prezava seios em abundância – e os de Clotilde lembravam laranjinhas tristes. Diria não. Mas como dizê-lo, sem jamais ter dito a alguém de suas consultas que desistisse? A que a evitasse, até achar uma saída, armou-se em peruca black power e batas coloridas a caminho do trabalho.

Mas não fugiria a uma resposta. Imaginou recomendável não usar a coluna do jornal para o desfecho daquele caso. Daí marcou escapadela a um botequim na Zona Leste. E convocou S. Martins, dono de todo o projeto, a ajudá-lo a desatar aqueles nós. Treze cervejas, cinco cachaças no talo, bafo de cebola, a convidada chegou. Roupas e perfume de conquista. Ajudaria pouco. G. Santos a acolheu pronto dizendo que precisava lhe revelar a verdade. Seguiu-se um silêncio de desconcerto. E, lento, fez seu rosto se aproximar ao de S. Martins.

Entrelaçaram bigodes num beijo de espantar pretendentes. Ela se levantou e partiu. Para nunca mais. Ambos se olharam perplexos, limpando as bocas, higienizando com pinga brava, e gargalharam desbragadamente. Brindavam a uma mentira mais que havia salvado uma sucessão de farsas. Embebedavam culpas. Cristalizavam mero teatro de sentimentos.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


2 comentários:

  1. Que sacanas, hein! Mas se é pela longevidade de um personagem, vá lá. E se foi vc, caro Murta, quem escreveu, tá perdoado. Parabéns.

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  2. Nossa! Este texto daria uma ótima peça de teatro. Adorei!
    Abraços
    Risomar

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