segunda-feira, 27 de julho de 2009




Vida compartimentada

* Por Mara Narciso


A vida de uns e de outros tem em comum mais semelhanças do que diferenças. Quase todos podem extrair das suas memórias os momentos de dor, de insegurança, de prazer, e tantos e tantos substantivos possíveis. Deslocando para os verbos podemos conjugar: amar, comer, dormir, fazer amor, sofrer, chorar, viajar, trabalhar, estudar.
Olhando de perto notamos que muitas pessoas poderão contar uma história de perda, seja prejuízo financeiro, desaparecimento de um ente querido, ruptura de um caso de amor, ou prejuízo pessoal, ou ainda se ver diante de uma doença que ameaça a sua integridade ou a de quem ama. Esta pode vir pelos genes, pela vida desregrada, pelos agentes infecciosos, ou por um acidente. Há ainda os ganhos: a conquista de alguém, de um diploma, de um cargo, de status, de um bem material, de um reconhecimento, da chegada de mais uma criança na família, da recuperação da saúde. Quase todos poderão contar coisas que se assemelham às nossas experiências.
Mas onde a tempestade estará escondida? Quando uma cobra nos dará o bote? Quando teremos o nosso encontro com a sorte ou com a morte? A nossa civilização ocidental nos manda viver como se cada dia fosse o último - e um dia será mesmo-, e que devemos estar prontos para qualquer surpresa, seja ela boa ou ruim. De um modo geral não convivemos bem com a ideia da morte. Já foi dito que quando alguém morre, choramos não a morte de quem vai, mas a nossa própria morte. A maior parte do tempo nos esquecemos totalmente dela. Talvez por isso, quando ficamos sabendo que alguém teve o seu fim declarado, ou que “foi a óbito”, como se diz no jargão da medicina hospitalar, a notícia geralmente nos causa impacto.
O que dizer de sermos vítimas de uma injustiça, seja ela legal ou ilegal? A impotência diante de um fato irremediável nos mata pouco a pouco. Alguns terão casos para contar de justiceiros e injustiçados.
No campo das metáforas, um pássaro está chegando ao seu ninho, com alimento no bico para nutrir seus filhotinhos feios e sem penas. Voa depressa, pois precisa alimentá-los quase que de instante em instante. São muitas viagens por dia. O ninho está no alto da árvore, distante do chão e dos predadores. Mas está vazio! Uma ave de rapina os levou para alimentar a sua prole faminta. Quanta injustiça! Do ponto de vista de quem? Outra: você precisa muito daquele emprego, mas alguém o ocupa em seu lugar, por uma questão inexplicável. Mais uma injustiça para com você, mas muita justiça para o escolhido. Ou ainda, um louco bêbado atravessa o cruzamento de duas avenidas movimentadas em alta velocidade com o sinal fechado. Por um triz você não é estraçalhado, pois se atrasou na lerdeza do seu reflexo, e demorou a arrancar. Chegou a levar uma buzinada. Essa foi bem melhor do que ganhar na loteria. Mas vamos dizer que você tivesse realmente ganhado na Megassena, e estivesse indo buscar o prêmio. Com a pressa, mal o sinal abriu, você arrancou. Mas vinha o tal louco da outra avenida. Todos dirão que o seu azar foi de muita injustiça.
É preciso cuidar de todos os compartimentos da vida: da casa, para se ter um lar, do corpo para se ter saúde física, do espírito para se ter fé e esperança, do trabalho para se sustentar, do amor para se conseguir singrar o dia, dos amigos, para se ter ombros para chorar e mesa para comemorar, dos familiares para se saber de onde veio, e para onde se poderá ir.
Muitos nem se lembram de certos setores da vida e até mesmo duvidam que os tenham. Percebo que deixar para trás algum deles, numa curva ele se mostrará. E que não seja prioridade negligenciada, e que não nos bata na cara. “É bom, é preciso, é necessário”, como bem dizia a minha professora de Português, Dona Marta Pimenta, nos idos de 1967. Atrás dessas frases, segundo ela, vinha sempre uma oração objetiva direta. Assim, carregamos vida afora, os compartimentos e as pessoas que nos são ou nos foram caras: os nossos objetos. Podemos viver sem considerar isso, mas, dando atenção e cuidados a todos os setores da vida, penso, viveremos mais e melhor.

* Médica, acadêmica de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

7 comentários:

  1. Ah! nada como a sensibilidade para exergar o quanto somos vulneráveis... um segundo e tudo pode estar mesmo perdido. Abraço, Mara!

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  2. Como disse Caetano, "é preciso estar atento e forte". E torcer para que o carro arranque a tempo de chegarmos sãos e salvos. Texto sábio, Mara.

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  3. Somos sim, vulneráveis demais, e para reduzirmos isso, é bom tentarmos ficar atentos para ficarmos fortes. Cacá e Marcelo, obrigada pela leitura e comentário!

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  4. Mas a vidinha, isso que chamamos de realidade, não passa de uma fina crosta que se consolidou sobre o caos. A qualquer momento, ela pode se romper, e naufragamos! Manter-se à tona é já grande façanha e grande mérito. Parabéns, Mara!

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  5. A vida está amarrada num fio de cabelo, Daniel. Tudo e qualquer coisa poderá rompê-lo e nos derrubar. Mas que é bom viver, é.

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  6. É, Mara, se tivéssemos sempre em mente o quanto somos vulneráveis não adiaríamos nada que nos pudesse trazer momentos de felicidade.
    Mas só tomamos consciência disso quando nos deparamos com a possibilidade de morrer.
    Muito bom seu texto. Parabéns!
    Beijo
    Risomar

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  7. Risomar, já tive a sorte de me encontrar com a morte duas vezes e ela me fez viver com muito mais vontade. Assim, não me privo de ser feliz e fazer tudo quanto acho necessário. Obrigada pela leitura e comentário.

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