sábado, 6 de agosto de 2016

O poeta e o macarrão


* Por Clóvis Campêlo


A Praça da Independência, no bairro do Santo Antônio, no centro histórico do Recife, é uma das praças mais antigas da cidade. Segundo consta, durante o domínio holandês, aparecia nos mapas da época o local denominado Terreiro dos Coqueiros. Depois, mudou de denominação por várias vezes, sendo chamada de Praça Grande, Praça do Comércio, Praça da Ribeira e Praça da Polé. Em 1816, após uma reforma, mudou de denominação para Praça da União. Finalmente, em 1833, recebeu o nome atual de Praça da Independência. Porém, por abrigar durante muitos anos o prédio do jornal Diario de Pernambuco, o jornal mais antigo da América Latina ainda em circulação, e seguindo o gosto popular sempre foi chamada de Pracinha do Diario.

É lá, entre tantos outros bustos e esculturas, que se encontra a estátua do poeta pernambucano Carlos Pena Filho. Sentado numa mesa, de frente para a Igreja Matriz  de Santo Antônio, e muito próximo ao local onde funcionou o Bar Savoy, reduto frequentado pelo poeta e pelos boêmios da sua geração.

Hoje, já não existe mais o Savoy e o prédio do Diario encontra-se abandonado e decadente, como de resto toda aquela área, abandonada pelo poder público e pelo poder econômico.

Apodrece o centro do Recife e quase não há mais vestígios da suntuosidade de décadas atrás, quando ainda éramos uma cidade previsível e cuidadosa com as suas relíquias culturais e históricas. A praça hoje, na sua maioria, é frequentada por prostitutas decadentes, pelo comercio informal e pelo lúmpen ocioso,  além de eventuais larápios e descuidistas. Afinal, o que teria esse povo a ver com um poeta falecido nos anos 60 e totalmente dele desconhecido? Como respeitar essa imagem que não lhes comunicada absolutamente nada?

Assim, como aconteceu com outras esculturas do Circuito da Poesia no Recife, a escultura do poeta Carlos Pena Filho já teve um dos braços arrancados e o nariz fraturado. Afinal, ocupa um lugar que hoje já não lhe diz mais respeito. Invadido pelo povo periférico e pelos excluídos, em nada com eles se identifica.

Segundo os estudiosos do poeta, a poética de Carlos Pena Filho é carregada de oralidade e musicalidade, possuindo forte apelo pictórico. Visual e plástico, o poeta “pinta” o poema com palavras. Dono de um lirismo envolvente, é um poeta de imagens plásticas onde se destacam a cor, o movimento e a luz. Escreveu vários poemas tendo nos títulos a palavra retrato e cerca de uma centena contendo os nomes das cores ou referências a elas. Morreu ainda muito jovem, aos 31 anos, envolvido em um acidente de trânsito, quando o trânsito no Recife ainda era domesticado e possível.

A agressividade contra a escultura do poeta, demonstrada pelos transeuntes frequentadores da Pracinha do Diario, inocentes mas não tão desprovidos de periculosidade, talvez seja explicada pelos sociólogos de plantão. O poeta, imortalizado em pedra, continua lá insone, apático e inerte, a mercê do vandalismo gratuito.

Mas nem sempre a interferência é destrutiva, embora possa continuar sendo desrespeitosa. Essa semana que começa a se findar, ornamentaram a cabeça do poeta com uma porção de macarrão cozido com colorau ou molho de tomate (não sei se o populacho curte tamanho refinamento...).

Para um poeta que sugeria imagens com as suas palavras, ter a sua imagem ornamentada com os carboidratos do macarrão, nos inspirou a escrever a presente crônica, além de fazer o devido registro fotográfico como prova cabal do "crime' cometido e protegido pelo anonimato das ruas.

Ao vencedor, as batatas! Ao poeta pernambucano, esquecido e com a escultura abandonada à própria sorte, macarrão ao molho de tomates.

Recife, agosto 2016

* Poeta, jornalista e radialista.


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