domingo, 9 de julho de 2017

Longe de casa


* Por Edmundo Pacheco



Quando o dia amanheceu, caía uma garoa  fina sobre a baia de Guaratuba. Nuvens pesadas cobriam a cidade, mas ao longe, sobre o mar, uma nesga de céu azul anunciava mais um dia de praia. Antes que os veranistas mais lépidos se levantassem, o sol já havia avançado sobre a cidade, fazendo brilhar as poças d'água espalhadas pelas ruas e gotas de ouro derretido  caírem das árvores e marquises.

Foi  um raio de sol que, atravessando a escuridão do corredor, através de uma diminuta fresta da pesada porta, despertou Janis. Não sabia se era dia ou noite, até aquele momento. Deitara-se, encolhida, contra a porta. Cansada de perambular pelos corredores e de tentar abrir, em vão, a porta maciça que parecia ser o único elo com mundo exterior, desistiu. O cansaço foi mais forte. Dormiu sobre a pedra fria que parecia revestir todos os corredores do labirinto, que levava sempre ao mesmo lugar: àquela maldita porta.

Sonhou com sua casa  em  Pilottown, no delta do Mississipi. Podia sentir o cheiro das águas a qualquer distância. Seus irmãos brincando na baia, a mãe, já velha, com compridos e encaracolados cabelos negros, cortados pelos fios grisalhos, gritando com as crianças. O pai, sempre ausente, correndo atrás do sustento da família e chegando em casa, à noite, quase sempre bêbado. As brigas. O medo da escuridão, sob a cama. O fantasma da grande enchente.  A vida era assim na Louisiana.

Tão logo seus olhos se acostumaram à luminosidade, Janis Altermann pôde ver, no alto da parede, lado direito de onde a porta se abria, um cabide, com um chapéu e um molho de chaves. De um salto levantou-se e apanhou-as.

A luz queimou seus olhos, acostumados, sabe-se lá há quanto tempo, àquela escuridão densa e penetrante. Demorou alguns segundos, até que pudesse abri-los totalmente. Um corredor branco se estendia ao longo do que parecia ser uma casa.  Uma claraboia, no alto, a uns 3 metros, deixava ver o céu azul e o sol irradiava uma luz intensa, fazendo doer ainda mais seus olhos. Uns 10 a 12 metros adiante, uma pequena mesa de telefone marcava o final da passarela. Janis correu até o telefone. Funcionava. Discou números aleatoriamente e do outro lado da linha uma voz metálica, num idioma desconhecido, fê-la estremecer. Quando mais avançava, mais o mistério se ampliava. Não se lembrava de como viera parar ali. Não sabia onde estava, como chegara àquele lugar estranho e vazio.

Permaneceu alguns segundos ouvindo a voz ao telefone e só então percebeu que havia uma porta bem à  frente. Empurrou-a  e descobriu que estava trancada. Jogou-se ao chão, desanimada, mas uma ideia impulsionou-a de volta, como uma mola, tão logo tocou o chão: o molho de chaves que encontrara... Uma delas deveria abrir a porta branca. E abriu. Uma grande sala envidraçada se materializou aos olhos de Janis. O sol, o céu azul, a espuma branca das ondas do mar, ao longe, trouxeram-lhe de volta a lembrança de casa. Caminhou pelo cômodo, ricamente decorado, mas frio, impessoal e desabitado como todo o resto. Lá fora, na praia que se estendia uns 50 metros abaixo, iniciando-se à direita da casa, umas poucas pessoas brincavam nas ondas. Outros pescavam sobre as pedras, a uns 100 metros à frente e abaixo da casa.

Mais uma vez Janis usou as chaves. Abriu a porta da frente, desceu por um corcoveante caminho calçado que levava da garagem, vazia, ao portão de entrada, trancado. Desta vez, nem pensou nas chaves. Pulou-o sem dificuldades e ganhou a rua. Só então percebeu que estava nua. Não era hora de pensar nisso. Tinha que fugir. De quê? De quem? Que importância tinha isso agora? Estava livre... Tinha que fugir...

Saltou da rua para as pedras, que formavam a base do morro, sobre o qual estava incrustada a estranha casa, toda branca e envidraçada, de onde ela fugira. Na praia, alguém fincara um solitário guarda-sol e sob ele abandonara uma camiseta e um calção, além de uma toalha, que serviram a Janis.

Sentindo o sol e a brisa do mar na pele, a moça caminhou ao longo da praia de pouco de mais de 2 mil metros, até chegar à outra ponta, onde outro morro marcava o final da praia. Algumas crianças e farofeiros brincavam nas ondas por entre as pedras. No morro, uns 15 metros acima, um bombeiro, entediado, os vigiava. A praia terminava numa escada que levava ao alto do morro. Janis cogitou subi-la, mas desanimou. Sentia-se cansada. Parecia que os músculos estavam desacostumados às caminhadas. À direita uma placa identificava o bar Recanto das Pedras, ainda fechado. Janis caminhou até ele e deitou-se  para descansar na varanda. Dormiu.

-Moça! Moça, levante-se, preciso abrir o bar – disse o desconhecido, numa língua estranha. A princípio, Janis pensou ser espanhol, mas não reconheceu mais que uma  palavra. Levantou-se, olhando para o rapaz negro, vestindo uma camisa branca mal-passada. Perguntou-lhe onde estava, que lugar era aquele, mas o garçom pareceu não entender. Limitou-se a olhá-la, com uma cara interrogativa. Janis, então, olhou ao redor. Esticou os olhos ao longo da imensa praia, até a misteriosa casa branca, do outro lado e, descobriu que estava perdida, muito longe de casa.

*Jornalista, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR



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