sexta-feira, 14 de julho de 2017

O “saber fazer” e o “fazer”


O que é mais importante em uma atividade, notadamente intelectual (no caso que me interessa, em literatura): poder contar com uma pessoa que “saiba fazer”, em tese (no nosso caso, um bom texto literário), por ser versada em teoria; ou com outra, sem a mínima base teórica, mas que efetivamente já tenha produzido (baseada exclusivamente no talento e na intuição) alguma obra interessante, correta e competente? Eu, se sou dono de uma editora, sequer vacilo. Escolho, de imediato, o segundo.

O sujeito que “sabe fazer” é mero potencial. Pode ou não produzir algo que valha a pena publicar. Mas o que efetivamente “faz”, é mais do que mera promessa: é realidade. Deixo claro, antes que me acusem de advogar em causa própria, que não sou contrário à teoria, longe disso. Creio que o escritor completo é o que tem sólida base teórica e alia, a ela, a prática. Ou seja, que saiba fazer e efetivamente faça.

No meu caso, estudei, com afinco e dedicação, teoria literária (portanto, não sou leigo no assunto) e continuo estudando, pois é um aprendizado que não tem fim. Mas não entendo que esse seja um fator fundamental que venha a transformar alguém num bom escritor (ou, até mesmo, em escritor simplesmente).

Esse preâmbulo vem a propósito de uma discussão sobre Literatura que tive, recentemente, com um amigo – competente e hábil crítico literário – cujo nome prefiro não declinar, para não perder uma amizade que prezo demais. Narro o milagre, mas omito o santo.

Tudo começou quando teci rasgados e entusiásticos elogios ao livro “O enterro do anão”, do consagrado humorista Chico Anysio (para mim, o escritor Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho), o quinto que li dos dezessete que ele já publicou. Meu amigo torceu o nariz e respondeu que me deixei influenciar pelo prestígio público do autor, mas como humorista – sem favor algum, um dos maiores de todos os tempos no rádio, teatro e televisão, sem dever absolutamente nada aos nomes mais badalados dos Estados Unidos.

Depois de muito argumentar, sem que ele se convencesse, lhe perguntei se já havia lido alguma obra do Chico. “O tocador de tuba”, por exemplo. Disse-me que não. Emprestei-a e combinamos que voltaríamos ao assunto depois que a lesse. Dias depois, perguntei-lhe o que havia achado. “O livro é muito bom, mas continuo com minha opinião de que ele não é escritor. Falta-lhe base teórica”, respondeu. Emprestei-lhe outro livro, desta vez o “Teje Preso!”, para que meu amigo visse que a qualidade do que havia lido não era simples acaso, “sorte de principiante”. Dias depois, a resposta foi a mesma.

Essa intransigência começou a me irritar. Emprestei-lhe o livro “Três casos de polícia”, certo de que agora a opinião iria mudar. Para a minha surpresa, o amigo manteve a mesmíssima opinião. Perdi as estribeiras e acusei-o de pedante e preconceituoso. Esse, aliás, é um preconceito às avessas. Afeta somente quem é famoso, não o escritor obscuro, óbvio. A maioria dos críticos acha que quem se destaca em outra atividade pública qualquer, que não a Literatura, quando lança um livro, quer somente explorar esse prestígio e nada mais. Alguns até têm, mesmo, essa intenção. Mas não todos.

A maioria contrata profissionais do texto, em geral jornalistas, para escrever sua biografia, ou memórias ou coisa do gênero. Não é o caso do Chico, claro. Ademais, ele nunca se valeu do seu imenso sucesso de tempos atrás, na televisão. Jamais sequer insinuou que escrevia livros e muito menos apelou a quem quer que fosse que os comprasse. Estes venderam (como água, como se diz na gíria), portanto, por causa, apenas, da qualidade.

Não tenho razões pessoais (subjetivas, portanto) para defender o humorista e nem ele precisa de defesa. Não posso dizer que não o conheci pessoalmente, pois assisti vários shows dele aqui em Campinas. Até cheguei a entrar na fila para conseguir seu autógrafo, mas minha timidez diante de um ídolo impediu-me de abordá-lo. Uma pena! Foi burrice minha! Ele é que não me conhecia e certamente jamais ouviu falar de mim. Mas... deixa pra lá.

Numa das Bienais do Livro, realizada em São Paulo, conversei com vários livreiros a respeito desse escritor (que é, de fato, e dos bons). Esses foram unânimes em afirmar que muita gente entrou pela primeira vez na vida em uma livraria apenas para comprar livros do Chico. Se eu fosse dono de uma editora, portanto, faria o possível e o impossível, faria das tripas coração para contar com ele no meu quadro de autores.

E o meu amigo, como ficou? Bem, diante da intransigência dele, não voltamos mais a tocar no assunto. Já que o mencionei, aproveito para lhe mandar um recado: “Ô, cara, vê se me devolve o livro ‘Três casos de polícia’. Você sabe como fico irritado quando alguém se apropria, indevidamente, das joias que tenho em minha biblioteca!”. Pronto, desabafei! Se ele continuar sendo meu amigo é por que é, de fato, o cara inteligente e sincero que sempre achei que fosse.

Boa leitura!

O Editor.


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Um comentário:

  1. Ficou faltando emprestar-lhe "O Batizado da Vaca".Long Island era o nome dela e o livro é muito bom.

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