A
ficção de Michel Temer
* Por
Urariano Mota
Todos vimos uma das mais repetidas notícia desta semana: o presidente Michel Temer discursou contra a denúncia de corrupção passiva apresentada pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot.
Penso
que se depois de um longo sono acordássemos de repente em junho de
2017, pensaríamos estar diante de um capítulo de medíocre
telenovela do Brasil. Lá na telinha, um ator no papel do Conde
Drácula em traje civil discursava:
“Os senhores
sabem que eu fui denunciado por corrupção passiva. Note, vou
repetir a expressão, corrupção passiva a essa altura da vida, sem
jamais ter recebido valores, nunca vi o dinheiro para cometer
ilícitos....
Eu digo, meus amigos, minhas amigas, sem
medo de errar, que a denúncia é uma ficção.... E eu volto a
dizer: a denúncia de que sou corrupto é uma ficção”.
Para
se defender com a maior cara de madeira, que não tem outra, o
presidente Michel Temer valeu-se de um erro comum em políticos
profissionais e até em jornalistas. A saber, que o outro nome da
mentira é ficção, porque, num círculo vicioso, toda mentira seria
ficção e toda ficção é mentira.
Menos, ou melhor, o
erro dessa fama é quase absoluto. Para não entrar numa pesada
definição de conceitos, lembro de imediato uma opinião definidora
sobre o que vem a ser a grande ficção, que Engels viu na Comédia
Humana:
“Balzac nos proporciona na sua Comédie
Humaine uma história maravilhosamente realista da sociedade
francesa, descrevendo, no estilo de crônica, quase ano por ano, de
1816 a 1848, a pressão crescente da ascensão da burguesia sobre a
sociedade de nobres que se estabeleceu a partir de 1815 e voltou a
instalar, na medida do possível (tant bien que mal), o padrão da
vieille politesse française (velha delicadeza francesa). Descreve
como os derradeiros resíduos daquela, para ele, sociedade modelo que
sucumbiram gradualmente ante a explosiva intrusão dos vulgares
endinheirados ou foi corrompida por eles.... Balzac tece uma história
completa da sociedade francesa, com a qual, mesmo em pormenores
econômicos (como, por exemplo, a redistribuição da propriedade
real e privada após a Revolução Francesa), aprendi mais do que com
todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do
período”.
Essa foi a mentira que a ficção de Balzac
deu ao irmão intelectual e filosófico de Marx. Opinião bela,
factual e verdadeira. No entanto, poderia ser dito: esse exemplo não
vale, é uma exceção. Lembro então outro, histórico mais recente.
Leon Tolstoi foi excomungado em 1901 pela liberdade de suas opiniões
sobre a cristandade, mostrada em suas obras, pelo que falam. Leram
bem: “Liberdade de opinião sobre a cristandade”. É como se
alguém fosse livre sob a Igreja Ortodoxa, e com isso, pior:
continuar a ser um ótimo escritor, mas sem liberdade. Para não
citar Ana Karênina, vou ao romance Ressureição, pois quero ser
mais preciso nas razões pelas quais Tolstói “provocou”a sua
excomunhão. Acompanhem este parágrafo, na tradução de Rubens
Figueiredo, página 138 do livro:
“A essência da
missa consistia em supor que os pedacinhos do pão partidos pelo
sacerdote e colocados no vinho, por efeito de certas manipulações e
preces, transformavam-se no corpo e no sangue de Deus. As
manipulações consistiam em que o sacerdote levantava igualmente os
dois braços e mantinha-os erguidos, a despeito de assim embolar-se
todo no saco bordado que vestia, depois caía de joelhos, beijava a
mesa e o que estava sobre ela. A ação mais importante acontecia
quando o sacerdote, com um guardanapo seguro nas duas mãos,
sacudia-o de leve e num movimento ritmado, acima do pires e da taça
dourada. Supunha-se que naquele exato instante o pão e o vinho
transformavam-se em corpo e em sangue e, por tal motivo, aquele
momento da missa era cercado de uma solenidade especial”.
Já
viram tal invenção absurda em alguma igreja? Notaram o quanto é
mentirosa a ficção? Na verdade, a sua grande mentira é revelar a
mais funda realidade, pelo aprofundamento do que não vemos ou não
queremos ver. Assim como os filhos excepcionais, que muitas famílias
escondem da sala de visitas, à maneira do homem transformado em
inseto na Metamorfose de Kafka, esse grande mentiroso. Compreendem
como a grande verdade para ser expressa usa dos recursos da mais
livre sensibilidade e inteligência humana? Tomam muitas vezes por
mentira a substituição de nomes, algo como um sai João, entra
José.
A ficção que é a expressão da mais funda
verdade pode ser vista na obra que muitos creem ser a fantasia mais
fantástica da América Latina, o romance Cem Anos de Solidão.
Muitos amigos e parentes de Gabriel García Márquez já atestaram
que a fonte do escritor foi sua infância e todos os parentes, amigos
e conhecidos que circularam ao seu redor na cidade de Aracataca.
As
histórias de Cem anos de solidão têm, exatamente, essa
característica das lembranças familiares, à qual cada geração
acrescenta uma camada de experiência e percepção pessoal. Gabriel
Torres García, sobrinho de Gabo, afirmou: “Para nós, é a
história de nossa família de um forma cifrada. Realmente, há
muitos personagens que nascem dos membros da família. É o legado
que nos deixou para sabermos quem somos”.
Para o
caso, cai como uma luva a frase de Giambattista Vico, que James Joyce
fez sua: “Imaginação é memória”. É uma pena que não haja
tempo agora para desenvolver com a devida reflexão essa luz de um
filósofo idealista, que superou tão bem a divisão mecânica,
positivista, entre imaginação e memória, ou entre ficção e
verdade. É uma pena, porque a urgência manda ver o que é a ficção
às trevas de Michel Temer.
Copiamos da sua
biografia oficial no site http://micheltemer.com.br/biografia/
:
“Infância
Na infância, Temer sonhava em
ser pianista, so que não havia professores na cidade. A alternativa
foi entrar em um curso de datilografia. Ele costumava imaginar estar
tocando o instrumento. A vontade de ser escritor nasceu a partir de
então e ele a concretizaria anos mais tarde.”
Isso é
mentira. Melhor dizendo, é a ficção à Michel Temer: jamais houve
pianista frustrado, pelo menos até o primor acima, que tenha
substituído o piano por uma máquina de datilografia. O natural, no
concerto das gentes, seria derivar o instrumento piano para outro
mais popular, como o violão, onde sempre há um professor popular em
qualquer cidade. E segunda mentira, digo, ficção à Michel Temer:
não há escritor, até o trecho acima, que tenha nascido para as
letras a partir de um curso de datilografia. A vocação – ou o
irrefreável imperativo de afirmação de vida –vem antes: da
leitura de livros, de um mestre, de parentes, amigos, ou de um
poderoso trauma. Mas o futuro ficcionista à Temer quer nos fazer
crer que nasceu para a literatura a partir daquelas lições tediosas
com os dedos na escola de datilografia: asdfg, asdfg, asdfg, asdfg...
Adiante, porque o valoroso esperto chega a São Paulo, e enquanto o
asdfg não mostra os seus frutos, entra no curso de Direito. Na sua
gentil biografia oficial, podemos ler:
“Faculdade
de Direito
Em 1959, seguiu o passo dos irmãos e entrou na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São
Francisco. Como calouro, envolveu-se na política estudantil como
segundo-tesoureiro do Centro Acadêmico XI de Agosto”
Ato
falho 2 vezes. Ou, digamos, ficção à Michel Temer. Primeiro, não
se conhece um só militante, que não tenha renegado suas convicções
de estudante, que diga de si que se “envolveu em ”. Isso é
típico de dossiê em linguagem policial. Aí, o sentido é de se
implicar, ou de se enredar, ou de se meter em, como em qualquer busca
na imprensa se notará: “O proprietário da empresa dona do
caminhão que se envolveu no acidente que deixou 22 mortos” Ou
“Através de investigações, policiais do 8º Distrito tiveram
informações que, em 2006, ele já se envolveu em outra briga no
Estádio Serra Dourada...”. Busquem, por favor na web e confiram o
significado usual de “se envolveu”. No segundo ato falho, Temer
conta que se envolveu na política estudantil como
segundo-tesoureiro. Opa, o segundo ato falho explica o primeiro.
E chegamos à confirmação da carreira de
escritor que despertou para a literatura num curso comum de
datilografia: “Em 2013, Temer realizou um desejo ao lançar Anônima
Intimidade, livro de ficção e poemas – muitos dos quais criados
em guardanapos durante suas ponte-aéreas entre São Paulo e
Brasília”. Que maravilha fez o asdfg. Milagre, pois na sinopse do
livro podemos ler: “Michel Temer não é o político que administra
a memória, é uma sensibilidade que ilumina a inteligência ‘no
reino das palavras’, o plural singular de um ‘Outro’ – o
‘Outro’ que o argentino universal Jorge Luis Borges insistia em
transfigurar. E se confunde com a apresentação desta Anônima
Intimidade como obra de ficção, sendo qualquer semelhança com o
autor e terceiros apenas mera coincidência”.
Mas
o que isso quer mesmo dizer? Olhem só:
“FUGA
Está
Cada vez mais difícil
Fugir de mim!”
E mais este, não perguntem o quê:
“TRAJETÓRIA
Se eu pudesse,
Não continuaria”
Não é justo,
não é constitucional, não é licito julgar os crimes de um poeta
por dois poemas. Mas considerem, por favor: não, por um imperativo
ético é melhor nada mais falar sobre Michel Temer, o poeta. Pulemos
esse crime. Continuemos nas informações da sua biografia oficial,
escrita por ele mesmo, o ficcionista à Michel Temer:
“Assembléia
Nacional Constituinte
Em 16 de março de 1987, ele tomou posse
na Assembleia Nacional Constituinte. Integrou a Subcomissão do Poder
Judiciário e do Ministério Público, Comissão da Organização dos
Poderes e Sistema de Governo e da Comissão de Redação.
Durante
os trabalhos da Constituinte, Temer atuou como representante dos
advogados e procuradores. Nesta posição, conseguiu aprovar o artigo
133 , segundo o qual o advogado é indispensável à administração
da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, nos limites da lei. Também defendeu a
separação das atribuições da Procuradoria-Geral da República,
que era incumbida de defender o Poder Executivo e dar pareceres. Com
a mudança, a Advocacia-Geral da União ficou responsável pela
defesa do Executivo e a PGR por dar os pareceres.”
Opa,
opa, opa.... Quero dizer, ficção à Temer muitas vezes. A saber, a
sua atuação na Constituinte foi conforme está na informação que
faz média com os biografados, a Wikipédia:
“Ele foi
contra a estabilidade no emprego, as estatais no sistema financeiro,
a jornada semanal de quarenta horas, o voto aos 16 anos, a reforma
agrária e o monopólio na distribuição do petróleo. No livro Quem
foi quem na Constituinte, publicado pelo Departamento Intersindical
de Assessoria Parlamentar (DIAP) para medir os votos dos
congressistas nas questões em que o órgão considerava como de
interesse dos trabalhadores, Temer recebeu uma nota média de 2,25 (o
máximo era dez)”.
E chegamos a um ponto
inesquecível da ficcional vida à Temer, escrita na sua oficial
biografia:
“Em outubro de 1992,(o governador Luiz
Antonio Fleury Filho o nomeia secretário de Segurança Pública dias
depois da morte de 111 presos no antigo presídio do Carandiru.
Dedicou essa gestão a exercer seu conhecido espírito conciliador,
apaziguar os ânimos e a restaurar a imagem da Polícia Militar do
Estado, bastante desgastada por conta do caso. Só deixou o cargo em
1994 para voltar à Câmara dos Deputados”.
Ou
seja, como ficcionista, Michel Temer é useiro e vezeiro em montar e
suprimir informações fundamentais dos seus métodos e espertezas.
Se escrevermos a sua ação ficcional à maneira dos ficcionistas de
verdade, teremos o seguinte. Quando ele assumiu o cargo da Segurança
Pública, nos dias imediatos ao selvagem massacre, declarou:
“Os
militares envolvidos em confrontos como os do Pavilhão 9 da Casa de
Detenção, em casos de perseguição, cercos, tiroteios, merecem
repousar depois de ações como essas e ser submetidos a tratamento
psicológicos. O choque do dia-a-dia é uma tarefa ingrata e eles
precisam de repouso e meditação. Vou recomendar ao comando-geral da
Polícia Militar esse tratamento“.
O caso, portanto, não
era de investigar, apontar, denunciar os matadores e punir. O caso
era de repouso de assassinos ao fim das mortes que causaram a homens
rendidos. Precisa compreender melhor esse ficcionista? Então ele
merece a própria definição:
Deificado.
Demonizado.
Decuplicado.
Desfigurado.
Desencantado.
Desanimado.
Desconstruído.
Derruído.
Destruído”.
Mas isso é mentira, conforme o seu
conceito de ficção, uma profecia ou a memória dilatada do conceito
de Vico? Nos próximos dias saberemos para que lado vai a sua
ficção.
*
Escritor,
jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os
Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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