quarta-feira, 10 de maio de 2017

Que pena!


* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral


Desço em uma  rua transversal à Bambina, ali em Botafogo. Olho para o relógio. São  13:50. Cheguei cedo de novo.  Sigo, então, em direção da praia. Vou comer um salgado light. A lojinha está vazia a essa hora e a atendente, velha conhecida, me recebe com um sorrisão:
-E aí! O de sempre? – pergunta, solícita.

Devolvo-lhe o sorriso dizendo que hoje iria variar. Estava ainda decidindo o que iria comer quando entra na loja uma  loira alta, rosto rosado de sol, sardenta. Os olhos tão azuis que até pra mim ficava complicado não admirá-la.

Seus cabelos eram  encaracolados cor de mel, a boca, apesar de estar com um batom discreto, era agressiva, carnuda. Uma bela mulher. Ela entrou sozinha  saudando a todos  e num gesto impaciente de quem estava com fome, passou a mão
na barriga e foi logo perguntando:
-O que temos para comer heim?

A atendente mostrou-lhe a variedade dos petiscos, desde os mais vistosos aos menos fashions; aqueles feitos com farinha escura... Dos pastéis de palmito aos que garantiam 90% de isenção na consciência. Ela olhou e indagou sobre os recheios dos salgados, até que por fim apontou um deles.
-Esse é de galinha – informou a atendente.

A loira arrepiou-se toda, balançando a cabeça negativamente. Eu, que até então saboreava o meu pastel de palmito, perguntei-lhe sobre o motivo do asco. Ela contou-me, chorosa, que quando era criança, os pais a levaram para o sítio da vovó Neita. Percebi no seu olhar perdido no tempo um misto de medo e raiva e comecei a levar a sério o seu relato.

Vovó Neita queria inserir a neta no cotidiano rural a todo custo. Resolveu preparar para o almoço um frango xadrez. Pegou a faca mais amolada que tinha e partiu para o galinheiro, levando consigo a menina, que de olhos arregalados, acompanhou a vó em silêncio.

Percebendo a mudez da menina, vovó ensaiou uma brincadeira chamada de  "pega-galinha". A menina se animou e, rindo, ajudou-a a cercar uma galinha bonita,
toda amarelinha. O sorriso dela se apagou aos poucos quando percebeu que a pobre galinha a encarava fazendo um co-có-có estranho, como se já soubesse o seu destino final. A menina tapou os ouvidos enquanto a infeliz continuava a entoar o seu  canto de martírio, só que agora mais alto.

Vovó Neita aproveitou e zás! Passou a faca no pescoço da infeliz, que ainda esperançosa, driblou-a  e se pôs a correr, de um lado a outro do galinheiro, esguichando sangue  em todas as direções. A menina, até então paralisada, começou a gritar e a correr com os olhos fechados. Parecia um circo dos horrores. A vovó, com a faca sanguinolenta, tentava amparar a menina, que também corria dela.

Por fim, num encontrão espetacular, menina e galinha se engalfinharam, rolando pelo chão do galinheiro.

O desesperado co-có-có de socorro não mais se ouvia, somente os gritos da menina que, salpicada de sangue, não conseguia sair de cima da pobre vítima, sacrificada apenas  para satisfazer a gula de vovó Neita.

Fiquei horrorizada com a narrativa e compadeci-me dela. Ao término do relato, os olhos azuis da moça bonita pareciam piscinas marejadas de lágrimas.
-É por isso que não como! E não como mesmo! Não como nada de bicho que tenha penas! – ela  disse,  enfaticamente.

E, mais uma vez lhe dei razão, oferecendo meus préstimos. Mas, ela ainda estava com fome e apontou outro salgado.
-E esse aqui? – perguntou a bela.
-Ah! Mas esse é de frango – respondeu-lhe a atendente.

Ela  parecia satisfeita e com  o sorriso mais lindo do mundo decretou:
-Então me vê dois.


* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário




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