Ainda o visionário Carrero
* Por Marco Albertim
Jeremias é irmão de Ísis. Da união dos dois nascera Biba. Mateus, irmão mais novo do casal, é apaixonado por Biba. Mateus, narrador explícito de O amor não tem bons sentimentos, resume: “...na nossa família as coisas se resolvem aqui mesmo, não precisamos de estrangeiros para nada. Nem de outros lábios, nem de outras bocas, nem de outros corpos.” A mãe de todos, Dolores, tem medo de falar e de pensar. Por isso Raimundo Carrero é um autor visionário, tratando com familiaridade o inusitado. Hábil, deu a responsabilidade de narrar a novela – monólogo de Mateus – ao personagem maior, esquivando-se, pois, do ônus de subir as escadas do casarão “para proteger minha mãe, a criminosa.” Não se pode dizer que se trata de um discurso brilhante, mesmo porque a estética de Carrero é marcada pelo coloquial, não raro com passagens ou abstrações banais do personagem. Mas na passagem abaixo, o autor evitou o coloquialismo, mostrando-se maduro, comprometido com o ofício:
“Lembrei-me que saíra de casa já sem camisa e descalço no calor do amanhecer impreciso, furtivas luzes azuladas se mostravam, apresentavam as primeiras sombras, eu olhava o amanhecer, as luzes e as sombras, o corpo que identifiquei depois, o rajado vermelho das nuvens se aproximava. O vento bolinava nas árvores. Não havia peixes dourados nem cobras se arrastando nas margens.”
Toda a novela é um monólogo com delírios de Mateus. O ponto alto está no capítulo três, primeiro parágrafo. “Ali olhando a menina nas águas e sem sentir nada, pensava nessas coisas que só fazem me atormentar. “ No fim, após dez linhas, arremata: “Isso acontece com qualquer homem, com qualquer coisa, com qualquer inutilidade, vagabundo.” É um monólogo desenvolto.
O risco de banalização está em clichês como “a mais pura e cristalina verdade.” No óbvio “Sem um povo revolucionário não pode haver revolução.” Na repetição de que “O povo unido jamais será vencido.” Na paródia do “Fica mal com Deus quem não sabe amar, fica mal comigo quem não sabe dar.” Inda que contrabalance o rasgo de originalidade no “Já que não era possível ser sincero de verdade procurava pelo menos ser sincero no fingimento.” O nível volta a cair no “quem não tem colírio usa óculos escuros.” Depois se recupera em “Pelas três ou quatro horas da manhã a única coisa viva num cabaré é a vontade de morrer...”
Por ser escritor quase longevo, talvez por insistir em mostrar o estilo próprio, abusa, Carrero, de recursos fáceis. No primeiro parágrafo do capítulo cinco, o verbo afundar é usado nove vezes, seis no gerúndio e três no particípio. O verbo piar, seis vezes no gerúndio. Para explicar o tédio do personagem na terapia do saxofone de seu uso. Carrero foi saxofonista, deixou, não afundou...
Mateus é mal-humorado, não tem a raiva de Luiz da Silva, em Angústia. Mas diz que “cada um passa o lenço onde gosta, na bunda, no sovaco ou no rosto, cada qual com suas seboseiras...” É o uso do estilo desabrido, criando escolas. As circunstâncias do personagem não exigem tamanho desabafo, mas...
Se o autor não deve interferir no personagem, em três momentos Carrero dá mostras de intromissão. No primeiro, diz: “Até porque toda felicidade é cínica.” E quando, referindo-se à cidade: “Verão no Recife é delírio de fogo.” O que mais chama a atenção é quando, referindo-se a poetas com versos insurgentes, diz: “Derrubar o golpe com poesia, valente valentia.”
Vale reproduzir a passagem abaixo, pelo tom antológico, sóbrio, sem apelo nem gritos:
“As duas, assim, duelam no silêncio, no mais absoluto silêncio, raramente cortado pelo saxofone que geme no quarto, uma garrafa de cerveja embaixo da cadeira, os olhos perdidos na vastidão do verde que surge na janela, passo de uma música a outra, nem sinto mesmo quando misturo, escalas e melodias se confundindo. Também, à minha maneira, não sinto falta de palavras. Nem de companheiros.”
O título da narrativa é sobretudo coerente. Uma mãe condenada por ter morto o marido, suspeita de ter matado a neta; esta, filha de relação incestuosa. Por último, mãe e filho, um tramando a morte do outro. A dedução no título pode ser atribuída ao narrador.
A revisão do texto é do próprio autor, que cochilou ao acentuar “bogarí”; e craseando “Todas às vezes.”
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Jeremias é irmão de Ísis. Da união dos dois nascera Biba. Mateus, irmão mais novo do casal, é apaixonado por Biba. Mateus, narrador explícito de O amor não tem bons sentimentos, resume: “...na nossa família as coisas se resolvem aqui mesmo, não precisamos de estrangeiros para nada. Nem de outros lábios, nem de outras bocas, nem de outros corpos.” A mãe de todos, Dolores, tem medo de falar e de pensar. Por isso Raimundo Carrero é um autor visionário, tratando com familiaridade o inusitado. Hábil, deu a responsabilidade de narrar a novela – monólogo de Mateus – ao personagem maior, esquivando-se, pois, do ônus de subir as escadas do casarão “para proteger minha mãe, a criminosa.” Não se pode dizer que se trata de um discurso brilhante, mesmo porque a estética de Carrero é marcada pelo coloquial, não raro com passagens ou abstrações banais do personagem. Mas na passagem abaixo, o autor evitou o coloquialismo, mostrando-se maduro, comprometido com o ofício:
“Lembrei-me que saíra de casa já sem camisa e descalço no calor do amanhecer impreciso, furtivas luzes azuladas se mostravam, apresentavam as primeiras sombras, eu olhava o amanhecer, as luzes e as sombras, o corpo que identifiquei depois, o rajado vermelho das nuvens se aproximava. O vento bolinava nas árvores. Não havia peixes dourados nem cobras se arrastando nas margens.”
Toda a novela é um monólogo com delírios de Mateus. O ponto alto está no capítulo três, primeiro parágrafo. “Ali olhando a menina nas águas e sem sentir nada, pensava nessas coisas que só fazem me atormentar. “ No fim, após dez linhas, arremata: “Isso acontece com qualquer homem, com qualquer coisa, com qualquer inutilidade, vagabundo.” É um monólogo desenvolto.
O risco de banalização está em clichês como “a mais pura e cristalina verdade.” No óbvio “Sem um povo revolucionário não pode haver revolução.” Na repetição de que “O povo unido jamais será vencido.” Na paródia do “Fica mal com Deus quem não sabe amar, fica mal comigo quem não sabe dar.” Inda que contrabalance o rasgo de originalidade no “Já que não era possível ser sincero de verdade procurava pelo menos ser sincero no fingimento.” O nível volta a cair no “quem não tem colírio usa óculos escuros.” Depois se recupera em “Pelas três ou quatro horas da manhã a única coisa viva num cabaré é a vontade de morrer...”
Por ser escritor quase longevo, talvez por insistir em mostrar o estilo próprio, abusa, Carrero, de recursos fáceis. No primeiro parágrafo do capítulo cinco, o verbo afundar é usado nove vezes, seis no gerúndio e três no particípio. O verbo piar, seis vezes no gerúndio. Para explicar o tédio do personagem na terapia do saxofone de seu uso. Carrero foi saxofonista, deixou, não afundou...
Mateus é mal-humorado, não tem a raiva de Luiz da Silva, em Angústia. Mas diz que “cada um passa o lenço onde gosta, na bunda, no sovaco ou no rosto, cada qual com suas seboseiras...” É o uso do estilo desabrido, criando escolas. As circunstâncias do personagem não exigem tamanho desabafo, mas...
Se o autor não deve interferir no personagem, em três momentos Carrero dá mostras de intromissão. No primeiro, diz: “Até porque toda felicidade é cínica.” E quando, referindo-se à cidade: “Verão no Recife é delírio de fogo.” O que mais chama a atenção é quando, referindo-se a poetas com versos insurgentes, diz: “Derrubar o golpe com poesia, valente valentia.”
Vale reproduzir a passagem abaixo, pelo tom antológico, sóbrio, sem apelo nem gritos:
“As duas, assim, duelam no silêncio, no mais absoluto silêncio, raramente cortado pelo saxofone que geme no quarto, uma garrafa de cerveja embaixo da cadeira, os olhos perdidos na vastidão do verde que surge na janela, passo de uma música a outra, nem sinto mesmo quando misturo, escalas e melodias se confundindo. Também, à minha maneira, não sinto falta de palavras. Nem de companheiros.”
O título da narrativa é sobretudo coerente. Uma mãe condenada por ter morto o marido, suspeita de ter matado a neta; esta, filha de relação incestuosa. Por último, mãe e filho, um tramando a morte do outro. A dedução no título pode ser atribuída ao narrador.
A revisão do texto é do próprio autor, que cochilou ao acentuar “bogarí”; e craseando “Todas às vezes.”
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Nenhum comentário:
Postar um comentário