sábado, 6 de agosto de 2016

Alice Barreira

* Por Assionara Souza


Eles não cansam, não? Eu não tenho mais pique nem pra 3 horas dançando numa festa, como é que alguém fica dando tiro num morro sem luz, cheio de barraco e beco, por 5 horas? Não adianta a Cesária Évora se esgoelar, Mariinha, só tem um jeito, mais vinho. Eu não, você é que bebeu pouco.

Ih, amanhã é dia do Chico vir com a história — temos que mudar, temos que mudar, temos que mudar pra onde, homem? Miserável dando tiro tem em qualquer lugar da cidade, do país, a essa altura em qualquer lugar do planeta, pelo menos os lugares do planeta onde nós vamos ter dinheiro pra morar. Se nem o governo faz alguma coisa...

Ih, Mariinha, lá vem você de novo? Que o que, pára com essa lengalenga de sempre que eu não vou participar de ong nenhuma. Ih, é a hora da missa! Eles não escolheram, se a gente acha ruim aqui, imagina lá, favela não é problema, é solução. Viu como eu já decorei?

Ora, faça-me o favor. Eu também não escolhi, ou você acha que o Brasil é o meu sonho de consumo? Tá certo, tá certo, ninguém agüenta mais os biribas com pó da Verinha, ninguém mais tem saco para os bazares beneficentes da Dora. Mas daí a subir morro. Prefiro comprar um cachorro com a filha da Su, vem com pedigree e plano de saúde, uma coisa organizada, duvido que qualquer negrinho daí de frente tenha isso.

Ouve o que eu te digo, Mariinha, compra um cachorro. Esse vinho hoje não está fazendo efeito. E olha que eu sou fraca, fraca pra bebida, sempre fui assim. Vinho, então. Sabia que a minha primeira vez foi depois de uma garrafa de vinho?

Lembra do Arthurzinho com h? Coitado, crente, crente, e eu ali, tímida, caindo na conversa dele como planejei por um mês. É, eu não te contei porque você era muito amiga dele. Era sim. Não sei porque eu lembrei disso, Mariinha. Do vinho não, deve ser efeito dos tiros.

E você vai ter que ajudar a negrada sozinha, pra subir morro nem todas as garrafas dessa casa me convencem. Eu vou passear com o meu afgã-hound, ou seja lá que diabo de nome tenha a tal raça. Por que você não sobe lá agora e convence os carinhas a ir dormir?

Meus filhos querem comprar maconha amanhã de manhã antes de ir pra escola e quem vai estar lá pra vender? Ninguém, vão estar todos dormindo porque ficaram dando tiro até de madrugada. É sério. Que urbanizar o quê. Também não, ninguém vai se unir, Mariinha. Que pode dar tudo certo nada. Tudo é tanta coisa.

A gente não se une nem pra reformar a portaria do prédio, que está um lixo. Você viu que a perua do oitavo andar botou a mesa de mármore no meio da passagem outra vez? Eu vou convocar uma reunião extraordinária, ah, vou! Não sei em que mundo você vive. Já te dei tanto conselho. Mas não adianta, não é?

Lá vem você de novo e de novo que não é pra pensar em mármore, que os pobres isso e aquilo, que pena!, que pena! Desde a faculdade que você é assim, com esse estoque de pena que não acaba mais. Já te falei, bicho de pena tudo toma no cu, Mariinha. Não briga comigo, desde quando eu sou rica? Olha o vinho que eu tomo. Meu calmante é lexotan, mulher! Uma pobreza.

Na Europa, nos Estados Unidos, qualquer classemediazinha remediada tem o que eu tenho. Na África eu seria uma rainha? Deus me livre de ser rainha na África, e muito menos na China, onde eles falsificam tudo, ô que raiva eu tenho de produto falsificado e dessa chinesada. Eu sei que você não tá falando de chinês, mas eu tô. Eu odeio a chinesada. Eles vão acabar com o mundo, vão falsificar o planeta inteiro. Sabia que muita gente aí dessa favela vive vendendo essas tralhas? Pior, muita gente usa.

Tem bolsa falsa da Luis Vuitton e não tem dinheiro pra sair de lá? Daí? Faça-me o favor, Mariinha. Já sei, já sei o que você vai dizer mas você devia era me passar o vinho em vez de bancar a comunista, o comunismo acabou no mundo todo, está out, out, my dear. É impressionante como as coisas acabam cada vez mais rápido. É maquiagem, é jóia, é vestido, é sapato, é comunismo. Ah, que cansaço.

E os restaurantes? Eu falo pro Chico, qual é o chef de cuisine nessa cidade que nos conhece? Não tem, não tem. Mariinha, agora eu vou citar você: ô mundinho de merda. Às vezes dá vontade de fazer como a minha filha e botar a bandeira do Brasil na janela. Mas aí você já sabe, não é? Lá vem o Chico dizendo que é perigoso, pode chamar a atenção dos bandidos aí da favela. Ai, Chico, ô homem cagão. Eu não ligo muito para o que ele fala. As crianças também estão aprendendo a dizer hã-hã, hã-hã e tomar suas próprias decisões. O Chico é um bom advogado, bom não, muito bom, dos melhores. Mas fora isso. E tão lengalenga.

Já sei, Chico, os bandidos, a bandeira. O problema é que, francamente, a bandeira é muito feiosa. Mariinha, que verde-e-amarelo está fashion no mundo todo o quê?! Nunca vi nada assim em Paris nem em Londres nem em Nova York. Vi muita bandeira americana, isso sim. E quer saber? Eu não gosto de bandeiras.

Não, não, você não vai pra casa nada, fica aqui comigo, vai. Quando é que eu vou tomar jeito? Você vive me perguntando isso, já reparou? Vamos tomar é vinho, vinho, vinho. Vou abrir outra garrafa. Olha aí, eles cansaram de dar tiro, foram dormir e levaram o meu sono junto. Até isso eles roubam. Vão dormir bonitinhos e eu fico aqui. Mariinha, faz uma ong pra cuidar do meu sono. Faz uma ong pra convencer o meu marido a ficar calado, outra pro meu filho abrir a boca e falar, mais uma pra minha filha voltar a estudar, uma pra minha mãe voltar a me reconhecer. Nossa, o que tem de ong pra fazer. É uma trabalheira sem fim, eu tô fora, vou ficar com o afgã-hound.

Cachorros obedecem, cachorros não roubam a sua bolsa, cachorros não têm amantes, cachorros não são amantes, cachorros não choram, Mariinha, eles no máximo ganem se você espancar, mas é só parar e estalar os dedos que na mesma hora eles abanam o rabo. E não precisa de ong nenhuma pra isso. Você acha pouco? É fantástico, e eu ainda te digo mais, os cachorros não guardam fotos de acampamentos da faculdade, sabe? Eles nem fazem faculdade, eles nem se apaixonam pelas colegas de faculdade, não lêem poemas de Fernando Pessoa, não dançam de madrugada numa barraca de camping que desmonta com a chuva, não correm pra debaixo de uma árvore nem tiram a roupa nem se enxugam nem se beijam nem descobrem como é que fazem duas mulheres, Mariinha. Como nós fizemos, lembra?

Você nem lembrava mais, é? Pois eu nunca me esqueço. Eu esqueci grego, latim, lingüística, tudo. Menos você, o teu corpo, os teus peitos, a tua xoxota, Mariinha. É por isso que eu quero um cachorro, só um cachorro, nada mais que um cachorro e essa taça de vinho. Se eu beber mais uma garrafa pode ser que amanhã eu esqueça.

* Escritora potiguar que nasceu em Caicó/RN, em 1969, mas mora em Curitiba/PR. É doutoranda em Estudos Literários pela UFPR, onde pesquisa a obra de Osman Lins. “Cecília não é um cachimbo” (7Letras/2005) é sua obra de estreia na literatura. Publicou, também, o livro”Amanhã. Com sorvete!”.



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