sexta-feira, 17 de julho de 2009




Gilberto Gil, uma entrevista inesquecível

* Por Urariano Mota


Foi uma entrevista que durou somente 17 minutos. Mas isso não foi conseguido com facilidade, nem foi construído em 17 minutos. O compositor, cantor, músico, agitador cultural, Ministro Gilberto Gil, pelo cerco e pelo assédio da imprensa, pela corte que lhe seguia, pela roda de pessoas excitadas com a sua presença, pela quantidade de fotos e imagens que a todo minuto lhe tiram, pelos interesses econômicos, financeiros, culturais que o envolvem, que o desejam a todo instante, o senhor Gilberto Gil é um pop star. Com a diferença, em relação ao mundo pop, que o star é um homem que pensa, que teoriza, é um pop culto, e que está no poder político. Todos lhe sorriem. Todos lhe são simpáticos. Todos querem tocá-lo na aura, se possível com volta de algo mais concreto que a luz mística.

A entrevista se deu em 10.2.2007. Era o último dia do Ministro da Cultura no Recife, onde chegara para a Feira Música Brasil. Ainda que houvesse acertado a entrevista dois dias antes, e só o deus Mu Dança sabe que forças intestinas arranquei para isso, por várias vezes pensei desistir. Não fosse a minha mulher, eu teria desistido. Fugido, corrido. Aos meus desabafos, enquanto caminhava ao longo de um préstito real, sufocado, quando dizia, “Eu vou desistir”, a senhora Francesca era mais prática, como sói acontecer com todas as mulheres de indivíduos desastrados: “Você fez o mais difícil. Não pode mais desistir”. E por isso eu segui, com o mesmo sentimento dos que seguem a caminho da primeira viagem de avião. Talvez na porta, um segundo antes do vôo, eu pudesse desistir, pensava. E por isso eu seguia e fui.

Entendam a razão. Quando o Ministro e Compositor desceu do palco onde respondera a perguntas de um auditório, ao me acercar dele, recebi cotoveladas, discretos empurrões, golpes elegantes no ventre, passagens bloqueadas com ares de acaso. Todos cometidos pela elite cultural e artística. As pessoas educadas, finas, se agridem com etiqueta. Impossível não lembrar de O Anjo Exterminador. Com a diferença que todos podiam sair e não queriam isto. Desejavam todos estar em torno, bem próximos, e o inimigo era quem pensava igual e à sua maneira. Todos queriam estar perto, conversar, receber um olhar, um incentivo, sair na foto com o Ministro, que vem a ser a mesma pessoa do compositor mundialmente famoso. Senti-me sob constrangimento por ser um, mais um dos que lhe sorriam, que procuravam ser simpáticos, úteis, camaradas. Tão íntimos somos, não? Em resumo, o escritor que lhes fala era mais um dos que o adulavam. O sorriso deles, o ar prestimoso, obsequioso, era o meu. Eu os censurava e os repetia. Que imagem, meus amigos. Isso não foi nem era o meu espelho inesquecível.

“Eu vou desistir, eu vou...”. A simpática assessora Nanan Catalão me concedeu: “Você tem um máximo de 20 minutos”. Certo. Mas onde? Iremos para algum lugar sossegado, uma reserva de paz nessa agitação? - A realidade tem a perversão de não ser conforme o nosso desejo. Eu não sabia que o mundo pop está acostumado a conversar sob luzes e câmeras e público ao redor. Para reforço do eu vou desistir, o compositor sentou-se em um banquinho, bem à vista de todos, à entrada do teatro. Um círculo de circo se abriu em torno. Ficamos em uma arena. “Aqui mesmo”, Nanan apontou. Passei então a sorrir. Tiravam fotos do ministro, e se não houve uma segura edição, haverá um sujeito barbudo, perdido, a pensar em uma delas, “Virei papagaio de pirata”. Aquele papagaio que aparece no ombro do pirata, bem sabem, no rótulo do Ron Montilla. Mas fotos não revelam pensamentos, podem apenas revelar caras assustadas, a sorrir. Menos mal. Ao trabalho. Já que chegaste até aqui...

Entre as minhas habilidades de repórter a pior delas é trabalhar com o gravador. Good. Eu estava com uma só fita cassete, cassete, isso mesmo, de uma entrevista com clérigos sobre a crise da Igreja em Pernambuco. Não havia outro remédio, eu deveria gravar por cima. Certo. Mas o que fazer com um roteiro prévio, com uma pesquisa feita durante todo o dia, em que alinhavei perguntas, intervenções, ditos espirituosos, que seriam ditos em sala fechada, eu e Gilberto Gil, quem sabe durante a noite inteira? “A sua vez é agora”, eu ouvi de Nanan. Era agora ou nunca, e eu não conseguia mais ler as perguntas anotadas em razão da miopia. Perguntas inúteis, naquela hora e circunstância. Então vamos, eu me disse, com uma resolução dos náufragos, se é que os náufragos têm alguma resolução. Notei então que a fita no gravador estava no fim – pelo menos à minha vista pareceu. E procurei, enquanto o Senhor Ministro esperava, achar o miserável e misterioso caminho por onde a fita seria retirada. Olhei para a minha mulher, e a sua cumplicidade me fez achar o caminho. Descobri, mudei o lado da fita. Muito bem, apertei a tecla rubra. Gravando. Pergunto então ao compositor Gilberto Gil como foi o seu exílio em Londres, quando expulso pela ditadura. Ele me responde com um solo maravilhoso, a cantar em inglês. Que momento, que privilégio, eu me disse, e a fita parou de rolar, porque atingira o fim. Perdi a música. Um amigo então, o DJ e músico Tales, repôs a fita no lugar. E me avisou, gentil: “Está gravando”.

Na próxima semana, continuo o relato pra vocês.

* Jornalista e escritor

2 comentários:

  1. Ah, a horda que cerca os grandes ídolos! Minha fantasia de violência era escurraçá-la a tiros de bazuca, a ver se me deixavam entrevistar no sosssego, pq, quando essa corja some, o ídolo fala normalmente, é uma beleza. Imagino o sufoco que vc passou, ainda mais com o gravador! Também eu fiz uma entrevista inteira pensando que gravava e, ao chegar na redação, nada! Pois, para minha própria surpresa e alívio, fiz de memória. E deu certo! Espero que vc tenha a mesma sorte. Vamos ver na próxima sexta.

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  2. Mesmo o óbvio ganha nova tonalidade com o seu relato, Urariano. Veja você: "A realidade tem a perversão de não ser conforme o nosso desejo". Esse dizer é muito mais do que parece. Tão visceral quanto "as forças intestinas". Achei o máximo você esgotar o espaço apenas falando sobre a dificuldade de chegar perto de um pop star. O espaço esgotando e nada da fala do ministro aparecer. Mas a narrativa, mesmo no "entretanto" tem a sua raça e a sua graça, a graça de um discreto entrevistador.

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