sábado, 4 de julho de 2009




O beijo

* Por Anton Tchecov

Na noite de vinte de maio, às oito horas, as seis baterias da *** Brigada de Artilharia, em sua marcha para o campo de manobras, chegaram à aldeia de Miestechky na intenção de ali passar a noite.
A confusão era a maior possível — alguns oficiais agitavam-se entre os canhões, outros procuravam acomodar-se na praça da igreja — quando detrás da igrejinha surgiu um civil cavalgando notabilíssimo corcel. O pequeno baio de cauda curta e lindo pescoço arqueado avançou com um movimento de marcha, fazendo durante todo o tempo passos de dança com as pernas flexíveis, como se alguém es­tivesse a chicotear-lhe constantemente os cascos. Quando chegou perto dos oficiais, o cavaleiro tirou o gorro e disse cerimoniosamente:
— Sua Excelência, o general von Rabbek, cuja residência é logo ali, quer ter a honra da companhia dos senhores oficiais para o chá…
O cavalo sacudiu a cabeça, ziguezagueou, afastou–se a marchar; o homem que o cavalgava tirou mais uma vez o gorro e, virando a rédea ao seu estranho animal, desapareceu atrás da igreja.
— O diabo que o carregue! foi a exclamação ge­ral, enquanto os oficiais se dispersavam em demanda de seus alojamentos. — Mal podemos manter os olhos abertos, e por cima nos vem esse von Rabbek com seu chá! Sei muito bem que chá c esse…
Os oficiais das seis baterias ainda se lembravam vividamente de um passado convite. Durante recen­tes manobras foram convidados, juntamente com seus camaradas cossacos, para um chá em casa de um pomietschik local, certo oficial reformado com o título de conde; e o tal bondoso, hospitaleiro conde cumulou-os de atenções, alimentou-os quase a ponto de estourar, encheu-os de vodka, e fê-los passar ali. a noite. Tudo isso, como era natural, divertiu-os muito. A maçada foi que o veterano militar entreteve seus hóspedes demasiado bem. Manteve-os acordados até o despontar do dia, contando-lhes epi­sódios anedóticos de suas passadas aventuras; arras­tou-os de cômodo em cômodo mostrando-lhes valiosas pinturas, velhas gravuras, e armas que eram uma raridade; leu para eles cartas hológrafas de homens célebres. E os pobres oficiais, mortos de cansaço, escutaram, a suspirar pelas suas camas, escondendo cuidadosamente os bocejos na manga do dólman, até que, afinal, quando o anfitrião os deixou em liber­dade, já era muito tarde para dormir.
Não seria von Rabbek um outro conde? Podia perfeitamente ser. Mas não desprezaram o convite. Lavados e vestidos, lá se foram os nossos oficiais para a casa de von Rabbek. Na pracinha da matriz foram informados de que deviam descer a colina até o rio e margeá-lo até chegar ao jardim do general, onde encontrariam uma alameda que ia dar exatamente em sua mansão. Ou, se preferissem subir a colina, alcançariam os celeiros do general a meia versta de Miestechky. Foi este o itinerário que es­colheram.
— Mas quem é esse von Babbek? perguntou um. O homem que comandava a *** Divisão de Cavalaria de Plevna?
— Não, aquele não era von Kabbek, mas simples­mente Rabbe… sem o von.
— Que tempo glorioso!
Quando chegaram ao primeiro celeiro, o caminho se bifurcava; um seguia x>ara a frente em linha reta e perdia-se na bruma; o outro dobrava à direita, di­rigindo-se para o solar do general. À medida que se aproximavam, os oficiais falavam menos alto. De ambos os lados alinhavam-se os beirais avermelhados dos telhados dos celeiros, emprestando ao ambiente o aspecto pesado e austero dos barracões das ci­dades provincianas. Em frente reluziam as janelas iluminadas da casa de von Rabbek.
— Boas falas, meus senhores! exclamou um jo­vem oficial. Nosso olfato de cão perdigueiro já fareja qualquer coisa. Há caça da boa lá adiante!
Sobre as faces do tenente Lobytko, o belo e alto oficial a que acabamos de nos referir, não havia um fio sequer de barba, embora já contasse vinte e cinco anos bem contados. Era famoso entre os camaradas pelo instinto que sempre o advertia da presença de mulheres na vizinhança. Ao ouvir o comentário de um colega, virou a cabeça e afirmou.:
— Sim. Há mulheres ali. É meu instinto que o diz.
Um bonito, bem conservado sexagenário, metido num muflti assomou à porta do vestíbulo para saudar os hóspedes. Era vou Rabbek. Ao apertar-lhes a mão, explicou que embora estivesse encantado por vê-los, devia pedir-lhes perdão por não os convidar para passar ali a noite; já tinha como hóspedes duas irmãs, os respectivos filhos, um irmão e numerosos vizinhos… não tinha verdadeiramente mais um quarto vago. E não obstante lhes apertar a mão, sorrir e prodigalizar as boas-vindas, era mais do que claro que ele não tinha nem metade da satisfa­ção do conde do ano passado e apenas os havia con­vidado por mera formalidade. Os oficiais, subindo os degraus forrados de macios tapetes e ouvindo o dono da casa, compreenderam isto perfeitamente; e perceberam que traziam mesmo àquela casa uma atmosfera de intrujice e mal-estar. Poderia lá um homem — indagavam eles dos seus botões — que já tinha reunidos suas irmãs com os respectivos re­bentos, um irmão e mais os vizinhos, para celebrar, na certa, alguma festa de família, achar prazer nesta invasão de dezenove oficiais que jamais vira antes1? Uma matrona alta, de boa idade e feições simpá­ticas, com o rosto comprido encimado por negras so­brancelhas, muito parecida com a ex-imperatriz Eu­gênia, cumprimentou-os à entrada do salão de estar. A sorrir cortesmente e cheia de dignidade, afirmou que estava jubilosa por ver os oficiais e somente sentia não poder convidá-los para passar a noite. Mas o seu cortês e digno sorriso desapareceu tão logo se afastou, e não havia dúvida de que já se avis­tara com inúmeros oficiais em sua vida, para que estes lhe causassem o mais leve interesse, e se dissera aquelas palavras foi unicamente porque assim lhe ditava sua alta linhagem e a posição mundana.
Numa ampla sala de jantar, sentados a uma enor­me mesa, estavam dez homens e mulheres a beber chá. Atrás deles, envoltos numa nuvem de fumaça de cigarros, achavam-se vários jovens e entre eles um extremamente magro, de suíças vermelhas, que falava muito alto um. inglês cicioso. Transpondo a porta escancarada, os oficiais se viram em uma peça bem iluminada, com as paredes forradas de azul.
— Os senhores são bem numerosos para apresen­tações individuais! declarou em tom de voz exage­rado o general, afetando jovialidade. — Tratem de estabelecer relações, por favor… sem formalidades!
Os visitantes, alguns com o rosto sério, mesmo se­vero, outros a sorrir contrafeitos, mas todos forte­mente acanhados, inclinaram-se e tomaram lugar à mesa. Mais acanhado do que todos se sentia o ca­pitão Riabóvich, um oficial baixinho, de ombros caídos, caixa-d’óculos, de suíças lembrando um lince. Enquanto os colegas se mostravam cheios de serie­dade ou sorriam encabulados, suas faces, as suíças de lince e seu par de óculos pareciam explicar: "Eu sou o mais tímido, modesto e insignificante oficial de toda a brigada". Depois que se sentou à mesa levou ainda algum tempo sem poder fixar a atenção em coisa alguma ao redor de si. Rostos, vestidos, os frascos burilados do conhaque, os compridos copos a deitar fumaça, as cornijas modeladas — tudo se confundia num só e dominante sentimento que lhe causava intenso terror e quase o forçava a procurar um buraco onde meter a cabeça. Como inexperiente conferencista, ele via todas as coisas diante de si sem nada poder distinguir, e era com efeito uma vítima disso que os homens de ciência diagnosticam como "cegueira psíquica".
Mas, voltando lentamente à posse de si mesmo, Riabóvich começou a perceber e observar. Como procede um homem tímido e insociável, em primeiro lugar notou a divertida temeridade dos seus novos amigos. Vem Rabbek, a esposa, duas damas já ma­duras, uma rapariga de lilás, e o jovem de suíças cor-de-fogo que, pela aparência, era um ramo moço de vou Rabbek, sentaram-se entre os oficiais com tanta intimidade como se o tivessem ensaiado pre­viamente e logo se entregaram a acaloradas discus­sões com as quais não tardaram a envolver os hóspe­des. Aqueles homens da artilharia tinham dias bem melhores do que os da cavalaria ou da infantaria, provava concludentemente a moça de lilás, ao mes­mo tempo que von Rabbek e as duas damas idosas afirmavam o contrário. A conversa tornou-se in­coerente. Riabóvich ouvia a jovem de lilás debater altivamente temas dos quais nada sabia e pelos quais não se interessava, e surpreendeu os insinceros sor­risos que apareciam e desapareciam em seu rosto.
Enquanto a família von Rabbek com admirável estratégia seduzia seus hóspedes e os lançava na dis­cussão, estes mantinham os olhos bem abertos para cada copo e cada boca. Todos tomavam chá; o chá estava suficientemente doce; por que aquele não co­mia biscoitos, aquele outro gostava tanto assim de conhaque? E mais Riabóvich escutava e observava, mais se divertia com essa dissimulada, disciplinada família.
Após o chá os convidados voltaram ao salão de estar. O instinto não falhara a Lobytko. A peça estava cheia de jovens mulheres e mocinhas, e não havia decorrido ainda um minuto e já o nosso tenente-perdigueiro estava aboletado ao lado de uma rapariga muito jovem e loura, vestida de preto. Inclinando-se como se fosse apoiar-se numa espada invisível, ele encolhia maliciosamente os ombros. Devia estar dizendo, com certeza, alguma divertida frioleira, pois a moça olhava indulgentemente para seu rosto bochechudo e exclamava com indiferença: "Será possível?!". E este "será possível?!" indife­rente podia ter convencido depressa o perdigueiro de que ele tomava uma pista errada.
Começou a música. Enquanto as notas de melan­cólica valsa escapuliam pela janela aberta, pela ca­beça de todos passava o pensamento de que lá fora a noite tinha os encantos primaveris de maio. O ar estava impregnado do perfume das tenras folhas do choupo, das rosas e lilases… e a valsa e a primavera eram coisas reais. Riabóvich, com valsa e conhaque a lhe dar traiçoeiramente voltas à cabeça, lançou a sorrir um olhar pela janela; depois começou a acom­panhar os movimentos das mulheres; e lhe parecia que o perfume das rosas, choupos e lilases não vi­nham do jardim, mas brotava das faces e dos vesti­dos femininos.
Principiaram a dançar. O jovem von Rabbek val­sejou duas vezes a toda a roda do salão com uma rapariga muito magra; e Lobytko, deslizando no chão encerado, dirigiu-se à moça de lilás e pediu–lhe uma dança. Riabóvich, porém, continuava de pé, agora junto à porta, e contemplava tudo aquilo silenciosamente. Admirado da ousadia dos homens que diante de todo o mundo seguravam as mulheres pela cintura, esforçava-se em vão por se represen­tar fazendo o mesmo. Já se fora o tempo em que tinha inveja da afoiteza e coragem dos camaradas, sofria com o seu penoso escrúpulo, e percebia cheio de mágoa que era tímido, de ombros caídos, e insig­nificante, e que tinha suíças de lince e que as ancas eram demasiado grandes. Mas com o decorrer dos anos foi-se reconciliando com sua própria insignificância e já agora, ao contemplar os dançarinos e os palradores, não sentia inveja, e sim unicamente me­lancólica emoção.
Na primeira quadrilha von Rabbek «Júnior apro­ximou-se e convidou dois oficiais que não dançavam para uma partida de bilhar. Os três deixaram a sala; e Riabóvich, que nada fazia e se sentia impe­lido a participar do movimento geral, seguiu-os. Cruzaram a sala de jantar, atravessaram um estreito corredor recamado de espelhos e um quarto onde três criados sobressaltados pularam ao mesmo tempo de um sofá; e depois de passar, assim parecia, por um verdadeiro mundo de quartos, entraram num mi­núsculo salão de bilhar.
Von Rabbek e os dois oficiais começaram a par­tida. Riabóvich, cujo único jogo eram as cartas, plantou-se ao pé da mesa e pôs-se a olhar com indi­ferença, enquanto os jogadores, os casacos desabo-toados, manejavam os tacos, movimentavam-se de um lado para outro, diziam pilhérias e soltavam obscuros termos técnicos. Riabóvich ficou ignora­do, exceto quando um dos jogadores lhe dava um encontrado ou uma tacada e, virando-se para ele, pe­dia lacònicamente: "Perdão!". Assim, antes que o jogo estivesse terminado, sentiu-se aborrecido e, considerando quanto aquilo era superficial, delibe­rou voltar ao salão e saiu.
Foi em sua volta que se deu a aventura. Não ti­nha ido muito longe quando percebeu que havia errado o caminho. Lembrava-se muito bem do quar­to com os três dorminhocos; mas depois de haver passado por cinco ou seis cômodos completamente vazios deu pelo engano. Parou e dirigiu-se à esquer­da; e foi dar num quarto quase às escuras que não tinha visto antes. Após um minuto de hesitação, abriu com atrevimento a primeira porta que viu e se achou na mais completa escuridão. Pela fresta da porta em frente esgueirou-se uma réstia brilhante de luz; de longe chegavam notas mortiças de uma lúgubre mazurca. Aqui também, como no grande salão, as janelas estavam abertas de par em par e o cheiro dos choupos, lilases e rosas invadia o ar.
Riabóvich deteve-se irresoluto. Por um momento tudo esteve imóvel. Então chegou o ruído de passos apressados; e depois, sem o menor aviso do que ia acontecer, farfalhou um vestido, a voz de uma mu­lher ofegante sussurrou: "Até que enfim!" e dois macios, perfumados, inconfundíveis braços femini­nos estreitaram-lhe o pescoço, um rosto quente en­costou-se ao seu e ele recebeu um beijo estalado. Mas, apenas tinha esse beijo ecoado através do silêncio quando a desconhecida estremeceu fortemen­te e fugiu — tal foi a impressão de Riabóvich — cheia de desgosto. Também Riabóvich tratou de se ir, oríentando-se pela frincha luminosa da porta à sua fluente.
Ao entrar no salão de estar o coração lhe batia violentamente e as mãos tremiam de maneira tão visível que tratou de ocultá-las atrás das costas. Sua primeira sensação foi de vergonha, como se cada uma das pessoas presentes já soubesse que ele aca­bava de ser abraçado e beijado. Como um caramujo, encolheu-se e pôs-se a examinar medrosamente. Mas vendo que hóspedes e hospedeiros continuavam a dançar e conversar em calma, readquiriu a coragem e entregou-se às emoções experimentadas pela pri­meira vez em sua vida. Sucedera um fato sem exemplo. Seu pescoço, ainda com a sensação fresca do aperto de dois suaves e perfumosos braços, pa­recia untado de bálsamo; junto do bigode esquerdo, onde o beijo fora aninhar-se, quedara um friozinho delicioso, como o que deixa na boca uma pastilha de hortelã; e da cabeça aos pés viu-se tomado por nova e inefável sensação que ia crescendo, ia crescendo…
Sentiu que devia dançar, falar, correr pelo jar­dim, rir à vontade. Esqueceu ao mesmo tempo que tinha os ombros caídos, que era insignificante, que as suas suíças lhe davam um aspecto de lince, que possuía um "físico indefinido" — descrição saída dos lábios de certa mulher com quem estivera ca­sualmente. Quando a senhora von Rabbek passou por perto, ele sorriu-lhe tão franca e graciosamente que ela parou e olhou-o com ar interrogativo.

— Que casa encantadora é a sua! declarou, ajei­tando os óculos.
E a senhora, vou Rábbek correspondeu com outro sorriso, disse que a casa pertencia ainda ao pai, per­guntou-lhe se tinha pais vivos, desde quando estava no exército e por que era tão magro. Depois de ouvir suas respostas, lá se foi. Mas, não obstante ter cessado a conversa, ele continuava a sorrir benevolamente e a pensar em quão encantadores eram os seus novos conhecidos.
Na ceia Riabóvich comeu e bebeu mecanicamente tudo o que punham diante de si, não escutou uma só palavra da conversa e dedicou todos os seus poderes à revelação da misteriosa, romântica aventura. Co­mo explicá-lo ? Era claro que uma daquelas moças, pensava ele, havia combinado um encontro no quarto escuro e depois de esperar em vão por algum tempo tinha, em sua tensão nervosa, tomado Riabóvich por seu herói. O engano tinha cabimento pois, ao entrar no cômodo às escuras, Riabóvich parará irresoluta-mente como se, também ele, estivesse esperando por alguém. Até aí o mistério estava explicado.
"Mas qual delas foi?" indagava, examinando o rosto de cada uma, Certamente era moça, pois as velhas não se metem em tais romances. E depois, não era uma criada. Isso estava sobejamente pro­vado pelo fru-fru do vestido, pelo delicioso perfume, pela voz…
Quando pela primeira vez olhou para a jovem de lilás, agradou-se dela; tinha lindos ombros e braços, um rostinho simpático, uma voz encantadora. Ria­bóvich pediu aos céus que fosse ela. Mas, ao rir mais livremente, ela sulcou o nariz de vincos e isso deu–lhe um ar avelhantado. Portanto Riabóvich trans­feriu seu olhar para a lourinha de vestido preto. A lourinha era mais jovem, mais simples, mais sincera; tinha deliciosos cachinhos e bebia chá no alongado copo com uma graça inexprimível. Riabóvich espe­rava que fosse ela — mas logo verificou que lhe faltava um quê qualquer em sua fisionomia, e lançou as vistas à sua mais próxima vizinha.
— Ê uma busca sem esperanças… refletiu. Se a gente tomasse os braços e as espáduas da moça de lilás, lhes juntasse os cachinhos da loura e os olhos da criaturinha que está à esquerda de Lobytko, então…
Compôs um retrato com todos esses encantos e teve uma clara visão da moça que o tinha beijado. Mas em parte alguma poder-se-ia ver semelhante criatura.
Finda a ceia, os visitantes, fartos e bêbedos, fi­zeram as suas despedidas. Novamente o dono e a dona da casa apresentaram desculpas por não poder convidá-los a passar ali a noite.
— Sinto-me muito contente, muito contente, ca­valheiros! declarou o general, e desta vez parecia dizer a verdade, sem dúvida porque despachar con­vivas que se despedem é ofício mais agradável do que recebê-los a contragosto. — Sinto-me realmente muito contente! Espero nova visita quando passa­rem por aqui de volta. Não façam cerimônia, por favor! Que caminho vão tomar’? Colina acima’? Não, desçam a colina pelo jardim. Fica mais perto.
Os oficiais seguiram o conselho. Depois do reboliço e da feérica iluminação do interior da casa, aquele jardim parecia negro e triste. Até alcançar o portão de saída, todos se mantiveram em silêncio. Alegres, meio ébrios e fartos, como estavam, a es­curidão e a tranqüilidade da noite inspiravam-lhes profundos pensamentos. Por seus cérebros, como pelo de Riabóvich, provavelmente passava a mesma [pergunta: "Será que há-de chegar o tempo em que eu, como von Rabbek, terei um casarão, família, um jardim, o ensejo de ser gentil — mesmo que fingida-mente — para com os outros, de deixá-los saciados, bêbedos e contentes’?"
Mas assim que o jardim ficou para trás, falaram todos a uma só vez, e prorromperam em estrepitosa gargalhada. O caminho que seguiam conduzia diretamente ao rio e daí o margeava, por entre moitas, ravinas e pendentes salgueiros. O chão era escassa­mente visível; a outra margem perdia-se por com­pleto na bruma. Por vezes a água negra espelhava as estrelas e isso era a única indicação da veloci­dade da corrente. Além, suspirava uma sonolenta narceja, e ali quase ao lado, escondida numa moita, indiferente à presença dos homens, cantava alto um rouxinol. Os oficiais caminhavam em grupo e agi­taram a moita, mas o rouxinol prosseguiu em sua cantiga.
— Gostei da cara dele! declararam quase todos em eco. Não é desses que vivem fazendo economias de copeks! Que velho patusco!
Perto do fim da jornada o caminho galgava um pouco a colina e juntava-se à estrada não muito longe da sebe da igreja. Ali os oficiais, ofegantes com a subida, sentaram-se na grama e puseram-se a fumar, Atravessando a corrente, chegou até eles uma luzinha vermelha, e na falta de outra coisa co­meçaram a decifrar se aquilo era um fogo-fátuo, uma lanterna ou a luz de uma janela. Riabóvich também contemplava a luz e como que sentiu que ela lhe sorria e piscava, como se fosse sabedora do segredo do beijo.
Chegando ao alojamento, despiu-se a toda a pressa e deitou-se. Seu quarto era repartido com Lobytko e um certo tenente Merzliakov, homenzinho sisudo e calado, que trazia consigo por todos os cantos o "Mensageiro da Europa" e vivia a lê-lo eternamente. Lobytko, já despido, passeava impacientemente de um lado a outro e mandou o ordenança buscar cer­veja. Merzliakov deitou-se, inclinou a luz para o lado de seu travesseiro e esticou a cabeça por trás do "Mensageiro da Europa".
— Onde estará ela agora? resmungou Riabóvich, olhando para o teto negro de fuligem.
O pescoço ainda lhe parecia untado de óleo, perto da boca ainda sentia o friozinho que deixa a hortelã-pimenta. Em seu cérebro perpassavam suces­sivamente os ombros e braços da moça de lilás, os cabelos encaracolados e os olhos honestos da jovem vestida de preto, e uma multidão de cinturas, ves­tidos e broches. Mas, embora tudo fizesse para fixar essas imagens esquivas, elas se desenhavam tremula-mente, esvaíam-se e sumiam por fim; e ao desapare­cerem afinal na vasta cortina negra suspensa diante dos olhos fechados de todos os homens, ele começou a escutar passos precipitados, o crepitar de saias, o ruído de um beijo. Apossou-se dele violenta, inex­plicável alegria. Mas quando se entregava a esse transporte, o ordenança de Lobytko voltou com a notícia de que não lhe fora possível obter cerveja. O tenente voltou a medir o quarto a largas passadas.
— Camarada mais idiota! exclamou, parando pri­meiro perto de Kiabóvich e depois perto de Merz­liakov. — Só mesmo o mais imbecil e cabeçudo pu­lha não pode arranjar cerveja! Canaille!
— Toda a gente sabe que aqui não há cerveja, consolou-o Merzliakov, sem levantar os olhos de seu "Mensageiro da Europa".
— E você acredita nisso! bradou Lobytko. Deus do céu, joguem-me na lua e em cinco minutos verão como encontrarei cerveja e mulheres! Eu mesmo acharei! Chame-me de intrujão se o não fizer!
Vestiu-se lentamente, acendeu em silêncio um ci­garro e saiu.
— Rabbek, Grabbek, Labbek, resmungou, paran­do na saleta. Não quero ir só, com mil demônios! Riabóvich, quer vir dar uma voltinha’? Como?
Não obtendo resposta, voltou, despiu-se sem pressa e deitou-se. Merzliakov deixou escapar um suspiro, dobrou o "Mensageiro da Europa", e apagou a luz.
— E então ? — murmurou Lobytko, fumando seu cigarro no escuro.
Riabóvich puxou as cobertas até o queixo, enco­lheu-se formando quase um rolo, e apurou a imagi­nação para reunir suas imagens imprecisas num todo mais coerente. Mas a visão fugia-lhe sempre. Dentro em pouco estava dormindo e sua última im­pressão foi que tinha sido acariciado e mimado, que em sua vida sucedera algo estranho e mesmo ri­dículo, mas extraordinariamente bom e radioso. E tal pensamento não o abandonou, até nos sonhos que teve.
Quando acordou a sensação do bálsamo e da hortelã-pimenta tinha-se ido. Mas o contentamento, co­mo na noite da véspera, enchia-lhe cada veia. Olhou extasiado para as vidraças da janela douradas pelo sol nascente e escutou os ruídos exteriores. Alguém falava alto precisamente em baixo de sua janela. Era Lebedetzki, comandante de sua bateria, que aca­bava de juntar-se à brigada. Conversava com o primeiro-sargento, em voz alta, demonstrando não ter lá grande prática de falar a meia-voz.
— E o que mais? trovejou.
— Quando ontem ferrávamos os animais, Vossa Honra, Golubtchik foi ferido. O mestre-ferrador mandou buscar barro e vinagre. E a última noite, Vossa Honra, o mecânico Artemiev embebedou-se e o tenente mandou colocá-lo no carro de munições atrelado à carreta do canhão de reserva.
O primeiro-sargento acrescentou que Karpov ha­via esquecido as cavilhas da tenda e os novos rizes para os tubos de fricção, e que os oficiais tinham passado a noite em casa do general vou Rábbek. Mas, aí, à janela assomou a cara barbuda de Lebedetzki. Piscou os olhos míopes para os homens sonolentos sobre as camas e lhes deu bom-dia.
— Vai tudo bem?
— O cavalo das varas feriu a cernelha com o novo peitoral, respondeu Lobytko.

O comandante suspirou, pensou um momento e desabafou:
— Estou pensando em visitar Alexandra Iegórovna. Quero vê-la. Adeus! Procurarei vocês antes de anoitecer.
Quinze minutos depois a brigada punha-se nova­mente em marcha. Ao passarem pelos celeiros de von Babbek, Biabóvich virou a cabeça e olhou para o solar. As venezianas estavam arriadas; evidente­mente tudo ali ainda dormia. E entre eles, ela tam­bém dormia… aquela que o havia beijado não fazia muitas horas. Tentou visualizar o seu sono. Ima­ginou a janela do quarto completamente aberta com ramos verde jantes a balouçar defronte numa cadên­cia suave, o frescor do ar matinal, o rescender dos choupos, lilases e rosas, o leito, uma cadeira, o ves­tido que farfalhou na véspera, um par de delicados chinelos, um relógio sobre a mesa a fazer tique-taque; tudo isso até em seus detalhes lhe veio à imaginação com a máxima clareza. Mas as feições, o terno e sonolento sorriso — enfim o que era essencial e carac­terístico lhe fugia da imaginação como o azougue foge da mão. Quando já havia caminhado meia versta tornou a olhar para trás. A igrejinha ama­rela, a mansão, os jardins, o rio estavam banhados de luz. Refletindo o céu de anil, a corrente, contida entre duas margens a dissipar verdores, fazia ricochetar os raios prateados do sol e tinha um aspecto inexprimivelmente belo; e, lançando a Miestechky o seu último olhar, Riabóvich sentiu-se triste, como se se despedisse para sempre de algo muito próximo e muito caro…

Estrada a fora, diante de si, desdobravam-se cenas familiares, desinteressantes; à direita e à esquerda, campos de centeio ainda tenro e trigo mourisco com gralhas saltitantes; em frente, poeira e nucas de ho­mens; atrás, a mesma poeira e faces. À testa da coluna marchavam quatro soldados armados de es­pada — era a guarda avançada. A seguir iam os da fanfarra. Tanto a guarda avançada como os mú­sicos, emudecidos como numa procissão fúnebre, ignoravam os intervalos regulamentares e marcha­vam demasiadamente longe do resto do corpo. Riabóvich, com o primeiro canhão da 5.a bateria, podia ver quatro baterias diante de si.
Para um leigo, a longa, agitada marcha de uma brigada de artilharia é coisa nova, atraente e inex­plicável. É difícil de entender como um único ca­nhão requer tantos homens; como são necessários tantos cavalos, tão estranhamente arreiados, para arrastá-lo. Mas para Riabóvich, mestre consumado em todas essas coisas, isso era profundamente mo­nótono. Aprendera fazia muitos anos por que um sólido primeiro-sargento trota ao lado do oficial à frente de cada bateria, por que o primeiro-sargento é chamado unosni, e por que os condutores dos cavalos-guia e dos que vão aos varais trotam atrás dele. Sabia Riabóvich por que os animais dos varais eram chamados cavalos selados, e os de fora cavalos–guia — e tudo isso era muitíssimo interessante… Encarapitado num dos selados ia um soldado ainda coberto com a poeira da véspera e com um incômodo, ridículo anteparo a lhe proteger a perna direita. Riabóvich, porém, conhecendo o uso desse guarda–perna, não o achava ridículo. Os condutores, num gesto mecânico e com gritos rápidos, agitavam os chicotes. Os canhões impressionavam. As carretas de munições iam repletas de sacos de aveia feitos de encerado; e os próprios canhões, cercados de cha­leiras e sacolas, davam a impressão de mansos ani­mais, guardados por qualquer razão obscura por homens e cavalos. Aos lados do canhão marchavam seis artilheiros, a balançar os braços; e atrás de cada canhão marchavam mais unosniye, "guias" e "sela­dos". E mais e mais canhões, tão feios e sem inspi­ração como o que lhes ia à frente. Ora, como cada uma das seis baterias da brigada tinha quatro ca­nhões, o desfile alongava-se pela estrada numa ex­tensão mínima de meia versta. Terminava com um carroção de serviço, com o qual, de cabeça pensativamente inclinada, caminhava o burro Magar, tra­zido da Turquia pelo comandante de uma bateria. Morto para os que o cercavam, Riabóvich mar­chava para diante, olhando as nucas em frente ou os rostos atrás. Não fora o acontecimento da última noite, e ele a essa hora já estaria meio adormecido. Mas agora absorviam-no novos e arrebatadores pen­samentos. Quando pela manhã a brigada se pôs em movimento, ele tentou explicar-se que aquele beijo não tinha outra significação senão a de uma aven­tura, misteriosa sim, mas trivial; que carecia de im­portância real; e que pensar nela a sério era portar-se de maneira absurda. Mas a lógica depressa capi­tulou e ele se entregou à sua vivida imaginação. Via-se na sala de jantar de von Habbek, tête-à-tête com uma criatura composta da moça de lilás e da loura de preto. Ou então, fechando os olhos, punha -se ao lado de uma rapariga diferente, desconhecida, de feições nebulosas; falava-lhe, acariciava-a, deita va-se sobre o seu ombro; imaginava a guerra e a partida.,. e depois, o regresso, a primeira ceia jun­tos, os filhos…
— Os freios! bradava o comandante quando atin­giam o cume de cada colina.
— Os freios! repetia Riabóvich, temendo de cada vez que tal grito lhe dissipasse o mágico enleio e o chamasse de vez à realidade.
Passaram por uma vasta construção rural. Ria­bóvich por cima da sebe olhou o jardim e viu uma comprida trilha, estreita como uma régua, tapetada de areia amarela e sombreada por jovens bétulas. Num êxtase de encantamento, retraçou na imagina­ção pequeninos pés pisando a areia amarela; e, num relance, reconstituiu a mulher que o havia beijado, a mulher que se representara depois da ceia da noite anterior. A imagem gravou-se em seu cérebro e nunca mais o abandonou.
O encanto durou até meio-dia, quando a voz de comando chegou pesada do fim da coluna.
— Atenção! Olhar à direita! Oficiais!
Numa caleça tirada por um par de cavalos brancos surgiu o general da brigada. Parou à altura da se­gunda bateria e pronunciou alguma coisa que nin­guém entendeu. Alguns oficiais galoparam, entre eles Riabóvich.
— Bem, como vai a coisa ? — O general piscou os olhos vermelhos e continuou: — Há alguém doente?

Ouvindo a resposta, o generalzinho magrela me­ditou um momento, virou-se para um oficial e disse:
— O condutor de seu terceiro canhão tirou o guarda-perna e pendurou-o na carreta. Canalha! Cas­tigue-o !
Depois, encarando Riabovich, acrescentou:
— E na sua bateria, penso que os arreios estão frouxos demais.
Tendo feito diversas outras observações igual­mente fastidiosas, olhou para Lobytko e riu.
— Por que esse olhar tão abatido, tenente Lo­bytko? Saudades da senhora Lopukhov, hein? Se­nhores, ele está suspirando pela senhora Lopukhov!
A senhora Lopukhov era uma criatura alta, desempenada, muito além dos quarenta. Cheio de par­cialidade pelas mulheres de porte avantajado, inde­pendentemente da idade, o general atribuía o mesmo gosto a seus subordinados. Os oficiais sorriram res­peitosamente ; e o general, satisfeito por ter dito algo’ cáustico e humorístico, tocou nas costas do cocheiro e saudou. A caleça afastou-se.
"Tudo isso, embora me pareça impossível e do outro mundo, é na realidade lugar-comum dos mais banais — pensava Riabovich, contemplando a nuvem de pó levantada pela carruagem do general. É fato de todos os dias que todos experimentam… Aquele velho general, por exemplo, deve ter amado; está casado agora e tem filhos. O capitão Wachter é também casado e a esposa o ama, se bem que ele te­nha um pescoço escarlate e o peito para dentro… Salmanov é grosseiro, um típico tártaro, mas teve o seu romance que acabou em matrimônio… Eu, como o resto, chegarei a isso mais cedo ou mais tarde."
E o pensamento de que ele era um homem como todos os outros e que teria uma mulher como os demais, alegrou-o e o deixou consolado. Represen­tou-a atrevidamente em seu cérebro e deixou correr feito louca a imaginação.
Ao cair da noite a brigada chegou ao fim de sua marcha. Enquanto os outros oficiais foram esticar–se sob as tendas, Riabóvich, Merziiakov e Lobytko sentaram-se ao redor de uma caixa de provisões e cearam. Merziakov comia lentamente e, deixando o "Mensageiro da Europa" sobre os joelhos, lia com açodamento. Lobytko, falando sem parar, encheu o copo com cerveja. Mas Riabóvich, cuja cabeça estava às voltas com os ininterruptos sonhos que ti­vera acordado, mastigava em silêncio. Após ter be­bido três copos, sentiu-se meio tonto e fraco; e num impulso incoercível resolveu contar aos camaradas a sua aventura.
— Uma coisa extraordinária aconteceu comigo em casa de von Rabbek, começou ele, fazendo o melhor que podia para assumir um tom indiferente, irônico. — Eu vinha, vocês sabem, do salão de bilhar…
E procurou fazer uma história bem detalhada do beijo. Mas num minuto contou todo o caso. Naquele minuto esgotou tudo, detalhe por detalhe; e pareceu–lhe terrível que a história requeresse tão pouco tempo. Devia, pensou ele, ter durado a noite in­teira. Quando concluiu, Lobytko que, por ser um mentiroso, não acreditava em ninguém, sorriu in­crédulo. Merziiakov franziu o cenho e, com os olhos sempre grudados no "Mensageiro da Europa", re­plicou indiferentemente:
— Sabe Deus quem era! Atirou-se ao seu pescoço, diz você, e não deu sequer um grito! Alguma luná­tica, desconfio.
— Deve ter sido uma lunática, concordou Riabóvich.
— Também eu tive aventuras dessa espécie, co­meçou Lobytko, fazendo uma das suas caras. Eu ia para Kovno. Viajava de segunda classe. O carro ia atulhado e eu não podia dormir. Então dei um rublo ao guarda, e ele apanhou minha mala e alojou–me numa cabine. Deitei-me e puxei o grosseiro co­bertor sobre mim. A escuridão era total, vocês com­preendem. De súbito, senti que alguém batia no meu ombro e respirava forte sobre minha face. Estiquei a mão e senti um cotovelo. Aí abri os olhos. Ima­ginem só! Uma mulher! Olhos negros como carvão, lábios carmesins como coral do bom, narinas a fre-mir de paixão, seios deliciosos!
— Vá contar isso a outro! interrompeu Merzlia-kov com a voz mais calma. Acredito na história dos seios, mas com toda aquela escuridão como podia você ver-lhe os lábios1?
Rindo da falta de compreensão de Merzliakov, Lobytko procurou sair do dilema. A história abor­receu Riabóvieh. Levantou-se da caixa, estendeu-se no leito e jurou nunca mais admitir quem quer que fosse em sua vida íntima.
A vida de campanha passou sem acontecimento digno de nota. Correram os dias, o de hoje igual ao de ontem. Mas em cada um deles Riabóvich sentiu, pensou e agiu como um homem amoroso. Quando de manhã o ordenança lhe trazia água fria e a des­pejava por cima da cabeça, sentia em seu cérebro semi-acordado que alguma coisa boa, quente e meiga tinha nascido em sua vida.
À noite, quando os companheiros falavam de amor e mulheres, ele chegava mais para perto a cadeira, e sua fisionomia era. a dum velho soldado que falasse de batalhas em que tomou parte. E quando os bulhentos oficiais, conduzidos pelo faro de Lobytko, faziam excursões donjuanescas no subúrbio vizinho, Riabóvich, apesar de acompanhá-los, ia com menos ímpeto e com a consciência turva, pedindo-lhe men­talmente perdão. Nas horas de lazer e durante as noites de insônia, quando a cabeça se enchia de re­cordações da infância, do pai, da mãe, de tudo que­rido e saudoso, lembrava-se sempre de Miestechky, do cavalo dançarino, de von Rabbek, da mulher de von Rabbek, tão parecida com a ex-imperatriz Eu­genia, do quarto escuro, da frincha luminosa na porta.
Em 31 de agosto ele deixou o acampamento, desta vez não com toda a brigada mas apenas com duas baterias. Como um exilado que volta à terra natal, sentia-se agitado e nervoso. Ansiava avistar o ex­cêntrico cavalo, a matriz, os dissimulados von Rabbeks, o quarto escuro; e essa voz íntima que tão freqüentemente martela aos ouvidos do homem apaixonado, murmurava-lhe que ele a veria de novo. Entretanto a dúvida o torturava. Como a encon­traria? Que lhe deveria dizer? Seria que ela já se tinha esquecido do beijo? Se sucedesse o pior — tentava consolar-se — se nunca mais a visse, podia ao menos andar naquele quarto escuro, e recordar..,
À tardinha os celeiros caiados de branco e nossa conhecida igrejinha cor-de-rosa surgiram no hori­zonte. O coração de Riabóvich bateu mais forte­mente. Nem tomou conhecimento do comentário de um oficial que cavalgava a seu lado. O mundo in­teiro estava esquecido e observava avidamente o lampejante rio à distância, os tetos esverdeados, o pombal, sobre o qual evoluíam pássaros, dourados pelos últimos raios do sol.
Ao pôr o cavalo em direção da igreja e ouvir de novo a voz rouca do fiscal do quartel-general, espe­rava a cada instante que aparecesse um cavaleiro de trás da sebe para convidar os oficiais para o chá… Mas o fiscal terminou sua arenga, os oficiais dis­pararam para a aldeia, e não apareceu cavaleiro algum.
"Quando Rabbek souber pelos camponeses que voltamos, mandará nos chamar" pensou Riabóvich. E estava tão certo disso que, ao entrar na barraca, custou a compreender por que os camaradas acen­diam a candeia e por que os ordenanças se punham a preparar o samovar.
Penosa agitação o oprimia. Deitou-se sobre a cama. Um momento depois se levantava para espiar o cavaleiro. Mas não viu nenhum cavaleiro. Tor­nou a deitar-se; levantou-se outra vez; e desta vez, impelido pela inquietação, saiu à rua e caminhou para à igreja. A pracinha estava às escuras e de­serta. Sobre a colina velavam três soldados silen­ciosos. Quando viram Riabóvich, pararam, fizeram continência, e ele, retribuindo a saudação, começou a descer a tão lembrada vereda.
Para além da corrente, num céu manchado de púrpura, a lua subia lentamente. Duas camponesas tagarelas andavam numa horta e colhiam folhas de repolho; atrás delas erguiam-se negras sobre o céu as silhuetas de suas choupanas. A margem do rio estava como se fosse ainda maio; as moitas eram as mesmas; as únicas coisas diferentes eram que o rouxinol já não cantava mais, e já não havia o per­fume dos choupos e da relva tenra.
Quando chegou ao jardim de von Rabbek, Riabó-vich espreitou por entre a grade do portão. Reina­vam silêncio e obscuridade. Com exceção dos alvos troncos das bétulas e das sendas claras entre a relva, todo o jardim estava imerso numa sombra negra, impenetrável. Riabóvich escutou e espiou atenta­mente. Durante um quarto de hora esteve à esprei­ta; mas, não ouvindo ruído e não vendo luz, voltou lentamente para o acampamento.
Desceu até o rio. Defronte erguia-se a cabine de banho do general; e toalhas brancas estavam pen­duradas ao corrimão da ponte. Subiu para a ponte e ali ficou imóvel; então, sem a menor razão, tocou numa toalha. Estava húmida e fria. Olhou para baixo, dentro do rio que corria cèleremente, murmu­rando de maneira quase imperceptível uma queixa ao bater de encontro aos pilares da cabine de banho. Perto da margem esquerda tremeluzia o rubro re­flexo da lua, importunado pelas ondulações da água que se encrespavam, se dividiam em duas, e, tinha-se a impressão de que o varriam para longe como se varrem aparas e rebarbas.
"Como sou estúpido! como sou estúpido!" pensou Riabóvich, observando as ondas fugidias. "Gomo tudo isso é estúpido!"
Agora que estava morta a esperança, a história do beijo, sua impaciência, seu ardor, suas vagas as­pirações e a desilusão apareciam em plena luz. Não parecia mais estranho que o cavaleiro do general não tivesse .surgido e que ele não tornasse a ver aquela que o tinha beijado acidentalmente em lugar de um outro. Ao contrário, sentia como seria estranho se algum dia chegasse a vê-la…
A água corria, mas ninguém sabia para onde e por que. Já em maio passado ela correra do mesmo jeito; lançara-se num grande rio; esse rio, no mar; depois subira transformada em vapor e flutuara no ar para cair depois, em forma de chuva; e talvez a água de maio fosse a que agora corria sob os olhos de Riabóvich. A que propósito? Por quê?
E todo o mundo — a própria vida parecia a Riabóvich uma inescrutável, injustificável mistifica­ção … Levantando os olhos da corrente e contem­plando o céu, relembrou como o Destino sob a forma de uma mulher desconhecida o afagara um dia; re­lembrou suas fantasias e imagens do verão — e sua vida inteira pareceu-lhe desnaturadamente vazia, fria e miserável…
Quando chegou à barraca, seus companheiros ti­nham partido. O ordenança o informou de que ti­nham ido todos em visita ao "general Fonrabbkin", que mandara um cavaleiro procurá-los.
Por um breve instante, o coração de Riabóvski bateu de alegria. Mas ele sufocou esta alegria. Lançou-se na cama e, danado com sua má sorte, como quisesse desprezá-la, não tomou conhecimento do convite.

(Tradução de Costa Neves. Fonte: Clássicos Jackson).

Um comentário:

  1. Ah, como é bom ler Tchekov! Quanta competência na criação literária, quanto clima, quanta elegância na sintaxe! Parabéns, caro Editor, por mais este tento!

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