Bicicleta ergonométrica: guia prático de convivência pacífica
* Por Marcelo Sguassábia
Trapacear a si mesmo arrumando outra desculpa seria infantil: você jurou que começava na segunda, e segunda é um dia que sempre chega antes do que a gente espera. Olhe só pra ela: novinha, reluzente, a nota fiscal sobre o selim ainda coberto de plástico-bolha. Dizem que vendo TV enquanto pedala o sacrifício fica mais fácil. O problema é que, pra arrumar um lugar pra sua TurboBike Magnetic Flash, você teve que tirar a TV do quarto. E poderia ser pior: um centímetro a mais e a cama também teria que ir parar no corredor.Uma bicicleta ergométrica é, literalmente, fria e calculista. Fria por ser metálica (no inverno é particularmente repugnante chegar perto); calculista pelo display multifunções que ostenta no guidom, se é que se pode chamar de guidom aquele troço que não vira nem pra esquerda nem pra direita. Enquanto você veste o agasalho esportivo, ela parece dizer: "Vem, amorzinho, monta com vontade. Prova que você é macho de verdade, vamos perder juntinhos aquela pizza 4 queijos que você ganhou ontem".
Você até pensou em comprar uma bicicleta comum, dessas de 18 marchas. Observando a paisagem a coisa ficaria mais lúdica e pitoresca, com a vantagem de mostrar pra vizinhança que você cuida da forma. Mas agora é tarde, e o que resta é lidar da melhor maneira com seu novo algoz. Aí vão algumas dicas:
- Meia hora parece meio mês quando se está em cima de uma ergométrica. Melhor não ficar olhando a cada dois minutos para o indicador de tempo de exercício. Experimente a nova técnica denominada “bike meditation”: aprumando a coluna no banco, feche os olhos, respire compassadamente e imagine-se a pedalar no Caminho de Santiago. Faça da tortura algo sagrado e redentor, um instrumento de purificação da alma.
- Não tente ler jornal enquanto pedala. Além de trepidar com o movimento - o que é péssimo para a vista, em minutos seu exemplar estará empapado de suor - o que será repulsivo para quem folheá-lo depois de você.
- Evite pensar no esforço a ser feito - concentre-se nos conseqüentes resultados. Imagine-se com os pneus devidamente esvaziados, a região glútea fortalecida e os bíceps schwarzenegicamente anabolizados.
- Disfarce a aversão: seja amigável com ela. Cumprimente-a pela manhã, alise-a, pergunte como estão suas catracas. Faça dela sua aliada. Afinal de contas, ela estava muito bem lá na loja. Foi você quem inventou de trazê-la pra casa. E, como dizia o Pequeno Príncipe, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
- Com o passar dos meses, o mecanismo começa a ranger. Isso é mortalmente irritante. Para contornar o problema, assovie sua música predileta. Ou mantenha à mão um óleo lubrificante de boa qualidade, para não acordar os vizinhos de cima e de baixo do seu apartamento.
- Conforme-se com uma série de sacrifícios heroicamente praticados mundo afora, sem benefício algum para a saúde. O faquirismo, a auto-flagelação, as caminhadas sobre brasas, as filas nas repartições públicas. Você verá que, mesmo montado numa ergométrica, é feliz e não sabia.
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
Trapacear a si mesmo arrumando outra desculpa seria infantil: você jurou que começava na segunda, e segunda é um dia que sempre chega antes do que a gente espera. Olhe só pra ela: novinha, reluzente, a nota fiscal sobre o selim ainda coberto de plástico-bolha. Dizem que vendo TV enquanto pedala o sacrifício fica mais fácil. O problema é que, pra arrumar um lugar pra sua TurboBike Magnetic Flash, você teve que tirar a TV do quarto. E poderia ser pior: um centímetro a mais e a cama também teria que ir parar no corredor.Uma bicicleta ergométrica é, literalmente, fria e calculista. Fria por ser metálica (no inverno é particularmente repugnante chegar perto); calculista pelo display multifunções que ostenta no guidom, se é que se pode chamar de guidom aquele troço que não vira nem pra esquerda nem pra direita. Enquanto você veste o agasalho esportivo, ela parece dizer: "Vem, amorzinho, monta com vontade. Prova que você é macho de verdade, vamos perder juntinhos aquela pizza 4 queijos que você ganhou ontem".
Você até pensou em comprar uma bicicleta comum, dessas de 18 marchas. Observando a paisagem a coisa ficaria mais lúdica e pitoresca, com a vantagem de mostrar pra vizinhança que você cuida da forma. Mas agora é tarde, e o que resta é lidar da melhor maneira com seu novo algoz. Aí vão algumas dicas:
- Meia hora parece meio mês quando se está em cima de uma ergométrica. Melhor não ficar olhando a cada dois minutos para o indicador de tempo de exercício. Experimente a nova técnica denominada “bike meditation”: aprumando a coluna no banco, feche os olhos, respire compassadamente e imagine-se a pedalar no Caminho de Santiago. Faça da tortura algo sagrado e redentor, um instrumento de purificação da alma.
- Não tente ler jornal enquanto pedala. Além de trepidar com o movimento - o que é péssimo para a vista, em minutos seu exemplar estará empapado de suor - o que será repulsivo para quem folheá-lo depois de você.
- Evite pensar no esforço a ser feito - concentre-se nos conseqüentes resultados. Imagine-se com os pneus devidamente esvaziados, a região glútea fortalecida e os bíceps schwarzenegicamente anabolizados.
- Disfarce a aversão: seja amigável com ela. Cumprimente-a pela manhã, alise-a, pergunte como estão suas catracas. Faça dela sua aliada. Afinal de contas, ela estava muito bem lá na loja. Foi você quem inventou de trazê-la pra casa. E, como dizia o Pequeno Príncipe, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
- Com o passar dos meses, o mecanismo começa a ranger. Isso é mortalmente irritante. Para contornar o problema, assovie sua música predileta. Ou mantenha à mão um óleo lubrificante de boa qualidade, para não acordar os vizinhos de cima e de baixo do seu apartamento.
- Conforme-se com uma série de sacrifícios heroicamente praticados mundo afora, sem benefício algum para a saúde. O faquirismo, a auto-flagelação, as caminhadas sobre brasas, as filas nas repartições públicas. Você verá que, mesmo montado numa ergométrica, é feliz e não sabia.
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Você tem razão, Marcelo. Essas bicicletas são um horror. Prefiro caminhadas ao ar livre, vendo as árvores,as flores, as crianças. Ouvindo os pássaros...
ResponderExcluirMillor assinaria esta crônica, Veríssimo tb e eu, fosse um menininho mau-caráter, me adonaria da dita e sairia correndo a mostrar aos meus pais "olhem o que escrevi, olhem só isto!" Porque se trata de obra-prima do humor, um texto tão bem escrito quanto engraçado que nos deixa com a sensaçãode termos ganhado o dia. E viva mestre Marcelo!
ResponderExcluirTenho uma relação antiga com bicicleta ergométrica: 30 anos. De ouvir falar, já que nunca tive e jamais terei uma delas. Tenho certeza que pedalar trata-se do pior castigo que um ser humano já idealizou para massacrar o outro. A lista de sugestões para minimizar o sofrimento pode ser acrescido do seguinte: em vez de comprar, peça emprestado por três meses. Assim, a vistosa amiga será cabide apenas por esse tempo, e pode ser que você consiga usá-la por um bom par de vezes.
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