Que pena!
* Por
Núbia Araújo Nonato do Amaral
Desço em uma rua
transversal à Bambina, ali em Botafogo. Olho para o relógio. São
13:50. Cheguei cedo de novo. Sigo, então, em direção da
praia. Vou comer um salgado light. A lojinha está vazia a essa hora
e a atendente, velha conhecida, me recebe com um sorrisão:
-E aí! O de sempre? – pergunta, solícita.
-E aí! O de sempre? – pergunta, solícita.
Devolvo-lhe o sorriso dizendo que hoje iria variar. Estava ainda decidindo o que iria comer quando entra na loja uma loira alta, rosto rosado de sol, sardenta. Os olhos tão azuis que até pra mim ficava complicado não admirá-la.
Seus cabelos eram
encaracolados cor de mel, a boca, apesar de estar com um batom
discreto, era agressiva, carnuda. Uma bela mulher. Ela entrou
sozinha saudando a todos e num gesto impaciente de quem
estava com fome, passou a mão
na barriga e foi logo perguntando:
na barriga e foi logo perguntando:
-O que temos para comer heim?
A atendente mostrou-lhe a
variedade dos petiscos, desde os mais vistosos aos menos fashions;
aqueles feitos com farinha escura... Dos pastéis de palmito aos que
garantiam 90% de isenção na consciência. Ela olhou e indagou sobre
os recheios dos salgados, até que por fim apontou um deles.
-Esse é de galinha –
informou a atendente.
A loira arrepiou-se toda,
balançando a cabeça negativamente. Eu, que até então saboreava o
meu pastel de palmito, perguntei-lhe sobre o motivo do asco. Ela
contou-me, chorosa, que quando era criança, os pais a levaram para o
sítio da vovó Neita. Percebi no seu olhar perdido no tempo um misto
de medo e raiva e comecei a levar a sério o seu relato.
Vovó Neita queria inserir a neta no cotidiano rural a todo custo. Resolveu preparar para o almoço um frango xadrez. Pegou a faca mais amolada que tinha e partiu para o galinheiro, levando consigo a menina, que de olhos arregalados, acompanhou a vó em silêncio.
Percebendo a mudez da menina, vovó ensaiou uma brincadeira chamada de "pega-galinha". A menina se animou e, rindo, ajudou-a a cercar uma galinha bonita,
toda amarelinha. O sorriso dela se apagou aos poucos quando percebeu que a pobre galinha a encarava fazendo um co-có-có estranho, como se já soubesse o seu destino final. A menina tapou os ouvidos enquanto a infeliz continuava a entoar o seu canto de martírio, só que agora mais alto.
Vovó Neita aproveitou e zás! Passou a faca no pescoço da infeliz, que ainda esperançosa, driblou-a e se pôs a correr, de um lado a outro do galinheiro, esguichando sangue em todas as direções. A menina, até então paralisada, começou a gritar e a correr com os olhos fechados. Parecia um circo dos horrores. A vovó, com a faca sanguinolenta, tentava amparar a menina, que também corria dela.
Por fim, num encontrão
espetacular, menina e galinha se engalfinharam, rolando pelo chão do
galinheiro.
O desesperado co-có-có de socorro não mais se ouvia, somente os gritos da menina que, salpicada de sangue, não conseguia sair de cima da pobre vítima, sacrificada apenas para satisfazer a gula de vovó Neita.
Fiquei horrorizada com a narrativa e compadeci-me dela. Ao término do relato, os olhos azuis da moça bonita pareciam piscinas marejadas de lágrimas.
-É por isso que não como! E
não como mesmo! Não como nada de bicho que tenha penas! – ela
disse, enfaticamente.
E, mais uma vez lhe dei razão, oferecendo meus préstimos. Mas, ela ainda estava com fome e apontou outro salgado.
-E esse aqui? – perguntou a
bela.
-Ah! Mas esse é de frango –
respondeu-lhe a atendente.
Ela parecia satisfeita e com o sorriso mais lindo do mundo decretou:
-Então me vê dois.
*
Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário
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