sexta-feira, 24 de julho de 2009




Gilberto Gil, uma entrevista inesquecível - Final

* Por Urariano Mota


Não toquei mais no gravador, e por isso pude ver, ouvir e prestar atenção à pessoa do artista.

Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, e isso fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte. Certo, dirão, isso é comum a toda e qualquer pessoa. Sim, mas observem esse trecho da entrevista: “Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez”, para concluir, “eu não quero”. Isso escrito não permite ouvir as modulações e melodia que ele imprime na voz. O ritmo, enfim. Quando ele se referiu a Paulo Francis, houve um trecho em que deu uma entonação ao adjetivo “inaceitáveis”, que procurei dar uma pálida idéia com um ponto de exclamação seguido de reticências. Ainda assim, se torna inaudível, na escrita. Direi então que o adjetivo “inaceitáveis” veio como uma ênfase, um trecho de um coco cantado por Jackson do Pandeiro. Percebem? Nele houve uma divisão silábica, que além da interpretação já é música. INACEI-táveis!... Diferente no entanto de Jackson, que era “esse jogo não é um a um, se o meu time perder eu mato um, é encarnado-preto-e-branco, é encarnado-e-preto”, para quem as coisas, os fenômenos se definiam por oposição, o que é típico da formação de um homem do povo, de modo diferente o compositor Gilberto Gil compõe. Tem idas e vindas a sua fala, sem jamais chegar a uma definição que não admita nuances. Para ele não existe A ou B, para ele, sempre, as coisas são A e B ao mesmo tempo. Por vezes pode chegar à metafísica, mas é metafísica agradável, que guarda uma dialética, se nos expressamos à sua maneira. Ele poderá dizer, por exemplo, que as coisas não existentes existem, e completar, para maior espanto, que o não existente é o que existe. Formulação ina-cei-tável em Jackson do Pandeiro.

Essa maneira, dizendo melhor, esse conteúdo de expressão, porque nele a forma é sempre o conteúdo, leva-o a evitar os substantivos mais simples, como se estes fossem primitivos, toscos, poderia ser pensado. Mas não. Isso é tático, quando não estratégico. Ou ambos, para escrever à sua maneira. Vocês irão ver nesta entrevista como ele se refere a uma parcela do público brasileiro que admirava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele dirá que eram jovens militantes da luta armada, do foco. Ou melhor, dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. E no entanto, saibam, isso não é descoberta desses dias. Eu mesmo conheci jovens que aliavam sua prática de combate à ditadura a palavras do tropicalismo. Contrários ao mundo dos olhos claros, de Carolina e Januária na janela, do Chico Buarque daqueles anos, naquele tempo. E eram típicos, digamos assim, esses bravos militantes. Daí, também, que nessa busca Gilberto Gil crie neologismos, em mais de uma oportunidade. Ele está compondo, sempre. Como vocês verão, agora.

Desta vez é à vera. Gravando

(Vozes, murmúrios, de outra entrevista, palavras ao fim, de Gil: “Manda um beijão pra ele....”.)

- Em 1969, você e Caetano foram expulsos do Brasil pela ditadura militar. Como é que você vê hoje, quando deu a volta por cima, primeiro com sua música, depois politicamente, porque é um ministro do governo. Que lembranças lhe dão o golpe de 64?

Gil - Das lembranças que a gente tem normais, do passado. Com as boas e más lembranças do passado. Com a recordação dos bons momentos e dos maus momentos, do que os bons momentos fizeram de mal à minha vida, do que os maus momentos fizeram de bem à minha vida ... (Risos) Tudo isso.. (E faz um gesto amplo, circular, com os braços.)

- Depois, quando saiu do Brasil, você compôs “Aquele abraço”.

Gil – Foi... Eu fiz já aqui no Brasil ainda, saindo. Na semana que eu estava indo embora, eu gravei. Na véspera de eu ir embora, eu gravei.

- “Alô, alô Realengo”... Paulo Francis, de quem a gente nunca pode dizer que era um amor de pessoa, ele chegou uma vez no Pasquim ...

Gil - Não, até que um amor de pessoa a gente pode dizer. A gente pode dizer que talvez ele não fosse uma pessoa do amor. (Risos) Que ele era amável, em tudo. Mas renitente com esse exercício irrestrito da amorabilidade. Ele tinha coisas das quais ele não queria mesmo gostar e não queria que aquelas coisas fossem aceitáveis, que eram pra ele inaceitáveis!...

- Ele chegou uma vez a te elogiar num artigo no Pasquim, quando escreveu mais ou menos assim, “o Gil poderia estar mais do que rico depois de ‘Aquele abraço’, mas ele não é homem de repetir a fórmula que deu sucesso”.

Gil - Eu nunca fiz música pra, pra...

- Tocar no rádio?

Gil - Não, pra estabelecer uma linha de montagem, ou estabelecer uma reprodução do mesmo modelo, pra explorar os filões de mercado, coisa desse tipo nunca foi preocupação minha. Eu gosto de fazer sucesso, eu gosto de vender disco também, tudo, mas não, por exemplo, eu gosto de fazer sucesso, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes, por exemplo. (Risos) Eu não gosto muito. (Risos.) Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez, eu não quero. (Risos)

- Você esteve aqui no Recife em 67, passou dois meses, travou contato com o pessoal do Teatro Popular do Nordeste...

Gil - Com Leda Alves, Hermilo Borba Filho...

- Como foi essa sua passagem pelo Recife?

Gil - Ah, um mês eu fiquei aqui, aí eu conheci Teca Calazans, eu conheci Geraldinho Azevedo, eu conheci Marcelo do Quinteto Violado, conheci Toinho do Quinteto Violado, os meninos, conheci tanta gente, conheci Carlos Fernando, conheci tanta gente...

- Visitou Caruaru?

Gil - Fui a Caruaru. Ainda hoje eu fui a Caruaru com Fernando Lyra, que me recebeu em Caruaru, daquela vez, há 40 anos, enfim. Naquela época Carlos Fernando me levou pra Zona da Mata, me levou pra Nazaré da Mata, me levou pra os lugares todos, eu andei por tudo isso aqui. E ali o centro era o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, era, toda a noite eu me apresentava lá, durante pelo menos duas semanas eu fiquei lá cantando, toda noite, e ali iam os músicos, e ali apareceu o percussionista, o nosso querido Naná Vasconcelos, que era baterista da banda da Aeronáutica naquela época.

- E você gravou Pipoca Moderna, não foi isso?

Gil - Gravei... Eu na verdade eu não gravei. Pipoca Moderna eu pus a gravação, abri meu disco Expresso 2222 com a gravação da Banda de Pífanos de Caruaru, que eu tinha feito em um gravadorzinho como este seu (aponta para o pré-histórico gravador da Sony que estava comigo), com Carlos Fernando, na época em que nós fomos a Caruaru. Há 40 anos. E eu pus essa música na abertura do disco Expresso 2222. Mais tarde Caetano fez uma letra para o Pipoca Moderna, e aí ele próprio gravou, e outros artistas gravaram Pipoca Moderna, como canção, cantada. Mas a primeira publicação dela foi feita através do disco Expresso 2222 com uma gravação doméstica da Banda de Pífanos de Caruaru.

- Você tem uma coisa interessante, que é como você une o popular à vanguarda. Como é que é isso?

Gil - Em todo o mundo a gente faz isso. Cada um tem o seu modo de fazer. O Chico faz isso, o Caetano faz isso, os Beatles faziam isso na Inglaterra, Bob Dylan fez isso nos Estados Unidos. Muita gente faz isso, é uma prática que se tornou comum, os artistas não querem ficar isolados, em um segmento só, confinados a um determinado só único mundo musical, música é um trânsito permanente entre... Todos nós tivemos música clássica em nossa infância, ouvimos Bach, ouvimos Beethoven, ouvimos isso, ouvimos aquilo, somos influenciados por esses contextos, e ao mesmo tempo temos a música da rua, a música de nossas cidades, a música de nossas feiras, de todos os lugares. Enfim, queremos misturar tudo isso, queremos fazer com que esses espaços dialoguem, uns com os outros, não é? Então eu tenho o meu modo de fazer isso. Às vezes, antigamente, por exemplo, naquela época aqui, eu peguei duas cirandas, utilizei excertos dessas cirandas, não é?, e complementei com canções que eu fiz. É o caso do Pé da Roseira, é o caso da Barca Grande, é... (Canta)

“O pé da roseira murchou
e as flores caíram no chão.
Quando ela chorava, eu dizia,
tá certo, Maria,
você tem razão”.

Isso é uma ciranda. (Canta)

”Eu vim aqui pra te ver,
como te vi, vou-me embora.
Trabalho na barca grande,
só chego fora de hora”....

Também é uma ciranda. E no entanto essas cirandas viraram trechos iniciais de canções mais longas que eu fiz. Há muitas maneiras..

- Villa-Lobos fazia isso.

Gil - Fazia isso também. Bartók fazia isso, Bach, não é?

- Você é um compositor que sem alarde, ou como se dizia naquela época, “sem dar bandeira”, você é um compositor muito político. Pelo que eu lembro da juventude da época, na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?

Gil - Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso... (Tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais ... mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.

- Quando você diz que pegava uma linha política mais aberta, menos amarrada a programas tradicionais, eu lembro que a sua trajetória de diálogo com a esquerda nem sempre foi ausente de conflitos.

Gil - Foi tangencial sempre. (Riso) Eu nunca mergulhei em nenhuma corporação, em nenhuma unidade da política das esquerdas, porque eu sempre fui uma coisa que o Partido Comunista naquela época costumava classificar como “linha auxiliar”. (Riso) Eu ajudava, mas eu não era propriamente um ...

- Era um aliado?

Gil - Eu era um aliado. Eu tinha esse trabalho tangencial, onde nos pontos onde havia tangenciamento entre meu processo e o processo deles, a gente caminhava junto. Nos outros, eu ia solto.

- Você sabe o que ocorreu com Geraldo Vandré?

Gil - Não tenho tido notícias recentes dele... Notícias até tenho, não tenho tido contatos recentes com ele. Os últimos contatos que eu tive com Vandré já vão alguns anos atrás. Ele se envolveu num processo de mais reclusão, de mais afastamento...

- Esquizofrenia, parece.

Gil: - É o que dizem dele. Ele teve o conjunto das questões dele, teve esse aspecto também de uma problematização psiquiátrica também. De formas que ele descontinuou um pouco o trabalho, propriamente. Vandré não deu continuidade ao trabalho dele.

- Você chegou a ser parceiro dele.

Gil - Muito, em algumas canções. Umas quatro ou cinco fizemos.

- Como estão hoje as suas relações com Caetano Veloso?

Gil - Isso é fácil. As mesmas de sempre. (Riso)

- As relações de amizade são ótimas.

Gil - São ótimas. As relações de convívio, nem tanto... por causa dos descaminhos, os nossos caminhos cruzam pouco hoje, porque eu estou com o Ministério, eu viajo muito, estou muito fora... (Tosse) do Brasil, fora do Rio, e tal. Então são muito poucas as oportunidades de sentar, conversar, conviver. Outro dia, a última vez em que nós estivemos juntos foi numa situação muito auspiciosa, que era um show dele em Porto Alegre, eu tinha ido a Porto Alegre para uma atividade ministerial, e havia um show de Caetano naquela noite em Porto Alegre. E eu fui, e depois do show, além de ter tido esse momento extraordinário de poder assistir a um show dele, ainda saímos juntos pra noite porto-alegrense depois.

- Fumaram o cachimbo da paz.

Gil - Fumamos ... Não, não, o cachimbo da paz já está. A paz nunca deixou de existir entre nós. Mas nós pudemos conviver durante algumas horas numa forma como a gente não vinha podendo conviver.

- Agora, a pergunta que eu venho guardando desde o começo: se você não fosse um homem negro, que artista você seria?

Gil - Eu não faço a menor idéia. (Risos.) Eu não faço a menor idéia. Eu não teria essa sestrosidade rítmica que eu tenho, isso é uma coisa que eminentemente muita gente tem, outras raças, outros contextos étnicos propiciam, mas a vivência negra, da cultura negra... e quando eu digo raça, digo nesse sentido, de mais no sentido da cultura, de ser negro culturalmente negro me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo enfim que eu não teria não sendo negro, e portanto não seria o artista que eu sou. Seria outro. Outra pessoa. (Riso e sorriso.)

- E se você não fosse músico, o que você seria?

Gil - Arquiteto, talvez.

- Nada a ver com administração de empresas.

Gil - Não, porque eu me formei em administração de empresas, mas na verdade o campo de aplicação do meu talento mesmo, o campo de interesse da minha expressividade interior, etc. , se não na música se daria mais proximamente de uma coisa como Arquitetura.

- Seria ligado à arte de qualquer maneira.

Gil - É isso o que eu quero dizer. Mais do que administração. Ainda que eu goste de administração, tanto que eu fiz administração, e tanto que eu tentei aproveitar o que aprendi na formação, no campo prático, criei minha própria empresa, e coisas desse tipo. Me interessei por esse lado do empresarial, eu fui sem dúvida alguma muito estimulado pela formação da universidade.

- Eu fui no seu site oficial, e pude ver que você nasceu em Salvador, mas teve uma infância rural.

Gil - Nasci em Salvador circunstancialmente, em uma família que já habitava, que já morava no sertão. Ituaçu. Minha mãe veio pro parto em Salvador, porque era de família de lá, meu pai também, minha mãe ainda viva, está com 93 anos agora, meu pai já é falecido, mas eram ambos de Salvador, tinham ido pro sertão e casaram e foram pro sertão. Na hora em que nasceu o primeiro filho, voltaram para Salvador, porque era lá que as famílias deles estavam. Então era mais seguro, mais aconchegante... (Faz um gesto a indicar que está na hora de encerrar)

- Só uma última pergunta. Não existe um Gil. Existem Gis. Há muitas imagens físicas, fases, variações na sua vida...

Gil - Isso é comum a todos os seres humanos. Não existem indivíduos. Existem divíduos, como diz Gilles Deleuze. (Ri.) Ninguém é um. Todos nós somos muitos, somos múltiplos.

- Muito obrigado, Ministro.

* Jornalista e escritor

2 comentários:

  1. Gil é o máximo mesmo, sempre fui mais fã dele do que do Caetano. Como vc disse ao final, ele é múltiplo e competente, muito competente, em cada uma das suas atividades. E a sua entrevista, caro Urariano, resultou brilhante. Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Gil fala como compõe. Algumas partes, assim como seus versos, não são claramente compreendidos. O mistério criado o faz ainda mais interessante. Note-se que tempo da entrevista foi sobejamente aproveitado. E ganhamos nós em ler o feliz resultado.

    ResponderExcluir