

O beijo
* Por Anton Tchecov
Na noite de vinte de maio, às oito horas, as seis baterias da *** Brigada de Artilharia, em sua marcha para o campo de manobras, chegaram à aldeia de Miestechky na intenção de ali passar a noite.
A confusão era a maior possível — alguns oficiais agitavam-se entre os canhões, outros procuravam acomodar-se na praça da igreja — quando detrás da igrejinha surgiu um civil cavalgando notabilíssimo corcel. O pequeno baio de cauda curta e lindo pescoço arqueado avançou com um movimento de marcha, fazendo durante todo o tempo passos de dança com as pernas flexíveis, como se alguém estivesse a chicotear-lhe constantemente os cascos. Quando chegou perto dos oficiais, o cavaleiro tirou o gorro e disse cerimoniosamente:
— Sua Excelência, o general von Rabbek, cuja residência é logo ali, quer ter a honra da companhia dos senhores oficiais para o chá…
O cavalo sacudiu a cabeça, ziguezagueou, afastou–se a marchar; o homem que o cavalgava tirou mais uma vez o gorro e, virando a rédea ao seu estranho animal, desapareceu atrás da igreja.
— O diabo que o carregue! foi a exclamação geral, enquanto os oficiais se dispersavam em demanda de seus alojamentos. — Mal podemos manter os olhos abertos, e por cima nos vem esse von Rabbek com seu chá! Sei muito bem que chá c esse…
Os oficiais das seis baterias ainda se lembravam vividamente de um passado convite. Durante recentes manobras foram convidados, juntamente com seus camaradas cossacos, para um chá em casa de um pomietschik local, certo oficial reformado com o título de conde; e o tal bondoso, hospitaleiro conde cumulou-os de atenções, alimentou-os quase a ponto de estourar, encheu-os de vodka, e fê-los passar ali. a noite. Tudo isso, como era natural, divertiu-os muito. A maçada foi que o veterano militar entreteve seus hóspedes demasiado bem. Manteve-os acordados até o despontar do dia, contando-lhes episódios anedóticos de suas passadas aventuras; arrastou-os de cômodo em cômodo mostrando-lhes valiosas pinturas, velhas gravuras, e armas que eram uma raridade; leu para eles cartas hológrafas de homens célebres. E os pobres oficiais, mortos de cansaço, escutaram, a suspirar pelas suas camas, escondendo cuidadosamente os bocejos na manga do dólman, até que, afinal, quando o anfitrião os deixou em liberdade, já era muito tarde para dormir.
Não seria von Rabbek um outro conde? Podia perfeitamente ser. Mas não desprezaram o convite. Lavados e vestidos, lá se foram os nossos oficiais para a casa de von Rabbek. Na pracinha da matriz foram informados de que deviam descer a colina até o rio e margeá-lo até chegar ao jardim do general, onde encontrariam uma alameda que ia dar exatamente em sua mansão. Ou, se preferissem subir a colina, alcançariam os celeiros do general a meia versta de Miestechky. Foi este o itinerário que escolheram.
— Mas quem é esse von Babbek? perguntou um. O homem que comandava a *** Divisão de Cavalaria de Plevna?
— Não, aquele não era von Kabbek, mas simplesmente Rabbe… sem o von.
— Que tempo glorioso!
Quando chegaram ao primeiro celeiro, o caminho se bifurcava; um seguia x>ara a frente em linha reta e perdia-se na bruma; o outro dobrava à direita, dirigindo-se para o solar do general. À medida que se aproximavam, os oficiais falavam menos alto. De ambos os lados alinhavam-se os beirais avermelhados dos telhados dos celeiros, emprestando ao ambiente o aspecto pesado e austero dos barracões das cidades provincianas. Em frente reluziam as janelas iluminadas da casa de von Rabbek.
— Boas falas, meus senhores! exclamou um jovem oficial. Nosso olfato de cão perdigueiro já fareja qualquer coisa. Há caça da boa lá adiante!
Sobre as faces do tenente Lobytko, o belo e alto oficial a que acabamos de nos referir, não havia um fio sequer de barba, embora já contasse vinte e cinco anos bem contados. Era famoso entre os camaradas pelo instinto que sempre o advertia da presença de mulheres na vizinhança. Ao ouvir o comentário de um colega, virou a cabeça e afirmou.:
— Sim. Há mulheres ali. É meu instinto que o diz.
Um bonito, bem conservado sexagenário, metido num muflti assomou à porta do vestíbulo para saudar os hóspedes. Era vou Rabbek. Ao apertar-lhes a mão, explicou que embora estivesse encantado por vê-los, devia pedir-lhes perdão por não os convidar para passar ali a noite; já tinha como hóspedes duas irmãs, os respectivos filhos, um irmão e numerosos vizinhos… não tinha verdadeiramente mais um quarto vago. E não obstante lhes apertar a mão, sorrir e prodigalizar as boas-vindas, era mais do que claro que ele não tinha nem metade da satisfação do conde do ano passado e apenas os havia convidado por mera formalidade. Os oficiais, subindo os degraus forrados de macios tapetes e ouvindo o dono da casa, compreenderam isto perfeitamente; e perceberam que traziam mesmo àquela casa uma atmosfera de intrujice e mal-estar. Poderia lá um homem — indagavam eles dos seus botões — que já tinha reunidos suas irmãs com os respectivos rebentos, um irmão e mais os vizinhos, para celebrar, na certa, alguma festa de família, achar prazer nesta invasão de dezenove oficiais que jamais vira antes1? Uma matrona alta, de boa idade e feições simpáticas, com o rosto comprido encimado por negras sobrancelhas, muito parecida com a ex-imperatriz Eugênia, cumprimentou-os à entrada do salão de estar. A sorrir cortesmente e cheia de dignidade, afirmou que estava jubilosa por ver os oficiais e somente sentia não poder convidá-los para passar a noite. Mas o seu cortês e digno sorriso desapareceu tão logo se afastou, e não havia dúvida de que já se avistara com inúmeros oficiais em sua vida, para que estes lhe causassem o mais leve interesse, e se dissera aquelas palavras foi unicamente porque assim lhe ditava sua alta linhagem e a posição mundana.
Numa ampla sala de jantar, sentados a uma enorme mesa, estavam dez homens e mulheres a beber chá. Atrás deles, envoltos numa nuvem de fumaça de cigarros, achavam-se vários jovens e entre eles um extremamente magro, de suíças vermelhas, que falava muito alto um. inglês cicioso. Transpondo a porta escancarada, os oficiais se viram em uma peça bem iluminada, com as paredes forradas de azul.
— Os senhores são bem numerosos para apresentações individuais! declarou em tom de voz exagerado o general, afetando jovialidade. — Tratem de estabelecer relações, por favor… sem formalidades!
Os visitantes, alguns com o rosto sério, mesmo severo, outros a sorrir contrafeitos, mas todos fortemente acanhados, inclinaram-se e tomaram lugar à mesa. Mais acanhado do que todos se sentia o capitão Riabóvich, um oficial baixinho, de ombros caídos, caixa-d’óculos, de suíças lembrando um lince. Enquanto os colegas se mostravam cheios de seriedade ou sorriam encabulados, suas faces, as suíças de lince e seu par de óculos pareciam explicar: "Eu sou o mais tímido, modesto e insignificante oficial de toda a brigada". Depois que se sentou à mesa levou ainda algum tempo sem poder fixar a atenção em coisa alguma ao redor de si. Rostos, vestidos, os frascos burilados do conhaque, os compridos copos a deitar fumaça, as cornijas modeladas — tudo se confundia num só e dominante sentimento que lhe causava intenso terror e quase o forçava a procurar um buraco onde meter a cabeça. Como inexperiente conferencista, ele via todas as coisas diante de si sem nada poder distinguir, e era com efeito uma vítima disso que os homens de ciência diagnosticam como "cegueira psíquica".
Mas, voltando lentamente à posse de si mesmo, Riabóvich começou a perceber e observar. Como procede um homem tímido e insociável, em primeiro lugar notou a divertida temeridade dos seus novos amigos. Vem Rabbek, a esposa, duas damas já maduras, uma rapariga de lilás, e o jovem de suíças cor-de-fogo que, pela aparência, era um ramo moço de vou Rabbek, sentaram-se entre os oficiais com tanta intimidade como se o tivessem ensaiado previamente e logo se entregaram a acaloradas discussões com as quais não tardaram a envolver os hóspedes. Aqueles homens da artilharia tinham dias bem melhores do que os da cavalaria ou da infantaria, provava concludentemente a moça de lilás, ao mesmo tempo que von Rabbek e as duas damas idosas afirmavam o contrário. A conversa tornou-se incoerente. Riabóvich ouvia a jovem de lilás debater altivamente temas dos quais nada sabia e pelos quais não se interessava, e surpreendeu os insinceros sorrisos que apareciam e desapareciam em seu rosto.
Enquanto a família von Rabbek com admirável estratégia seduzia seus hóspedes e os lançava na discussão, estes mantinham os olhos bem abertos para cada copo e cada boca. Todos tomavam chá; o chá estava suficientemente doce; por que aquele não comia biscoitos, aquele outro gostava tanto assim de conhaque? E mais Riabóvich escutava e observava, mais se divertia com essa dissimulada, disciplinada família.
Após o chá os convidados voltaram ao salão de estar. O instinto não falhara a Lobytko. A peça estava cheia de jovens mulheres e mocinhas, e não havia decorrido ainda um minuto e já o nosso tenente-perdigueiro estava aboletado ao lado de uma rapariga muito jovem e loura, vestida de preto. Inclinando-se como se fosse apoiar-se numa espada invisível, ele encolhia maliciosamente os ombros. Devia estar dizendo, com certeza, alguma divertida frioleira, pois a moça olhava indulgentemente para seu rosto bochechudo e exclamava com indiferença: "Será possível?!". E este "será possível?!" indiferente podia ter convencido depressa o perdigueiro de que ele tomava uma pista errada.
Começou a música. Enquanto as notas de melancólica valsa escapuliam pela janela aberta, pela cabeça de todos passava o pensamento de que lá fora a noite tinha os encantos primaveris de maio. O ar estava impregnado do perfume das tenras folhas do choupo, das rosas e lilases… e a valsa e a primavera eram coisas reais. Riabóvich, com valsa e conhaque a lhe dar traiçoeiramente voltas à cabeça, lançou a sorrir um olhar pela janela; depois começou a acompanhar os movimentos das mulheres; e lhe parecia que o perfume das rosas, choupos e lilases não vinham do jardim, mas brotava das faces e dos vestidos femininos.
Principiaram a dançar. O jovem von Rabbek valsejou duas vezes a toda a roda do salão com uma rapariga muito magra; e Lobytko, deslizando no chão encerado, dirigiu-se à moça de lilás e pediu–lhe uma dança. Riabóvich, porém, continuava de pé, agora junto à porta, e contemplava tudo aquilo silenciosamente. Admirado da ousadia dos homens que diante de todo o mundo seguravam as mulheres pela cintura, esforçava-se em vão por se representar fazendo o mesmo. Já se fora o tempo em que tinha inveja da afoiteza e coragem dos camaradas, sofria com o seu penoso escrúpulo, e percebia cheio de mágoa que era tímido, de ombros caídos, e insignificante, e que tinha suíças de lince e que as ancas eram demasiado grandes. Mas com o decorrer dos anos foi-se reconciliando com sua própria insignificância e já agora, ao contemplar os dançarinos e os palradores, não sentia inveja, e sim unicamente melancólica emoção.
Na primeira quadrilha von Rabbek «Júnior aproximou-se e convidou dois oficiais que não dançavam para uma partida de bilhar. Os três deixaram a sala; e Riabóvich, que nada fazia e se sentia impelido a participar do movimento geral, seguiu-os. Cruzaram a sala de jantar, atravessaram um estreito corredor recamado de espelhos e um quarto onde três criados sobressaltados pularam ao mesmo tempo de um sofá; e depois de passar, assim parecia, por um verdadeiro mundo de quartos, entraram num minúsculo salão de bilhar.
Von Rabbek e os dois oficiais começaram a partida. Riabóvich, cujo único jogo eram as cartas, plantou-se ao pé da mesa e pôs-se a olhar com indiferença, enquanto os jogadores, os casacos desabo-toados, manejavam os tacos, movimentavam-se de um lado para outro, diziam pilhérias e soltavam obscuros termos técnicos. Riabóvich ficou ignorado, exceto quando um dos jogadores lhe dava um encontrado ou uma tacada e, virando-se para ele, pedia lacònicamente: "Perdão!". Assim, antes que o jogo estivesse terminado, sentiu-se aborrecido e, considerando quanto aquilo era superficial, deliberou voltar ao salão e saiu.
Foi em sua volta que se deu a aventura. Não tinha ido muito longe quando percebeu que havia errado o caminho. Lembrava-se muito bem do quarto com os três dorminhocos; mas depois de haver passado por cinco ou seis cômodos completamente vazios deu pelo engano. Parou e dirigiu-se à esquerda; e foi dar num quarto quase às escuras que não tinha visto antes. Após um minuto de hesitação, abriu com atrevimento a primeira porta que viu e se achou na mais completa escuridão. Pela fresta da porta em frente esgueirou-se uma réstia brilhante de luz; de longe chegavam notas mortiças de uma lúgubre mazurca. Aqui também, como no grande salão, as janelas estavam abertas de par em par e o cheiro dos choupos, lilases e rosas invadia o ar.
Riabóvich deteve-se irresoluto. Por um momento tudo esteve imóvel. Então chegou o ruído de passos apressados; e depois, sem o menor aviso do que ia acontecer, farfalhou um vestido, a voz de uma mulher ofegante sussurrou: "Até que enfim!" e dois macios, perfumados, inconfundíveis braços femininos estreitaram-lhe o pescoço, um rosto quente encostou-se ao seu e ele recebeu um beijo estalado. Mas, apenas tinha esse beijo ecoado através do silêncio quando a desconhecida estremeceu fortemente e fugiu — tal foi a impressão de Riabóvich — cheia de desgosto. Também Riabóvich tratou de se ir, oríentando-se pela frincha luminosa da porta à sua fluente.
Ao entrar no salão de estar o coração lhe batia violentamente e as mãos tremiam de maneira tão visível que tratou de ocultá-las atrás das costas. Sua primeira sensação foi de vergonha, como se cada uma das pessoas presentes já soubesse que ele acabava de ser abraçado e beijado. Como um caramujo, encolheu-se e pôs-se a examinar medrosamente. Mas vendo que hóspedes e hospedeiros continuavam a dançar e conversar em calma, readquiriu a coragem e entregou-se às emoções experimentadas pela primeira vez em sua vida. Sucedera um fato sem exemplo. Seu pescoço, ainda com a sensação fresca do aperto de dois suaves e perfumosos braços, parecia untado de bálsamo; junto do bigode esquerdo, onde o beijo fora aninhar-se, quedara um friozinho delicioso, como o que deixa na boca uma pastilha de hortelã; e da cabeça aos pés viu-se tomado por nova e inefável sensação que ia crescendo, ia crescendo…
Sentiu que devia dançar, falar, correr pelo jardim, rir à vontade. Esqueceu ao mesmo tempo que tinha os ombros caídos, que era insignificante, que as suas suíças lhe davam um aspecto de lince, que possuía um "físico indefinido" — descrição saída dos lábios de certa mulher com quem estivera casualmente. Quando a senhora von Rabbek passou por perto, ele sorriu-lhe tão franca e graciosamente que ela parou e olhou-o com ar interrogativo.
— Que casa encantadora é a sua! declarou, ajeitando os óculos.
E a senhora, vou Rábbek correspondeu com outro sorriso, disse que a casa pertencia ainda ao pai, perguntou-lhe se tinha pais vivos, desde quando estava no exército e por que era tão magro. Depois de ouvir suas respostas, lá se foi. Mas, não obstante ter cessado a conversa, ele continuava a sorrir benevolamente e a pensar em quão encantadores eram os seus novos conhecidos.
Na ceia Riabóvich comeu e bebeu mecanicamente tudo o que punham diante de si, não escutou uma só palavra da conversa e dedicou todos os seus poderes à revelação da misteriosa, romântica aventura. Como explicá-lo ? Era claro que uma daquelas moças, pensava ele, havia combinado um encontro no quarto escuro e depois de esperar em vão por algum tempo tinha, em sua tensão nervosa, tomado Riabóvich por seu herói. O engano tinha cabimento pois, ao entrar no cômodo às escuras, Riabóvich parará irresoluta-mente como se, também ele, estivesse esperando por alguém. Até aí o mistério estava explicado.
"Mas qual delas foi?" indagava, examinando o rosto de cada uma, Certamente era moça, pois as velhas não se metem em tais romances. E depois, não era uma criada. Isso estava sobejamente provado pelo fru-fru do vestido, pelo delicioso perfume, pela voz…
Quando pela primeira vez olhou para a jovem de lilás, agradou-se dela; tinha lindos ombros e braços, um rostinho simpático, uma voz encantadora. Riabóvich pediu aos céus que fosse ela. Mas, ao rir mais livremente, ela sulcou o nariz de vincos e isso deu–lhe um ar avelhantado. Portanto Riabóvich transferiu seu olhar para a lourinha de vestido preto. A lourinha era mais jovem, mais simples, mais sincera; tinha deliciosos cachinhos e bebia chá no alongado copo com uma graça inexprimível. Riabóvich esperava que fosse ela — mas logo verificou que lhe faltava um quê qualquer em sua fisionomia, e lançou as vistas à sua mais próxima vizinha.
— Ê uma busca sem esperanças… refletiu. Se a gente tomasse os braços e as espáduas da moça de lilás, lhes juntasse os cachinhos da loura e os olhos da criaturinha que está à esquerda de Lobytko, então…
Compôs um retrato com todos esses encantos e teve uma clara visão da moça que o tinha beijado. Mas em parte alguma poder-se-ia ver semelhante criatura.
Finda a ceia, os visitantes, fartos e bêbedos, fizeram as suas despedidas. Novamente o dono e a dona da casa apresentaram desculpas por não poder convidá-los a passar ali a noite.
— Sinto-me muito contente, muito contente, cavalheiros! declarou o general, e desta vez parecia dizer a verdade, sem dúvida porque despachar convivas que se despedem é ofício mais agradável do que recebê-los a contragosto. — Sinto-me realmente muito contente! Espero nova visita quando passarem por aqui de volta. Não façam cerimônia, por favor! Que caminho vão tomar’? Colina acima’? Não, desçam a colina pelo jardim. Fica mais perto.
Os oficiais seguiram o conselho. Depois do reboliço e da feérica iluminação do interior da casa, aquele jardim parecia negro e triste. Até alcançar o portão de saída, todos se mantiveram em silêncio. Alegres, meio ébrios e fartos, como estavam, a escuridão e a tranqüilidade da noite inspiravam-lhes profundos pensamentos. Por seus cérebros, como pelo de Riabóvich, provavelmente passava a mesma [pergunta: "Será que há-de chegar o tempo em que eu, como von Rabbek, terei um casarão, família, um jardim, o ensejo de ser gentil — mesmo que fingida-mente — para com os outros, de deixá-los saciados, bêbedos e contentes’?"
Mas assim que o jardim ficou para trás, falaram todos a uma só vez, e prorromperam em estrepitosa gargalhada. O caminho que seguiam conduzia diretamente ao rio e daí o margeava, por entre moitas, ravinas e pendentes salgueiros. O chão era escassamente visível; a outra margem perdia-se por completo na bruma. Por vezes a água negra espelhava as estrelas e isso era a única indicação da velocidade da corrente. Além, suspirava uma sonolenta narceja, e ali quase ao lado, escondida numa moita, indiferente à presença dos homens, cantava alto um rouxinol. Os oficiais caminhavam em grupo e agitaram a moita, mas o rouxinol prosseguiu em sua cantiga.
— Gostei da cara dele! declararam quase todos em eco. Não é desses que vivem fazendo economias de copeks! Que velho patusco!
Perto do fim da jornada o caminho galgava um pouco a colina e juntava-se à estrada não muito longe da sebe da igreja. Ali os oficiais, ofegantes com a subida, sentaram-se na grama e puseram-se a fumar, Atravessando a corrente, chegou até eles uma luzinha vermelha, e na falta de outra coisa começaram a decifrar se aquilo era um fogo-fátuo, uma lanterna ou a luz de uma janela. Riabóvich também contemplava a luz e como que sentiu que ela lhe sorria e piscava, como se fosse sabedora do segredo do beijo.
Chegando ao alojamento, despiu-se a toda a pressa e deitou-se. Seu quarto era repartido com Lobytko e um certo tenente Merzliakov, homenzinho sisudo e calado, que trazia consigo por todos os cantos o "Mensageiro da Europa" e vivia a lê-lo eternamente. Lobytko, já despido, passeava impacientemente de um lado a outro e mandou o ordenança buscar cerveja. Merzliakov deitou-se, inclinou a luz para o lado de seu travesseiro e esticou a cabeça por trás do "Mensageiro da Europa".
— Onde estará ela agora? resmungou Riabóvich, olhando para o teto negro de fuligem.
O pescoço ainda lhe parecia untado de óleo, perto da boca ainda sentia o friozinho que deixa a hortelã-pimenta. Em seu cérebro perpassavam sucessivamente os ombros e braços da moça de lilás, os cabelos encaracolados e os olhos honestos da jovem vestida de preto, e uma multidão de cinturas, vestidos e broches. Mas, embora tudo fizesse para fixar essas imagens esquivas, elas se desenhavam tremula-mente, esvaíam-se e sumiam por fim; e ao desaparecerem afinal na vasta cortina negra suspensa diante dos olhos fechados de todos os homens, ele começou a escutar passos precipitados, o crepitar de saias, o ruído de um beijo. Apossou-se dele violenta, inexplicável alegria. Mas quando se entregava a esse transporte, o ordenança de Lobytko voltou com a notícia de que não lhe fora possível obter cerveja. O tenente voltou a medir o quarto a largas passadas.
— Camarada mais idiota! exclamou, parando primeiro perto de Kiabóvich e depois perto de Merzliakov. — Só mesmo o mais imbecil e cabeçudo pulha não pode arranjar cerveja! Canaille!
— Toda a gente sabe que aqui não há cerveja, consolou-o Merzliakov, sem levantar os olhos de seu "Mensageiro da Europa".
— E você acredita nisso! bradou Lobytko. Deus do céu, joguem-me na lua e em cinco minutos verão como encontrarei cerveja e mulheres! Eu mesmo acharei! Chame-me de intrujão se o não fizer!
Vestiu-se lentamente, acendeu em silêncio um cigarro e saiu.
— Rabbek, Grabbek, Labbek, resmungou, parando na saleta. Não quero ir só, com mil demônios! Riabóvich, quer vir dar uma voltinha’? Como?
Não obtendo resposta, voltou, despiu-se sem pressa e deitou-se. Merzliakov deixou escapar um suspiro, dobrou o "Mensageiro da Europa", e apagou a luz.
— E então ? — murmurou Lobytko, fumando seu cigarro no escuro.
Riabóvich puxou as cobertas até o queixo, encolheu-se formando quase um rolo, e apurou a imaginação para reunir suas imagens imprecisas num todo mais coerente. Mas a visão fugia-lhe sempre. Dentro em pouco estava dormindo e sua última impressão foi que tinha sido acariciado e mimado, que em sua vida sucedera algo estranho e mesmo ridículo, mas extraordinariamente bom e radioso. E tal pensamento não o abandonou, até nos sonhos que teve.
Quando acordou a sensação do bálsamo e da hortelã-pimenta tinha-se ido. Mas o contentamento, como na noite da véspera, enchia-lhe cada veia. Olhou extasiado para as vidraças da janela douradas pelo sol nascente e escutou os ruídos exteriores. Alguém falava alto precisamente em baixo de sua janela. Era Lebedetzki, comandante de sua bateria, que acabava de juntar-se à brigada. Conversava com o primeiro-sargento, em voz alta, demonstrando não ter lá grande prática de falar a meia-voz.
— E o que mais? trovejou.
— Quando ontem ferrávamos os animais, Vossa Honra, Golubtchik foi ferido. O mestre-ferrador mandou buscar barro e vinagre. E a última noite, Vossa Honra, o mecânico Artemiev embebedou-se e o tenente mandou colocá-lo no carro de munições atrelado à carreta do canhão de reserva.
O primeiro-sargento acrescentou que Karpov havia esquecido as cavilhas da tenda e os novos rizes para os tubos de fricção, e que os oficiais tinham passado a noite em casa do general vou Rábbek. Mas, aí, à janela assomou a cara barbuda de Lebedetzki. Piscou os olhos míopes para os homens sonolentos sobre as camas e lhes deu bom-dia.
— Vai tudo bem?
— O cavalo das varas feriu a cernelha com o novo peitoral, respondeu Lobytko.
O comandante suspirou, pensou um momento e desabafou:
— Estou pensando em visitar Alexandra Iegórovna. Quero vê-la. Adeus! Procurarei vocês antes de anoitecer.
Quinze minutos depois a brigada punha-se novamente em marcha. Ao passarem pelos celeiros de von Babbek, Biabóvich virou a cabeça e olhou para o solar. As venezianas estavam arriadas; evidentemente tudo ali ainda dormia. E entre eles, ela também dormia… aquela que o havia beijado não fazia muitas horas. Tentou visualizar o seu sono. Imaginou a janela do quarto completamente aberta com ramos verde jantes a balouçar defronte numa cadência suave, o frescor do ar matinal, o rescender dos choupos, lilases e rosas, o leito, uma cadeira, o vestido que farfalhou na véspera, um par de delicados chinelos, um relógio sobre a mesa a fazer tique-taque; tudo isso até em seus detalhes lhe veio à imaginação com a máxima clareza. Mas as feições, o terno e sonolento sorriso — enfim o que era essencial e característico lhe fugia da imaginação como o azougue foge da mão. Quando já havia caminhado meia versta tornou a olhar para trás. A igrejinha amarela, a mansão, os jardins, o rio estavam banhados de luz. Refletindo o céu de anil, a corrente, contida entre duas margens a dissipar verdores, fazia ricochetar os raios prateados do sol e tinha um aspecto inexprimivelmente belo; e, lançando a Miestechky o seu último olhar, Riabóvich sentiu-se triste, como se se despedisse para sempre de algo muito próximo e muito caro…
Estrada a fora, diante de si, desdobravam-se cenas familiares, desinteressantes; à direita e à esquerda, campos de centeio ainda tenro e trigo mourisco com gralhas saltitantes; em frente, poeira e nucas de homens; atrás, a mesma poeira e faces. À testa da coluna marchavam quatro soldados armados de espada — era a guarda avançada. A seguir iam os da fanfarra. Tanto a guarda avançada como os músicos, emudecidos como numa procissão fúnebre, ignoravam os intervalos regulamentares e marchavam demasiadamente longe do resto do corpo. Riabóvich, com o primeiro canhão da 5.a bateria, podia ver quatro baterias diante de si.
Para um leigo, a longa, agitada marcha de uma brigada de artilharia é coisa nova, atraente e inexplicável. É difícil de entender como um único canhão requer tantos homens; como são necessários tantos cavalos, tão estranhamente arreiados, para arrastá-lo. Mas para Riabóvich, mestre consumado em todas essas coisas, isso era profundamente monótono. Aprendera fazia muitos anos por que um sólido primeiro-sargento trota ao lado do oficial à frente de cada bateria, por que o primeiro-sargento é chamado unosni, e por que os condutores dos cavalos-guia e dos que vão aos varais trotam atrás dele. Sabia Riabóvich por que os animais dos varais eram chamados cavalos selados, e os de fora cavalos–guia — e tudo isso era muitíssimo interessante… Encarapitado num dos selados ia um soldado ainda coberto com a poeira da véspera e com um incômodo, ridículo anteparo a lhe proteger a perna direita. Riabóvich, porém, conhecendo o uso desse guarda–perna, não o achava ridículo. Os condutores, num gesto mecânico e com gritos rápidos, agitavam os chicotes. Os canhões impressionavam. As carretas de munições iam repletas de sacos de aveia feitos de encerado; e os próprios canhões, cercados de chaleiras e sacolas, davam a impressão de mansos animais, guardados por qualquer razão obscura por homens e cavalos. Aos lados do canhão marchavam seis artilheiros, a balançar os braços; e atrás de cada canhão marchavam mais unosniye, "guias" e "selados". E mais e mais canhões, tão feios e sem inspiração como o que lhes ia à frente. Ora, como cada uma das seis baterias da brigada tinha quatro canhões, o desfile alongava-se pela estrada numa extensão mínima de meia versta. Terminava com um carroção de serviço, com o qual, de cabeça pensativamente inclinada, caminhava o burro Magar, trazido da Turquia pelo comandante de uma bateria. Morto para os que o cercavam, Riabóvich marchava para diante, olhando as nucas em frente ou os rostos atrás. Não fora o acontecimento da última noite, e ele a essa hora já estaria meio adormecido. Mas agora absorviam-no novos e arrebatadores pensamentos. Quando pela manhã a brigada se pôs em movimento, ele tentou explicar-se que aquele beijo não tinha outra significação senão a de uma aventura, misteriosa sim, mas trivial; que carecia de importância real; e que pensar nela a sério era portar-se de maneira absurda. Mas a lógica depressa capitulou e ele se entregou à sua vivida imaginação. Via-se na sala de jantar de von Habbek, tête-à-tête com uma criatura composta da moça de lilás e da loura de preto. Ou então, fechando os olhos, punha -se ao lado de uma rapariga diferente, desconhecida, de feições nebulosas; falava-lhe, acariciava-a, deita va-se sobre o seu ombro; imaginava a guerra e a partida.,. e depois, o regresso, a primeira ceia juntos, os filhos…
— Os freios! bradava o comandante quando atingiam o cume de cada colina.
— Os freios! repetia Riabóvich, temendo de cada vez que tal grito lhe dissipasse o mágico enleio e o chamasse de vez à realidade.
Passaram por uma vasta construção rural. Riabóvich por cima da sebe olhou o jardim e viu uma comprida trilha, estreita como uma régua, tapetada de areia amarela e sombreada por jovens bétulas. Num êxtase de encantamento, retraçou na imaginação pequeninos pés pisando a areia amarela; e, num relance, reconstituiu a mulher que o havia beijado, a mulher que se representara depois da ceia da noite anterior. A imagem gravou-se em seu cérebro e nunca mais o abandonou.
O encanto durou até meio-dia, quando a voz de comando chegou pesada do fim da coluna.
— Atenção! Olhar à direita! Oficiais!
Numa caleça tirada por um par de cavalos brancos surgiu o general da brigada. Parou à altura da segunda bateria e pronunciou alguma coisa que ninguém entendeu. Alguns oficiais galoparam, entre eles Riabóvich.
— Bem, como vai a coisa ? — O general piscou os olhos vermelhos e continuou: — Há alguém doente?
Ouvindo a resposta, o generalzinho magrela meditou um momento, virou-se para um oficial e disse:
— O condutor de seu terceiro canhão tirou o guarda-perna e pendurou-o na carreta. Canalha! Castigue-o !
Depois, encarando Riabovich, acrescentou:
— E na sua bateria, penso que os arreios estão frouxos demais.
Tendo feito diversas outras observações igualmente fastidiosas, olhou para Lobytko e riu.
— Por que esse olhar tão abatido, tenente Lobytko? Saudades da senhora Lopukhov, hein? Senhores, ele está suspirando pela senhora Lopukhov!
A senhora Lopukhov era uma criatura alta, desempenada, muito além dos quarenta. Cheio de parcialidade pelas mulheres de porte avantajado, independentemente da idade, o general atribuía o mesmo gosto a seus subordinados. Os oficiais sorriram respeitosamente ; e o general, satisfeito por ter dito algo’ cáustico e humorístico, tocou nas costas do cocheiro e saudou. A caleça afastou-se.
"Tudo isso, embora me pareça impossível e do outro mundo, é na realidade lugar-comum dos mais banais — pensava Riabovich, contemplando a nuvem de pó levantada pela carruagem do general. É fato de todos os dias que todos experimentam… Aquele velho general, por exemplo, deve ter amado; está casado agora e tem filhos. O capitão Wachter é também casado e a esposa o ama, se bem que ele tenha um pescoço escarlate e o peito para dentro… Salmanov é grosseiro, um típico tártaro, mas teve o seu romance que acabou em matrimônio… Eu, como o resto, chegarei a isso mais cedo ou mais tarde."
E o pensamento de que ele era um homem como todos os outros e que teria uma mulher como os demais, alegrou-o e o deixou consolado. Representou-a atrevidamente em seu cérebro e deixou correr feito louca a imaginação.
Ao cair da noite a brigada chegou ao fim de sua marcha. Enquanto os outros oficiais foram esticar–se sob as tendas, Riabóvich, Merziiakov e Lobytko sentaram-se ao redor de uma caixa de provisões e cearam. Merziakov comia lentamente e, deixando o "Mensageiro da Europa" sobre os joelhos, lia com açodamento. Lobytko, falando sem parar, encheu o copo com cerveja. Mas Riabóvich, cuja cabeça estava às voltas com os ininterruptos sonhos que tivera acordado, mastigava em silêncio. Após ter bebido três copos, sentiu-se meio tonto e fraco; e num impulso incoercível resolveu contar aos camaradas a sua aventura.
— Uma coisa extraordinária aconteceu comigo em casa de von Rabbek, começou ele, fazendo o melhor que podia para assumir um tom indiferente, irônico. — Eu vinha, vocês sabem, do salão de bilhar…
E procurou fazer uma história bem detalhada do beijo. Mas num minuto contou todo o caso. Naquele minuto esgotou tudo, detalhe por detalhe; e pareceu–lhe terrível que a história requeresse tão pouco tempo. Devia, pensou ele, ter durado a noite inteira. Quando concluiu, Lobytko que, por ser um mentiroso, não acreditava em ninguém, sorriu incrédulo. Merziiakov franziu o cenho e, com os olhos sempre grudados no "Mensageiro da Europa", replicou indiferentemente:
— Sabe Deus quem era! Atirou-se ao seu pescoço, diz você, e não deu sequer um grito! Alguma lunática, desconfio.
— Deve ter sido uma lunática, concordou Riabóvich.
— Também eu tive aventuras dessa espécie, começou Lobytko, fazendo uma das suas caras. Eu ia para Kovno. Viajava de segunda classe. O carro ia atulhado e eu não podia dormir. Então dei um rublo ao guarda, e ele apanhou minha mala e alojou–me numa cabine. Deitei-me e puxei o grosseiro cobertor sobre mim. A escuridão era total, vocês compreendem. De súbito, senti que alguém batia no meu ombro e respirava forte sobre minha face. Estiquei a mão e senti um cotovelo. Aí abri os olhos. Imaginem só! Uma mulher! Olhos negros como carvão, lábios carmesins como coral do bom, narinas a fre-mir de paixão, seios deliciosos!
— Vá contar isso a outro! interrompeu Merzlia-kov com a voz mais calma. Acredito na história dos seios, mas com toda aquela escuridão como podia você ver-lhe os lábios1?
Rindo da falta de compreensão de Merzliakov, Lobytko procurou sair do dilema. A história aborreceu Riabóvieh. Levantou-se da caixa, estendeu-se no leito e jurou nunca mais admitir quem quer que fosse em sua vida íntima.
A vida de campanha passou sem acontecimento digno de nota. Correram os dias, o de hoje igual ao de ontem. Mas em cada um deles Riabóvich sentiu, pensou e agiu como um homem amoroso. Quando de manhã o ordenança lhe trazia água fria e a despejava por cima da cabeça, sentia em seu cérebro semi-acordado que alguma coisa boa, quente e meiga tinha nascido em sua vida.
À noite, quando os companheiros falavam de amor e mulheres, ele chegava mais para perto a cadeira, e sua fisionomia era. a dum velho soldado que falasse de batalhas em que tomou parte. E quando os bulhentos oficiais, conduzidos pelo faro de Lobytko, faziam excursões donjuanescas no subúrbio vizinho, Riabóvich, apesar de acompanhá-los, ia com menos ímpeto e com a consciência turva, pedindo-lhe mentalmente perdão. Nas horas de lazer e durante as noites de insônia, quando a cabeça se enchia de recordações da infância, do pai, da mãe, de tudo querido e saudoso, lembrava-se sempre de Miestechky, do cavalo dançarino, de von Rabbek, da mulher de von Rabbek, tão parecida com a ex-imperatriz Eugenia, do quarto escuro, da frincha luminosa na porta.
Em 31 de agosto ele deixou o acampamento, desta vez não com toda a brigada mas apenas com duas baterias. Como um exilado que volta à terra natal, sentia-se agitado e nervoso. Ansiava avistar o excêntrico cavalo, a matriz, os dissimulados von Rabbeks, o quarto escuro; e essa voz íntima que tão freqüentemente martela aos ouvidos do homem apaixonado, murmurava-lhe que ele a veria de novo. Entretanto a dúvida o torturava. Como a encontraria? Que lhe deveria dizer? Seria que ela já se tinha esquecido do beijo? Se sucedesse o pior — tentava consolar-se — se nunca mais a visse, podia ao menos andar naquele quarto escuro, e recordar..,
À tardinha os celeiros caiados de branco e nossa conhecida igrejinha cor-de-rosa surgiram no horizonte. O coração de Riabóvich bateu mais fortemente. Nem tomou conhecimento do comentário de um oficial que cavalgava a seu lado. O mundo inteiro estava esquecido e observava avidamente o lampejante rio à distância, os tetos esverdeados, o pombal, sobre o qual evoluíam pássaros, dourados pelos últimos raios do sol.
Ao pôr o cavalo em direção da igreja e ouvir de novo a voz rouca do fiscal do quartel-general, esperava a cada instante que aparecesse um cavaleiro de trás da sebe para convidar os oficiais para o chá… Mas o fiscal terminou sua arenga, os oficiais dispararam para a aldeia, e não apareceu cavaleiro algum.
"Quando Rabbek souber pelos camponeses que voltamos, mandará nos chamar" pensou Riabóvich. E estava tão certo disso que, ao entrar na barraca, custou a compreender por que os camaradas acendiam a candeia e por que os ordenanças se punham a preparar o samovar.
Penosa agitação o oprimia. Deitou-se sobre a cama. Um momento depois se levantava para espiar o cavaleiro. Mas não viu nenhum cavaleiro. Tornou a deitar-se; levantou-se outra vez; e desta vez, impelido pela inquietação, saiu à rua e caminhou para à igreja. A pracinha estava às escuras e deserta. Sobre a colina velavam três soldados silenciosos. Quando viram Riabóvich, pararam, fizeram continência, e ele, retribuindo a saudação, começou a descer a tão lembrada vereda.
Para além da corrente, num céu manchado de púrpura, a lua subia lentamente. Duas camponesas tagarelas andavam numa horta e colhiam folhas de repolho; atrás delas erguiam-se negras sobre o céu as silhuetas de suas choupanas. A margem do rio estava como se fosse ainda maio; as moitas eram as mesmas; as únicas coisas diferentes eram que o rouxinol já não cantava mais, e já não havia o perfume dos choupos e da relva tenra.
Quando chegou ao jardim de von Rabbek, Riabó-vich espreitou por entre a grade do portão. Reinavam silêncio e obscuridade. Com exceção dos alvos troncos das bétulas e das sendas claras entre a relva, todo o jardim estava imerso numa sombra negra, impenetrável. Riabóvich escutou e espiou atentamente. Durante um quarto de hora esteve à espreita; mas, não ouvindo ruído e não vendo luz, voltou lentamente para o acampamento.
Desceu até o rio. Defronte erguia-se a cabine de banho do general; e toalhas brancas estavam penduradas ao corrimão da ponte. Subiu para a ponte e ali ficou imóvel; então, sem a menor razão, tocou numa toalha. Estava húmida e fria. Olhou para baixo, dentro do rio que corria cèleremente, murmurando de maneira quase imperceptível uma queixa ao bater de encontro aos pilares da cabine de banho. Perto da margem esquerda tremeluzia o rubro reflexo da lua, importunado pelas ondulações da água que se encrespavam, se dividiam em duas, e, tinha-se a impressão de que o varriam para longe como se varrem aparas e rebarbas.
"Como sou estúpido! como sou estúpido!" pensou Riabóvich, observando as ondas fugidias. "Gomo tudo isso é estúpido!"
Agora que estava morta a esperança, a história do beijo, sua impaciência, seu ardor, suas vagas aspirações e a desilusão apareciam em plena luz. Não parecia mais estranho que o cavaleiro do general não tivesse .surgido e que ele não tornasse a ver aquela que o tinha beijado acidentalmente em lugar de um outro. Ao contrário, sentia como seria estranho se algum dia chegasse a vê-la…
A água corria, mas ninguém sabia para onde e por que. Já em maio passado ela correra do mesmo jeito; lançara-se num grande rio; esse rio, no mar; depois subira transformada em vapor e flutuara no ar para cair depois, em forma de chuva; e talvez a água de maio fosse a que agora corria sob os olhos de Riabóvich. A que propósito? Por quê?
E todo o mundo — a própria vida parecia a Riabóvich uma inescrutável, injustificável mistificação … Levantando os olhos da corrente e contemplando o céu, relembrou como o Destino sob a forma de uma mulher desconhecida o afagara um dia; relembrou suas fantasias e imagens do verão — e sua vida inteira pareceu-lhe desnaturadamente vazia, fria e miserável…
Quando chegou à barraca, seus companheiros tinham partido. O ordenança o informou de que tinham ido todos em visita ao "general Fonrabbkin", que mandara um cavaleiro procurá-los.
Por um breve instante, o coração de Riabóvski bateu de alegria. Mas ele sufocou esta alegria. Lançou-se na cama e, danado com sua má sorte, como quisesse desprezá-la, não tomou conhecimento do convite.
(Tradução de Costa Neves. Fonte: Clássicos Jackson).
* Por Anton Tchecov
Na noite de vinte de maio, às oito horas, as seis baterias da *** Brigada de Artilharia, em sua marcha para o campo de manobras, chegaram à aldeia de Miestechky na intenção de ali passar a noite.
A confusão era a maior possível — alguns oficiais agitavam-se entre os canhões, outros procuravam acomodar-se na praça da igreja — quando detrás da igrejinha surgiu um civil cavalgando notabilíssimo corcel. O pequeno baio de cauda curta e lindo pescoço arqueado avançou com um movimento de marcha, fazendo durante todo o tempo passos de dança com as pernas flexíveis, como se alguém estivesse a chicotear-lhe constantemente os cascos. Quando chegou perto dos oficiais, o cavaleiro tirou o gorro e disse cerimoniosamente:
— Sua Excelência, o general von Rabbek, cuja residência é logo ali, quer ter a honra da companhia dos senhores oficiais para o chá…
O cavalo sacudiu a cabeça, ziguezagueou, afastou–se a marchar; o homem que o cavalgava tirou mais uma vez o gorro e, virando a rédea ao seu estranho animal, desapareceu atrás da igreja.
— O diabo que o carregue! foi a exclamação geral, enquanto os oficiais se dispersavam em demanda de seus alojamentos. — Mal podemos manter os olhos abertos, e por cima nos vem esse von Rabbek com seu chá! Sei muito bem que chá c esse…
Os oficiais das seis baterias ainda se lembravam vividamente de um passado convite. Durante recentes manobras foram convidados, juntamente com seus camaradas cossacos, para um chá em casa de um pomietschik local, certo oficial reformado com o título de conde; e o tal bondoso, hospitaleiro conde cumulou-os de atenções, alimentou-os quase a ponto de estourar, encheu-os de vodka, e fê-los passar ali. a noite. Tudo isso, como era natural, divertiu-os muito. A maçada foi que o veterano militar entreteve seus hóspedes demasiado bem. Manteve-os acordados até o despontar do dia, contando-lhes episódios anedóticos de suas passadas aventuras; arrastou-os de cômodo em cômodo mostrando-lhes valiosas pinturas, velhas gravuras, e armas que eram uma raridade; leu para eles cartas hológrafas de homens célebres. E os pobres oficiais, mortos de cansaço, escutaram, a suspirar pelas suas camas, escondendo cuidadosamente os bocejos na manga do dólman, até que, afinal, quando o anfitrião os deixou em liberdade, já era muito tarde para dormir.
Não seria von Rabbek um outro conde? Podia perfeitamente ser. Mas não desprezaram o convite. Lavados e vestidos, lá se foram os nossos oficiais para a casa de von Rabbek. Na pracinha da matriz foram informados de que deviam descer a colina até o rio e margeá-lo até chegar ao jardim do general, onde encontrariam uma alameda que ia dar exatamente em sua mansão. Ou, se preferissem subir a colina, alcançariam os celeiros do general a meia versta de Miestechky. Foi este o itinerário que escolheram.
— Mas quem é esse von Babbek? perguntou um. O homem que comandava a *** Divisão de Cavalaria de Plevna?
— Não, aquele não era von Kabbek, mas simplesmente Rabbe… sem o von.
— Que tempo glorioso!
Quando chegaram ao primeiro celeiro, o caminho se bifurcava; um seguia x>ara a frente em linha reta e perdia-se na bruma; o outro dobrava à direita, dirigindo-se para o solar do general. À medida que se aproximavam, os oficiais falavam menos alto. De ambos os lados alinhavam-se os beirais avermelhados dos telhados dos celeiros, emprestando ao ambiente o aspecto pesado e austero dos barracões das cidades provincianas. Em frente reluziam as janelas iluminadas da casa de von Rabbek.
— Boas falas, meus senhores! exclamou um jovem oficial. Nosso olfato de cão perdigueiro já fareja qualquer coisa. Há caça da boa lá adiante!
Sobre as faces do tenente Lobytko, o belo e alto oficial a que acabamos de nos referir, não havia um fio sequer de barba, embora já contasse vinte e cinco anos bem contados. Era famoso entre os camaradas pelo instinto que sempre o advertia da presença de mulheres na vizinhança. Ao ouvir o comentário de um colega, virou a cabeça e afirmou.:
— Sim. Há mulheres ali. É meu instinto que o diz.
Um bonito, bem conservado sexagenário, metido num muflti assomou à porta do vestíbulo para saudar os hóspedes. Era vou Rabbek. Ao apertar-lhes a mão, explicou que embora estivesse encantado por vê-los, devia pedir-lhes perdão por não os convidar para passar ali a noite; já tinha como hóspedes duas irmãs, os respectivos filhos, um irmão e numerosos vizinhos… não tinha verdadeiramente mais um quarto vago. E não obstante lhes apertar a mão, sorrir e prodigalizar as boas-vindas, era mais do que claro que ele não tinha nem metade da satisfação do conde do ano passado e apenas os havia convidado por mera formalidade. Os oficiais, subindo os degraus forrados de macios tapetes e ouvindo o dono da casa, compreenderam isto perfeitamente; e perceberam que traziam mesmo àquela casa uma atmosfera de intrujice e mal-estar. Poderia lá um homem — indagavam eles dos seus botões — que já tinha reunidos suas irmãs com os respectivos rebentos, um irmão e mais os vizinhos, para celebrar, na certa, alguma festa de família, achar prazer nesta invasão de dezenove oficiais que jamais vira antes1? Uma matrona alta, de boa idade e feições simpáticas, com o rosto comprido encimado por negras sobrancelhas, muito parecida com a ex-imperatriz Eugênia, cumprimentou-os à entrada do salão de estar. A sorrir cortesmente e cheia de dignidade, afirmou que estava jubilosa por ver os oficiais e somente sentia não poder convidá-los para passar a noite. Mas o seu cortês e digno sorriso desapareceu tão logo se afastou, e não havia dúvida de que já se avistara com inúmeros oficiais em sua vida, para que estes lhe causassem o mais leve interesse, e se dissera aquelas palavras foi unicamente porque assim lhe ditava sua alta linhagem e a posição mundana.
Numa ampla sala de jantar, sentados a uma enorme mesa, estavam dez homens e mulheres a beber chá. Atrás deles, envoltos numa nuvem de fumaça de cigarros, achavam-se vários jovens e entre eles um extremamente magro, de suíças vermelhas, que falava muito alto um. inglês cicioso. Transpondo a porta escancarada, os oficiais se viram em uma peça bem iluminada, com as paredes forradas de azul.
— Os senhores são bem numerosos para apresentações individuais! declarou em tom de voz exagerado o general, afetando jovialidade. — Tratem de estabelecer relações, por favor… sem formalidades!
Os visitantes, alguns com o rosto sério, mesmo severo, outros a sorrir contrafeitos, mas todos fortemente acanhados, inclinaram-se e tomaram lugar à mesa. Mais acanhado do que todos se sentia o capitão Riabóvich, um oficial baixinho, de ombros caídos, caixa-d’óculos, de suíças lembrando um lince. Enquanto os colegas se mostravam cheios de seriedade ou sorriam encabulados, suas faces, as suíças de lince e seu par de óculos pareciam explicar: "Eu sou o mais tímido, modesto e insignificante oficial de toda a brigada". Depois que se sentou à mesa levou ainda algum tempo sem poder fixar a atenção em coisa alguma ao redor de si. Rostos, vestidos, os frascos burilados do conhaque, os compridos copos a deitar fumaça, as cornijas modeladas — tudo se confundia num só e dominante sentimento que lhe causava intenso terror e quase o forçava a procurar um buraco onde meter a cabeça. Como inexperiente conferencista, ele via todas as coisas diante de si sem nada poder distinguir, e era com efeito uma vítima disso que os homens de ciência diagnosticam como "cegueira psíquica".
Mas, voltando lentamente à posse de si mesmo, Riabóvich começou a perceber e observar. Como procede um homem tímido e insociável, em primeiro lugar notou a divertida temeridade dos seus novos amigos. Vem Rabbek, a esposa, duas damas já maduras, uma rapariga de lilás, e o jovem de suíças cor-de-fogo que, pela aparência, era um ramo moço de vou Rabbek, sentaram-se entre os oficiais com tanta intimidade como se o tivessem ensaiado previamente e logo se entregaram a acaloradas discussões com as quais não tardaram a envolver os hóspedes. Aqueles homens da artilharia tinham dias bem melhores do que os da cavalaria ou da infantaria, provava concludentemente a moça de lilás, ao mesmo tempo que von Rabbek e as duas damas idosas afirmavam o contrário. A conversa tornou-se incoerente. Riabóvich ouvia a jovem de lilás debater altivamente temas dos quais nada sabia e pelos quais não se interessava, e surpreendeu os insinceros sorrisos que apareciam e desapareciam em seu rosto.
Enquanto a família von Rabbek com admirável estratégia seduzia seus hóspedes e os lançava na discussão, estes mantinham os olhos bem abertos para cada copo e cada boca. Todos tomavam chá; o chá estava suficientemente doce; por que aquele não comia biscoitos, aquele outro gostava tanto assim de conhaque? E mais Riabóvich escutava e observava, mais se divertia com essa dissimulada, disciplinada família.
Após o chá os convidados voltaram ao salão de estar. O instinto não falhara a Lobytko. A peça estava cheia de jovens mulheres e mocinhas, e não havia decorrido ainda um minuto e já o nosso tenente-perdigueiro estava aboletado ao lado de uma rapariga muito jovem e loura, vestida de preto. Inclinando-se como se fosse apoiar-se numa espada invisível, ele encolhia maliciosamente os ombros. Devia estar dizendo, com certeza, alguma divertida frioleira, pois a moça olhava indulgentemente para seu rosto bochechudo e exclamava com indiferença: "Será possível?!". E este "será possível?!" indiferente podia ter convencido depressa o perdigueiro de que ele tomava uma pista errada.
Começou a música. Enquanto as notas de melancólica valsa escapuliam pela janela aberta, pela cabeça de todos passava o pensamento de que lá fora a noite tinha os encantos primaveris de maio. O ar estava impregnado do perfume das tenras folhas do choupo, das rosas e lilases… e a valsa e a primavera eram coisas reais. Riabóvich, com valsa e conhaque a lhe dar traiçoeiramente voltas à cabeça, lançou a sorrir um olhar pela janela; depois começou a acompanhar os movimentos das mulheres; e lhe parecia que o perfume das rosas, choupos e lilases não vinham do jardim, mas brotava das faces e dos vestidos femininos.
Principiaram a dançar. O jovem von Rabbek valsejou duas vezes a toda a roda do salão com uma rapariga muito magra; e Lobytko, deslizando no chão encerado, dirigiu-se à moça de lilás e pediu–lhe uma dança. Riabóvich, porém, continuava de pé, agora junto à porta, e contemplava tudo aquilo silenciosamente. Admirado da ousadia dos homens que diante de todo o mundo seguravam as mulheres pela cintura, esforçava-se em vão por se representar fazendo o mesmo. Já se fora o tempo em que tinha inveja da afoiteza e coragem dos camaradas, sofria com o seu penoso escrúpulo, e percebia cheio de mágoa que era tímido, de ombros caídos, e insignificante, e que tinha suíças de lince e que as ancas eram demasiado grandes. Mas com o decorrer dos anos foi-se reconciliando com sua própria insignificância e já agora, ao contemplar os dançarinos e os palradores, não sentia inveja, e sim unicamente melancólica emoção.
Na primeira quadrilha von Rabbek «Júnior aproximou-se e convidou dois oficiais que não dançavam para uma partida de bilhar. Os três deixaram a sala; e Riabóvich, que nada fazia e se sentia impelido a participar do movimento geral, seguiu-os. Cruzaram a sala de jantar, atravessaram um estreito corredor recamado de espelhos e um quarto onde três criados sobressaltados pularam ao mesmo tempo de um sofá; e depois de passar, assim parecia, por um verdadeiro mundo de quartos, entraram num minúsculo salão de bilhar.
Von Rabbek e os dois oficiais começaram a partida. Riabóvich, cujo único jogo eram as cartas, plantou-se ao pé da mesa e pôs-se a olhar com indiferença, enquanto os jogadores, os casacos desabo-toados, manejavam os tacos, movimentavam-se de um lado para outro, diziam pilhérias e soltavam obscuros termos técnicos. Riabóvich ficou ignorado, exceto quando um dos jogadores lhe dava um encontrado ou uma tacada e, virando-se para ele, pedia lacònicamente: "Perdão!". Assim, antes que o jogo estivesse terminado, sentiu-se aborrecido e, considerando quanto aquilo era superficial, deliberou voltar ao salão e saiu.
Foi em sua volta que se deu a aventura. Não tinha ido muito longe quando percebeu que havia errado o caminho. Lembrava-se muito bem do quarto com os três dorminhocos; mas depois de haver passado por cinco ou seis cômodos completamente vazios deu pelo engano. Parou e dirigiu-se à esquerda; e foi dar num quarto quase às escuras que não tinha visto antes. Após um minuto de hesitação, abriu com atrevimento a primeira porta que viu e se achou na mais completa escuridão. Pela fresta da porta em frente esgueirou-se uma réstia brilhante de luz; de longe chegavam notas mortiças de uma lúgubre mazurca. Aqui também, como no grande salão, as janelas estavam abertas de par em par e o cheiro dos choupos, lilases e rosas invadia o ar.
Riabóvich deteve-se irresoluto. Por um momento tudo esteve imóvel. Então chegou o ruído de passos apressados; e depois, sem o menor aviso do que ia acontecer, farfalhou um vestido, a voz de uma mulher ofegante sussurrou: "Até que enfim!" e dois macios, perfumados, inconfundíveis braços femininos estreitaram-lhe o pescoço, um rosto quente encostou-se ao seu e ele recebeu um beijo estalado. Mas, apenas tinha esse beijo ecoado através do silêncio quando a desconhecida estremeceu fortemente e fugiu — tal foi a impressão de Riabóvich — cheia de desgosto. Também Riabóvich tratou de se ir, oríentando-se pela frincha luminosa da porta à sua fluente.
Ao entrar no salão de estar o coração lhe batia violentamente e as mãos tremiam de maneira tão visível que tratou de ocultá-las atrás das costas. Sua primeira sensação foi de vergonha, como se cada uma das pessoas presentes já soubesse que ele acabava de ser abraçado e beijado. Como um caramujo, encolheu-se e pôs-se a examinar medrosamente. Mas vendo que hóspedes e hospedeiros continuavam a dançar e conversar em calma, readquiriu a coragem e entregou-se às emoções experimentadas pela primeira vez em sua vida. Sucedera um fato sem exemplo. Seu pescoço, ainda com a sensação fresca do aperto de dois suaves e perfumosos braços, parecia untado de bálsamo; junto do bigode esquerdo, onde o beijo fora aninhar-se, quedara um friozinho delicioso, como o que deixa na boca uma pastilha de hortelã; e da cabeça aos pés viu-se tomado por nova e inefável sensação que ia crescendo, ia crescendo…
Sentiu que devia dançar, falar, correr pelo jardim, rir à vontade. Esqueceu ao mesmo tempo que tinha os ombros caídos, que era insignificante, que as suas suíças lhe davam um aspecto de lince, que possuía um "físico indefinido" — descrição saída dos lábios de certa mulher com quem estivera casualmente. Quando a senhora von Rabbek passou por perto, ele sorriu-lhe tão franca e graciosamente que ela parou e olhou-o com ar interrogativo.
— Que casa encantadora é a sua! declarou, ajeitando os óculos.
E a senhora, vou Rábbek correspondeu com outro sorriso, disse que a casa pertencia ainda ao pai, perguntou-lhe se tinha pais vivos, desde quando estava no exército e por que era tão magro. Depois de ouvir suas respostas, lá se foi. Mas, não obstante ter cessado a conversa, ele continuava a sorrir benevolamente e a pensar em quão encantadores eram os seus novos conhecidos.
Na ceia Riabóvich comeu e bebeu mecanicamente tudo o que punham diante de si, não escutou uma só palavra da conversa e dedicou todos os seus poderes à revelação da misteriosa, romântica aventura. Como explicá-lo ? Era claro que uma daquelas moças, pensava ele, havia combinado um encontro no quarto escuro e depois de esperar em vão por algum tempo tinha, em sua tensão nervosa, tomado Riabóvich por seu herói. O engano tinha cabimento pois, ao entrar no cômodo às escuras, Riabóvich parará irresoluta-mente como se, também ele, estivesse esperando por alguém. Até aí o mistério estava explicado.
"Mas qual delas foi?" indagava, examinando o rosto de cada uma, Certamente era moça, pois as velhas não se metem em tais romances. E depois, não era uma criada. Isso estava sobejamente provado pelo fru-fru do vestido, pelo delicioso perfume, pela voz…
Quando pela primeira vez olhou para a jovem de lilás, agradou-se dela; tinha lindos ombros e braços, um rostinho simpático, uma voz encantadora. Riabóvich pediu aos céus que fosse ela. Mas, ao rir mais livremente, ela sulcou o nariz de vincos e isso deu–lhe um ar avelhantado. Portanto Riabóvich transferiu seu olhar para a lourinha de vestido preto. A lourinha era mais jovem, mais simples, mais sincera; tinha deliciosos cachinhos e bebia chá no alongado copo com uma graça inexprimível. Riabóvich esperava que fosse ela — mas logo verificou que lhe faltava um quê qualquer em sua fisionomia, e lançou as vistas à sua mais próxima vizinha.
— Ê uma busca sem esperanças… refletiu. Se a gente tomasse os braços e as espáduas da moça de lilás, lhes juntasse os cachinhos da loura e os olhos da criaturinha que está à esquerda de Lobytko, então…
Compôs um retrato com todos esses encantos e teve uma clara visão da moça que o tinha beijado. Mas em parte alguma poder-se-ia ver semelhante criatura.
Finda a ceia, os visitantes, fartos e bêbedos, fizeram as suas despedidas. Novamente o dono e a dona da casa apresentaram desculpas por não poder convidá-los a passar ali a noite.
— Sinto-me muito contente, muito contente, cavalheiros! declarou o general, e desta vez parecia dizer a verdade, sem dúvida porque despachar convivas que se despedem é ofício mais agradável do que recebê-los a contragosto. — Sinto-me realmente muito contente! Espero nova visita quando passarem por aqui de volta. Não façam cerimônia, por favor! Que caminho vão tomar’? Colina acima’? Não, desçam a colina pelo jardim. Fica mais perto.
Os oficiais seguiram o conselho. Depois do reboliço e da feérica iluminação do interior da casa, aquele jardim parecia negro e triste. Até alcançar o portão de saída, todos se mantiveram em silêncio. Alegres, meio ébrios e fartos, como estavam, a escuridão e a tranqüilidade da noite inspiravam-lhes profundos pensamentos. Por seus cérebros, como pelo de Riabóvich, provavelmente passava a mesma [pergunta: "Será que há-de chegar o tempo em que eu, como von Rabbek, terei um casarão, família, um jardim, o ensejo de ser gentil — mesmo que fingida-mente — para com os outros, de deixá-los saciados, bêbedos e contentes’?"
Mas assim que o jardim ficou para trás, falaram todos a uma só vez, e prorromperam em estrepitosa gargalhada. O caminho que seguiam conduzia diretamente ao rio e daí o margeava, por entre moitas, ravinas e pendentes salgueiros. O chão era escassamente visível; a outra margem perdia-se por completo na bruma. Por vezes a água negra espelhava as estrelas e isso era a única indicação da velocidade da corrente. Além, suspirava uma sonolenta narceja, e ali quase ao lado, escondida numa moita, indiferente à presença dos homens, cantava alto um rouxinol. Os oficiais caminhavam em grupo e agitaram a moita, mas o rouxinol prosseguiu em sua cantiga.
— Gostei da cara dele! declararam quase todos em eco. Não é desses que vivem fazendo economias de copeks! Que velho patusco!
Perto do fim da jornada o caminho galgava um pouco a colina e juntava-se à estrada não muito longe da sebe da igreja. Ali os oficiais, ofegantes com a subida, sentaram-se na grama e puseram-se a fumar, Atravessando a corrente, chegou até eles uma luzinha vermelha, e na falta de outra coisa começaram a decifrar se aquilo era um fogo-fátuo, uma lanterna ou a luz de uma janela. Riabóvich também contemplava a luz e como que sentiu que ela lhe sorria e piscava, como se fosse sabedora do segredo do beijo.
Chegando ao alojamento, despiu-se a toda a pressa e deitou-se. Seu quarto era repartido com Lobytko e um certo tenente Merzliakov, homenzinho sisudo e calado, que trazia consigo por todos os cantos o "Mensageiro da Europa" e vivia a lê-lo eternamente. Lobytko, já despido, passeava impacientemente de um lado a outro e mandou o ordenança buscar cerveja. Merzliakov deitou-se, inclinou a luz para o lado de seu travesseiro e esticou a cabeça por trás do "Mensageiro da Europa".
— Onde estará ela agora? resmungou Riabóvich, olhando para o teto negro de fuligem.
O pescoço ainda lhe parecia untado de óleo, perto da boca ainda sentia o friozinho que deixa a hortelã-pimenta. Em seu cérebro perpassavam sucessivamente os ombros e braços da moça de lilás, os cabelos encaracolados e os olhos honestos da jovem vestida de preto, e uma multidão de cinturas, vestidos e broches. Mas, embora tudo fizesse para fixar essas imagens esquivas, elas se desenhavam tremula-mente, esvaíam-se e sumiam por fim; e ao desaparecerem afinal na vasta cortina negra suspensa diante dos olhos fechados de todos os homens, ele começou a escutar passos precipitados, o crepitar de saias, o ruído de um beijo. Apossou-se dele violenta, inexplicável alegria. Mas quando se entregava a esse transporte, o ordenança de Lobytko voltou com a notícia de que não lhe fora possível obter cerveja. O tenente voltou a medir o quarto a largas passadas.
— Camarada mais idiota! exclamou, parando primeiro perto de Kiabóvich e depois perto de Merzliakov. — Só mesmo o mais imbecil e cabeçudo pulha não pode arranjar cerveja! Canaille!
— Toda a gente sabe que aqui não há cerveja, consolou-o Merzliakov, sem levantar os olhos de seu "Mensageiro da Europa".
— E você acredita nisso! bradou Lobytko. Deus do céu, joguem-me na lua e em cinco minutos verão como encontrarei cerveja e mulheres! Eu mesmo acharei! Chame-me de intrujão se o não fizer!
Vestiu-se lentamente, acendeu em silêncio um cigarro e saiu.
— Rabbek, Grabbek, Labbek, resmungou, parando na saleta. Não quero ir só, com mil demônios! Riabóvich, quer vir dar uma voltinha’? Como?
Não obtendo resposta, voltou, despiu-se sem pressa e deitou-se. Merzliakov deixou escapar um suspiro, dobrou o "Mensageiro da Europa", e apagou a luz.
— E então ? — murmurou Lobytko, fumando seu cigarro no escuro.
Riabóvich puxou as cobertas até o queixo, encolheu-se formando quase um rolo, e apurou a imaginação para reunir suas imagens imprecisas num todo mais coerente. Mas a visão fugia-lhe sempre. Dentro em pouco estava dormindo e sua última impressão foi que tinha sido acariciado e mimado, que em sua vida sucedera algo estranho e mesmo ridículo, mas extraordinariamente bom e radioso. E tal pensamento não o abandonou, até nos sonhos que teve.
Quando acordou a sensação do bálsamo e da hortelã-pimenta tinha-se ido. Mas o contentamento, como na noite da véspera, enchia-lhe cada veia. Olhou extasiado para as vidraças da janela douradas pelo sol nascente e escutou os ruídos exteriores. Alguém falava alto precisamente em baixo de sua janela. Era Lebedetzki, comandante de sua bateria, que acabava de juntar-se à brigada. Conversava com o primeiro-sargento, em voz alta, demonstrando não ter lá grande prática de falar a meia-voz.
— E o que mais? trovejou.
— Quando ontem ferrávamos os animais, Vossa Honra, Golubtchik foi ferido. O mestre-ferrador mandou buscar barro e vinagre. E a última noite, Vossa Honra, o mecânico Artemiev embebedou-se e o tenente mandou colocá-lo no carro de munições atrelado à carreta do canhão de reserva.
O primeiro-sargento acrescentou que Karpov havia esquecido as cavilhas da tenda e os novos rizes para os tubos de fricção, e que os oficiais tinham passado a noite em casa do general vou Rábbek. Mas, aí, à janela assomou a cara barbuda de Lebedetzki. Piscou os olhos míopes para os homens sonolentos sobre as camas e lhes deu bom-dia.
— Vai tudo bem?
— O cavalo das varas feriu a cernelha com o novo peitoral, respondeu Lobytko.
O comandante suspirou, pensou um momento e desabafou:
— Estou pensando em visitar Alexandra Iegórovna. Quero vê-la. Adeus! Procurarei vocês antes de anoitecer.
Quinze minutos depois a brigada punha-se novamente em marcha. Ao passarem pelos celeiros de von Babbek, Biabóvich virou a cabeça e olhou para o solar. As venezianas estavam arriadas; evidentemente tudo ali ainda dormia. E entre eles, ela também dormia… aquela que o havia beijado não fazia muitas horas. Tentou visualizar o seu sono. Imaginou a janela do quarto completamente aberta com ramos verde jantes a balouçar defronte numa cadência suave, o frescor do ar matinal, o rescender dos choupos, lilases e rosas, o leito, uma cadeira, o vestido que farfalhou na véspera, um par de delicados chinelos, um relógio sobre a mesa a fazer tique-taque; tudo isso até em seus detalhes lhe veio à imaginação com a máxima clareza. Mas as feições, o terno e sonolento sorriso — enfim o que era essencial e característico lhe fugia da imaginação como o azougue foge da mão. Quando já havia caminhado meia versta tornou a olhar para trás. A igrejinha amarela, a mansão, os jardins, o rio estavam banhados de luz. Refletindo o céu de anil, a corrente, contida entre duas margens a dissipar verdores, fazia ricochetar os raios prateados do sol e tinha um aspecto inexprimivelmente belo; e, lançando a Miestechky o seu último olhar, Riabóvich sentiu-se triste, como se se despedisse para sempre de algo muito próximo e muito caro…
Estrada a fora, diante de si, desdobravam-se cenas familiares, desinteressantes; à direita e à esquerda, campos de centeio ainda tenro e trigo mourisco com gralhas saltitantes; em frente, poeira e nucas de homens; atrás, a mesma poeira e faces. À testa da coluna marchavam quatro soldados armados de espada — era a guarda avançada. A seguir iam os da fanfarra. Tanto a guarda avançada como os músicos, emudecidos como numa procissão fúnebre, ignoravam os intervalos regulamentares e marchavam demasiadamente longe do resto do corpo. Riabóvich, com o primeiro canhão da 5.a bateria, podia ver quatro baterias diante de si.
Para um leigo, a longa, agitada marcha de uma brigada de artilharia é coisa nova, atraente e inexplicável. É difícil de entender como um único canhão requer tantos homens; como são necessários tantos cavalos, tão estranhamente arreiados, para arrastá-lo. Mas para Riabóvich, mestre consumado em todas essas coisas, isso era profundamente monótono. Aprendera fazia muitos anos por que um sólido primeiro-sargento trota ao lado do oficial à frente de cada bateria, por que o primeiro-sargento é chamado unosni, e por que os condutores dos cavalos-guia e dos que vão aos varais trotam atrás dele. Sabia Riabóvich por que os animais dos varais eram chamados cavalos selados, e os de fora cavalos–guia — e tudo isso era muitíssimo interessante… Encarapitado num dos selados ia um soldado ainda coberto com a poeira da véspera e com um incômodo, ridículo anteparo a lhe proteger a perna direita. Riabóvich, porém, conhecendo o uso desse guarda–perna, não o achava ridículo. Os condutores, num gesto mecânico e com gritos rápidos, agitavam os chicotes. Os canhões impressionavam. As carretas de munições iam repletas de sacos de aveia feitos de encerado; e os próprios canhões, cercados de chaleiras e sacolas, davam a impressão de mansos animais, guardados por qualquer razão obscura por homens e cavalos. Aos lados do canhão marchavam seis artilheiros, a balançar os braços; e atrás de cada canhão marchavam mais unosniye, "guias" e "selados". E mais e mais canhões, tão feios e sem inspiração como o que lhes ia à frente. Ora, como cada uma das seis baterias da brigada tinha quatro canhões, o desfile alongava-se pela estrada numa extensão mínima de meia versta. Terminava com um carroção de serviço, com o qual, de cabeça pensativamente inclinada, caminhava o burro Magar, trazido da Turquia pelo comandante de uma bateria. Morto para os que o cercavam, Riabóvich marchava para diante, olhando as nucas em frente ou os rostos atrás. Não fora o acontecimento da última noite, e ele a essa hora já estaria meio adormecido. Mas agora absorviam-no novos e arrebatadores pensamentos. Quando pela manhã a brigada se pôs em movimento, ele tentou explicar-se que aquele beijo não tinha outra significação senão a de uma aventura, misteriosa sim, mas trivial; que carecia de importância real; e que pensar nela a sério era portar-se de maneira absurda. Mas a lógica depressa capitulou e ele se entregou à sua vivida imaginação. Via-se na sala de jantar de von Habbek, tête-à-tête com uma criatura composta da moça de lilás e da loura de preto. Ou então, fechando os olhos, punha -se ao lado de uma rapariga diferente, desconhecida, de feições nebulosas; falava-lhe, acariciava-a, deita va-se sobre o seu ombro; imaginava a guerra e a partida.,. e depois, o regresso, a primeira ceia juntos, os filhos…
— Os freios! bradava o comandante quando atingiam o cume de cada colina.
— Os freios! repetia Riabóvich, temendo de cada vez que tal grito lhe dissipasse o mágico enleio e o chamasse de vez à realidade.
Passaram por uma vasta construção rural. Riabóvich por cima da sebe olhou o jardim e viu uma comprida trilha, estreita como uma régua, tapetada de areia amarela e sombreada por jovens bétulas. Num êxtase de encantamento, retraçou na imaginação pequeninos pés pisando a areia amarela; e, num relance, reconstituiu a mulher que o havia beijado, a mulher que se representara depois da ceia da noite anterior. A imagem gravou-se em seu cérebro e nunca mais o abandonou.
O encanto durou até meio-dia, quando a voz de comando chegou pesada do fim da coluna.
— Atenção! Olhar à direita! Oficiais!
Numa caleça tirada por um par de cavalos brancos surgiu o general da brigada. Parou à altura da segunda bateria e pronunciou alguma coisa que ninguém entendeu. Alguns oficiais galoparam, entre eles Riabóvich.
— Bem, como vai a coisa ? — O general piscou os olhos vermelhos e continuou: — Há alguém doente?
Ouvindo a resposta, o generalzinho magrela meditou um momento, virou-se para um oficial e disse:
— O condutor de seu terceiro canhão tirou o guarda-perna e pendurou-o na carreta. Canalha! Castigue-o !
Depois, encarando Riabovich, acrescentou:
— E na sua bateria, penso que os arreios estão frouxos demais.
Tendo feito diversas outras observações igualmente fastidiosas, olhou para Lobytko e riu.
— Por que esse olhar tão abatido, tenente Lobytko? Saudades da senhora Lopukhov, hein? Senhores, ele está suspirando pela senhora Lopukhov!
A senhora Lopukhov era uma criatura alta, desempenada, muito além dos quarenta. Cheio de parcialidade pelas mulheres de porte avantajado, independentemente da idade, o general atribuía o mesmo gosto a seus subordinados. Os oficiais sorriram respeitosamente ; e o general, satisfeito por ter dito algo’ cáustico e humorístico, tocou nas costas do cocheiro e saudou. A caleça afastou-se.
"Tudo isso, embora me pareça impossível e do outro mundo, é na realidade lugar-comum dos mais banais — pensava Riabovich, contemplando a nuvem de pó levantada pela carruagem do general. É fato de todos os dias que todos experimentam… Aquele velho general, por exemplo, deve ter amado; está casado agora e tem filhos. O capitão Wachter é também casado e a esposa o ama, se bem que ele tenha um pescoço escarlate e o peito para dentro… Salmanov é grosseiro, um típico tártaro, mas teve o seu romance que acabou em matrimônio… Eu, como o resto, chegarei a isso mais cedo ou mais tarde."
E o pensamento de que ele era um homem como todos os outros e que teria uma mulher como os demais, alegrou-o e o deixou consolado. Representou-a atrevidamente em seu cérebro e deixou correr feito louca a imaginação.
Ao cair da noite a brigada chegou ao fim de sua marcha. Enquanto os outros oficiais foram esticar–se sob as tendas, Riabóvich, Merziiakov e Lobytko sentaram-se ao redor de uma caixa de provisões e cearam. Merziakov comia lentamente e, deixando o "Mensageiro da Europa" sobre os joelhos, lia com açodamento. Lobytko, falando sem parar, encheu o copo com cerveja. Mas Riabóvich, cuja cabeça estava às voltas com os ininterruptos sonhos que tivera acordado, mastigava em silêncio. Após ter bebido três copos, sentiu-se meio tonto e fraco; e num impulso incoercível resolveu contar aos camaradas a sua aventura.
— Uma coisa extraordinária aconteceu comigo em casa de von Rabbek, começou ele, fazendo o melhor que podia para assumir um tom indiferente, irônico. — Eu vinha, vocês sabem, do salão de bilhar…
E procurou fazer uma história bem detalhada do beijo. Mas num minuto contou todo o caso. Naquele minuto esgotou tudo, detalhe por detalhe; e pareceu–lhe terrível que a história requeresse tão pouco tempo. Devia, pensou ele, ter durado a noite inteira. Quando concluiu, Lobytko que, por ser um mentiroso, não acreditava em ninguém, sorriu incrédulo. Merziiakov franziu o cenho e, com os olhos sempre grudados no "Mensageiro da Europa", replicou indiferentemente:
— Sabe Deus quem era! Atirou-se ao seu pescoço, diz você, e não deu sequer um grito! Alguma lunática, desconfio.
— Deve ter sido uma lunática, concordou Riabóvich.
— Também eu tive aventuras dessa espécie, começou Lobytko, fazendo uma das suas caras. Eu ia para Kovno. Viajava de segunda classe. O carro ia atulhado e eu não podia dormir. Então dei um rublo ao guarda, e ele apanhou minha mala e alojou–me numa cabine. Deitei-me e puxei o grosseiro cobertor sobre mim. A escuridão era total, vocês compreendem. De súbito, senti que alguém batia no meu ombro e respirava forte sobre minha face. Estiquei a mão e senti um cotovelo. Aí abri os olhos. Imaginem só! Uma mulher! Olhos negros como carvão, lábios carmesins como coral do bom, narinas a fre-mir de paixão, seios deliciosos!
— Vá contar isso a outro! interrompeu Merzlia-kov com a voz mais calma. Acredito na história dos seios, mas com toda aquela escuridão como podia você ver-lhe os lábios1?
Rindo da falta de compreensão de Merzliakov, Lobytko procurou sair do dilema. A história aborreceu Riabóvieh. Levantou-se da caixa, estendeu-se no leito e jurou nunca mais admitir quem quer que fosse em sua vida íntima.
A vida de campanha passou sem acontecimento digno de nota. Correram os dias, o de hoje igual ao de ontem. Mas em cada um deles Riabóvich sentiu, pensou e agiu como um homem amoroso. Quando de manhã o ordenança lhe trazia água fria e a despejava por cima da cabeça, sentia em seu cérebro semi-acordado que alguma coisa boa, quente e meiga tinha nascido em sua vida.
À noite, quando os companheiros falavam de amor e mulheres, ele chegava mais para perto a cadeira, e sua fisionomia era. a dum velho soldado que falasse de batalhas em que tomou parte. E quando os bulhentos oficiais, conduzidos pelo faro de Lobytko, faziam excursões donjuanescas no subúrbio vizinho, Riabóvich, apesar de acompanhá-los, ia com menos ímpeto e com a consciência turva, pedindo-lhe mentalmente perdão. Nas horas de lazer e durante as noites de insônia, quando a cabeça se enchia de recordações da infância, do pai, da mãe, de tudo querido e saudoso, lembrava-se sempre de Miestechky, do cavalo dançarino, de von Rabbek, da mulher de von Rabbek, tão parecida com a ex-imperatriz Eugenia, do quarto escuro, da frincha luminosa na porta.
Em 31 de agosto ele deixou o acampamento, desta vez não com toda a brigada mas apenas com duas baterias. Como um exilado que volta à terra natal, sentia-se agitado e nervoso. Ansiava avistar o excêntrico cavalo, a matriz, os dissimulados von Rabbeks, o quarto escuro; e essa voz íntima que tão freqüentemente martela aos ouvidos do homem apaixonado, murmurava-lhe que ele a veria de novo. Entretanto a dúvida o torturava. Como a encontraria? Que lhe deveria dizer? Seria que ela já se tinha esquecido do beijo? Se sucedesse o pior — tentava consolar-se — se nunca mais a visse, podia ao menos andar naquele quarto escuro, e recordar..,
À tardinha os celeiros caiados de branco e nossa conhecida igrejinha cor-de-rosa surgiram no horizonte. O coração de Riabóvich bateu mais fortemente. Nem tomou conhecimento do comentário de um oficial que cavalgava a seu lado. O mundo inteiro estava esquecido e observava avidamente o lampejante rio à distância, os tetos esverdeados, o pombal, sobre o qual evoluíam pássaros, dourados pelos últimos raios do sol.
Ao pôr o cavalo em direção da igreja e ouvir de novo a voz rouca do fiscal do quartel-general, esperava a cada instante que aparecesse um cavaleiro de trás da sebe para convidar os oficiais para o chá… Mas o fiscal terminou sua arenga, os oficiais dispararam para a aldeia, e não apareceu cavaleiro algum.
"Quando Rabbek souber pelos camponeses que voltamos, mandará nos chamar" pensou Riabóvich. E estava tão certo disso que, ao entrar na barraca, custou a compreender por que os camaradas acendiam a candeia e por que os ordenanças se punham a preparar o samovar.
Penosa agitação o oprimia. Deitou-se sobre a cama. Um momento depois se levantava para espiar o cavaleiro. Mas não viu nenhum cavaleiro. Tornou a deitar-se; levantou-se outra vez; e desta vez, impelido pela inquietação, saiu à rua e caminhou para à igreja. A pracinha estava às escuras e deserta. Sobre a colina velavam três soldados silenciosos. Quando viram Riabóvich, pararam, fizeram continência, e ele, retribuindo a saudação, começou a descer a tão lembrada vereda.
Para além da corrente, num céu manchado de púrpura, a lua subia lentamente. Duas camponesas tagarelas andavam numa horta e colhiam folhas de repolho; atrás delas erguiam-se negras sobre o céu as silhuetas de suas choupanas. A margem do rio estava como se fosse ainda maio; as moitas eram as mesmas; as únicas coisas diferentes eram que o rouxinol já não cantava mais, e já não havia o perfume dos choupos e da relva tenra.
Quando chegou ao jardim de von Rabbek, Riabó-vich espreitou por entre a grade do portão. Reinavam silêncio e obscuridade. Com exceção dos alvos troncos das bétulas e das sendas claras entre a relva, todo o jardim estava imerso numa sombra negra, impenetrável. Riabóvich escutou e espiou atentamente. Durante um quarto de hora esteve à espreita; mas, não ouvindo ruído e não vendo luz, voltou lentamente para o acampamento.
Desceu até o rio. Defronte erguia-se a cabine de banho do general; e toalhas brancas estavam penduradas ao corrimão da ponte. Subiu para a ponte e ali ficou imóvel; então, sem a menor razão, tocou numa toalha. Estava húmida e fria. Olhou para baixo, dentro do rio que corria cèleremente, murmurando de maneira quase imperceptível uma queixa ao bater de encontro aos pilares da cabine de banho. Perto da margem esquerda tremeluzia o rubro reflexo da lua, importunado pelas ondulações da água que se encrespavam, se dividiam em duas, e, tinha-se a impressão de que o varriam para longe como se varrem aparas e rebarbas.
"Como sou estúpido! como sou estúpido!" pensou Riabóvich, observando as ondas fugidias. "Gomo tudo isso é estúpido!"
Agora que estava morta a esperança, a história do beijo, sua impaciência, seu ardor, suas vagas aspirações e a desilusão apareciam em plena luz. Não parecia mais estranho que o cavaleiro do general não tivesse .surgido e que ele não tornasse a ver aquela que o tinha beijado acidentalmente em lugar de um outro. Ao contrário, sentia como seria estranho se algum dia chegasse a vê-la…
A água corria, mas ninguém sabia para onde e por que. Já em maio passado ela correra do mesmo jeito; lançara-se num grande rio; esse rio, no mar; depois subira transformada em vapor e flutuara no ar para cair depois, em forma de chuva; e talvez a água de maio fosse a que agora corria sob os olhos de Riabóvich. A que propósito? Por quê?
E todo o mundo — a própria vida parecia a Riabóvich uma inescrutável, injustificável mistificação … Levantando os olhos da corrente e contemplando o céu, relembrou como o Destino sob a forma de uma mulher desconhecida o afagara um dia; relembrou suas fantasias e imagens do verão — e sua vida inteira pareceu-lhe desnaturadamente vazia, fria e miserável…
Quando chegou à barraca, seus companheiros tinham partido. O ordenança o informou de que tinham ido todos em visita ao "general Fonrabbkin", que mandara um cavaleiro procurá-los.
Por um breve instante, o coração de Riabóvski bateu de alegria. Mas ele sufocou esta alegria. Lançou-se na cama e, danado com sua má sorte, como quisesse desprezá-la, não tomou conhecimento do convite.
(Tradução de Costa Neves. Fonte: Clássicos Jackson).
Ah, como é bom ler Tchekov! Quanta competência na criação literária, quanto clima, quanta elegância na sintaxe! Parabéns, caro Editor, por mais este tento!
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