sábado, 6 de agosto de 2016

As revoluções nacionais na América Latina

* Por Cândido Mendes


A inserção da América Latina na faixa periférica, evidenciada pelos exemplos do Chile, México, Brasil e Argentina, demonstra, nos seus estágios mais adiantados, a implicação profunda do nacionalismo e do desenvolvimento nas revoluções contra o sistema colonial.

Vencida há mais de um século a fase de conquista da independência política, essa área histórica demonstra hoje a maturação do processo de tomada de consciência da contradição entre a vigência de seu velho regime econômico e a implantação ampla de sua soberania. Muitas vezes, antes de atingirem ao claro equacionamento de um programa de emancipação, puderam revelar o aprofundamento daquele processo, através da aceitação de fórmulas intervencionistas inéditas e de nacionalização de amplos setores de sua economia, empolgados pelo sistema colonial. É esse fenômeno que emprestou a certos processos expropriatórios mexicanos e chilenos os indícios de uma postura pioneira, que veio a desembocar numa real política de desenvolvimento.

Outra das notas essenciais da emancipação em curso no hemisfério é a de evidenciarem alguns desses países uma reação espontânea de suas forças produtoras ao antigo regime colonial, iniciando, pelas próprias forças privadas nacionais, um inequívoco esforço de industrialização. Encontra-se aí uma nova demonstração do grau de maturidade dos processos emancipatórios da América Latina, em contraste com o mundo afro-asiático. Neste estágio, em que o Brasil ocupa posição mais sólida, o desenvolvimento assume, de fato, a tônica do processo. É numa fase como esta que se pode apreender, já, a destrama entre o plano político e o econômico da emancipação, verificando-se de que forma o seu sucesso definitivo dependa, essencialmente, das vicissitudes desse programa e da capacidade nacional em formular os modelos que integrem todos os fatores de produção desatados no seu curso.

No panorama das revoluções nacionais pelo desenvolvimento da América Latina, dever-se-ia capitular, de início, os lances mais expressivos da decisão de suas coletividades de romper com o sistema colonial, antes mesmo de formular ostensivamente a plataforma econômica de emancipação.

Seria de se prever fossem mais propensas a essas manifestações as áreas que experimentassem, de forma mais intensa, as relações de proximidade com a economia dominante do continente, como se deu com o México. A elas estariam também expostas as relações que sofriam os efeitos de uma economia colonial mineira, na qual a exploração direta daqueles empreendimentos se verificou pelas organizações internacionais que se dedicam a essas atividades. Era este o caso do Chile, e esse fato

não deixaria de avivar a distinção entre as forças nacionais e as externas que laboravam em sua economia como responsável pelo alto grau de politização desse país. Registre-se, ainda, o contraste entre estas formas diretas e ostensivas do sistema colonial - exacerbando as suas tensões -, e o que se verificou, por exemplo, com o extrativismo agrícola brasileiro ou argentino, nos quais os latifúndios entregues a atividades de exportação permaneciam, via de regra, nas mãos das classes nacionais vinculadas ao sistema colonial.

A nacionalização das companhias petrolíferas mexicanas em 1941, ou a expropriação dos principais consórcios dedicados à exploração dos nitratos no Chile tem o mesmo ímpeto das revoluções confiscatórias. Mas delas se diferenciam enquanto se inserem num processo social adiantado, e ocorrem em coletividades diversificadas capazes de realizar, efetivamente, uma política de desenvolvimento.

Via de regra, àquelas manifestações antecedeu o funcionamento de instituições como a "Nacional Financeira" Mexicana ou o Banco Central de Santiago, a indicar, de maneira pioneira, a afirmação de uma política de desenvolvimento. Traduziam ambas a formulação arrojada de um propósito de intervencionismo estatal destinado a mudar a estrutura daquelas economias, numa época em que não se tinha atingido ainda uma consciência clara do problema do subdesenvolvimento e da política necessária à sua consecução. Não é sem razão que o pensamento dos economistas latino-americanos, muitas vezes alicerçados nestas experiências iniciais, viria a ter uma importância tão decisiva no delineamento completo dessa plataforma em que hoje repousam as perspectivas de bem-estar social de todo o Terceiro Mundo.

As economias mexicana e chilena permitem que se aprecie o caldear do processo emancipatório nos seus dois pólos básicos: o da superação do sistema colonial, inclusive com o recurso a providências expropriatórias, e o encaminhamento dessas economia para um plano de racionalização geral do aparelho de produção. Ambos pressuporiam, todavia, a precisar o ímpeto de suas revoluções, o trauma do confisco, a experiência da execução concreta de medidas corretivas ou repressivas contra explorações econômicas que se identificavam com a própria vigência do sistema colonial.

Numa antecipação válida para todo o resto do continente, mostravam o sentido exemplar que apresentam, para a precipitação de uma consciência nacional, as medidas relativas à apropriação dos recursos do subsolo. É o que se comprovaria com o caso brasileiro, na polêmica da Petrobrás. Visando à discussão de um modelo econômico relativo a uma exploração futura, ensejando um debate inteiramente "de lege ferenda", pôde ainda assim constituir-se no episódio de maior importância sensibilização das camadas populares não só para contradições da estrutura colonial como para as medidas de reorientação completa da vida econômica nacional reclamadas pelo desenvolvimento.

Numa economia como a brasileira, tradicional, de formações coloniais que atuavam de forma laxa e pouca ostensiva, medidas como a do monopólio estatal do petróleo teriam um cunho dramático natural. Tornariam tangível, de forma imediata, a contradição entre o regime extrativo clássico e o movimento de ordenação de todas as fontes produtivas à economia nacional, exigido pela emancipação. No caso em tela, a polêmica da Petrobrás efetuaria a ambientação acelerada do país às formas de intervenção de base que impõe o desenvolvimento. Mas acima de tudo encarnaria o verdadeiro projeto-símbolo definidor do sentido da transição que caracteriza o atual momento histórico de países como o Brasil.

No tocante, por fim, à espontaneidade do processo de desenvolvimento, a revolução brasileira é a que apresenta os sinais mais alvissareiros de toda a faixa periférica. Beneficiando-se do mecanismo tradicional de reações de uma economia extrativa pobre, exposta a todas as incertezas de um comércio de pauta tropical, como o do café, o país iniciaria a diversificação do seu aparelho produtivo, para aí encaminhando, a cada retração do setor externo, a poupança amealhada. E mercê do processo de substituição de importações, lançando-se à implantação nacional de manufaturas de consumo.

Os anos do após-guerra encontram já consolidada esta fase do processo, e orientado um território de dimensões continentais para a formação de verdadeiro mercado interno, em que uma relativa dispersão de renda já possibilitava à massa da população induzir a constituição de uma indústria de bens de consumo geral para seu abastecimento.

Ao racionalizar esse esforço mediante a plataforma do desenvolvimento, o Estado assumiu a tarefa de assegurar a provisão dos setores de infra-estrutura, bem como a de reunir os capitais para os setores de base, de modo que se complementasse o processo naturalmente gerado, e viesse o país a gozar de um aparelho de produção efetivamente integrado.

Definia-se, no nosso caso, de início, o caráter supletivo dessa intervenção, e o firme estabelecimento da burguesia industrial, nos setores a que já a conduzira o seu espírito empresarial.

A solidez das linhas gerais do processo brasileiro é ressaltada pelo seu confronto com o exemplo argentino, no qual o impasse da revolução peronista se define, exatamente, pelo contraste de suas características.

Gozando de uma pauta rica de exportações apoiada no trigo, na carne, nas frutas não tropicais, constituindo um regime de população contida, e receitas externas tradicionalmente estáveis e crescentes, a Argentina surgiria com índices econômicos que superariam os dos países subdesenvolvidos. Situou-se, juntamente com as especialíssimas economias do Uruguai e da Venezuela, entre as nações cuja renda per capita apresentava outra magnitude que as do resto do continente.

A prosperidade tranqüila do regime que, aproveitando ao máximo os benefícios de suas planícies aluviais, permitia que se falasse em legítima "vocação agrária" de seu aparelho econômico, experimentaria, entretanto, um colapso radical no após-guerra de 45. Seus produtos passaram, então, a concorrer com os das áreas desenvolvidas, a ponto de se verem incluídos entre os "excedentes" internacionais, aos quais se negaria até a esperança de melhoria cíclica, ainda que fugaz, como acontece com os produtos de pauta tropical, na faixa periférica.

Seu afastamento dos mercados tinha um aspecto estrutural definitivo, expondo-a a uma redução de suas receitas cambiais, sem perspectivas de reação, como aquela a que já se ambientara a economia brasileira.

Nesta época, que coincide com a emergência do peronismo, caracteriza-se para a Argentina a quadra histórica em que foi obrigada a abandonar, da noite para o dia, o seu sistema clássico de vida econômica e levada a se lançar num processo desesperado de industrialização substitutiva. Via-se forçada a realizar, rapidissimamente, um esforço que já iniciara o nosso país desde o começo do século. E tal circunstância colocava numa perspectiva dramática os setores de altas rendas da economia argentina, que não se tinham preocupado em deflagrar no país, mediante inversões industriais, o mecanismo espontâneo de substituição de importações, já amplamente desenvolvido no Brasil.

É nesse sentido que, no período em questão, e ao contrário de quase todo o resto do Hemisfério, a Argentina se caracterizará não pela expansão, mas pela paralisia ou mesmo redução de sua renda per capita. Lançando-se à mudança acelerada da estrutura do seu aparelho de produção veio ela a se ressentir da ausência flagrante de uma burguesia nacional interna para realizar a diversificação de sua estrutura econômica. Pela própria dinâmica do processo de substituição de importações, foi o Estado obrigado a intervir numa vasta série de manufaturas não essenciais, que, no caso brasileiro, estavam de há muito cobertas pela iniciativa privada.

Escasseariam, por força, os recursos para os investimentos de infra-estrutura ou para as atividades básicas de transformação em que se deveriam apoiar as indústrias de bens de consumo, apressadamente instaladas no país.

A artificialidade e a urgência da mudança se refletiriam necessariamente na alteração radical da ocupação da mão-de-obra argentina. Enquanto isto, a nova organização industrial, de base dominantemente pública, viria a disputar o seu mercado de trabalho às áreas rurais organizadas muito mais em termos de economia de exportação do que de subsistência. Vale dizer, em termos latifundiários e rigorosamente privatistas, de largo poder de controle, ainda, sobre o conjunto da economia platina.

À industrialização seguiu-se uma intensa licitação salarial, ao contrário do que se deu com o caso brasileiro. O resultado final seria um redistributivismo profundo da renda nacional, que não se fez acompanhar, entretanto, de um aumento substancial do produto. Basta verificar que, durante a década iniciada em 46, verificou-se um aumento de 47% para 60% na participação do salariado na renda nacional, enquanto não foi superior a 3,5% o crescimento do produto argentino. O largo processo inflacionário que passou a castigar a Argentina teria como sua conseqüência mais profunda o fato de representar um redistributivismo anormal de renda, sem induzir, ao mesmo tempo, à expansão do processo econômico. De se ter realizado, paradoxalmente, num panorama de estagnação e paralisia do produto nacional.

Seu efeito seria fatalmente o colapso da própria unidade do processo e a ruptura de qualquer possibilidade de integração real pelo desenvolvimento, da velha e nova ordem social e econômica argentinas.

Este dualismo vem hoje subvertendo dramaticamente a República do Prata. Já se caracterizara, num primeiro momento, pela radicalização do peronismo e anti-peronismo, que dera excepcional violência - inclusive institucionalizando, pela primeira vez, o fuzilamento nas atuais insurreições civis do hemisfério - ao movimento militar conservador de Lonardi e Aramburu. Ele consubstancia a instabilidade contínua do "Frondizismo" obrigado a toda descaracterização de sua plataforma política, para segurar a simples vigência, cada vez mais nominal, de seu mandato. O regime militar que veio, finalmente, a substituí-lo, faria somente tornar ostensiva a impossibilidade de qualquer conciliação ou integração, levando a Argentina à opção pelo pólo da velha ordem, no alento que lhe possa dar, ainda, a força das armas. O classicismo das terapias anti-inflacionárias, postas em vigor pelo novo ministério Alzogaray, no governo Guido, pode levar a Argentina, numa nova nêmese do desenvolvimento, a se transformar num estrito Estado neocapitalista precário, destituído de significação histórica.

O risco desses desfechos em nações dotadas excepcionalmente para a realização de ampla promoção social das áreas periféricas só faz sublinhar a importância do desafio histórico hoje vivido pelo Terceiro Mundo. Seu desenrolar é função não só dos recursos que estiveram ao alcance desses países, ao iniciarem o seu processo emancipatório, mas das contradições que puderam surgir na sua continuação, obrigando-os a opções que conteriam um desfecho fatal para a manutenção de sua experiência histórica.

É nesse sentido que, no remate do presente trabalho, o "Frondizismo" será estudado como uma dessas alternativas que, na dialética das contradições de um movimento emancipatório, logrou devolver um dos processos mais significativos da faixa periférica ao plano de uma revolução abortada.

Ela sublinha, em contraste, a solidão dos países que ainda permanecem no campo de uma genuína revolução nacional pelo desenvolvimento e vêem que a riqueza do seu processo, ou o grau de maturação a que já tenham atingido não representam por si só penhor de redução dos riscos ou ameaças à sua definitiva consolidação. Tal perspectiva se torna especialmente significativa para o processo brasileiro, onde correm hoje, paralelos, os sucessos do desenvolvimento e o vulto das contradições acarretadas no seu curso pelo "desenvolvimentismo". No decorrer de todo o presente trabalho, o "caso brasileiro" será, nesses termos, o exemplo constante na investigação da experiência histórica que realizem as revoluções nacionais pelo desenvolvimento. Da análise da formulação desta política à discussão das contradições que hoje ameaçam a unidade do seu processo. Elas permitiram definir, no seu caráter constantemente ameaçado, no ineditismo das soluções e respostas que lhe caberiam encontrar a cada momento, o aspecto de "desafio histórico" que caracteriza a experiência hoje vivida pelo Brasil, enquanto engastado na faixa periférica. Em tal cometimento, entretanto, o seu valor seria apenas de exemplo dessa tarefa dos meados do século XX, que é a extinção dos "proletariados históricos" contemporâneos.

Assim é que, no capítulo subseqüente, competiria inicialmente fixar as características formais desta categoria do proletariado histórico, que hoje identifica todo o Terceiro Mundo, em função das específicas articulações históricas do Ocidente, como primeira cultura ecumênica.

Traçados os seus principais tópicos, o painel concreto das várias respostas da faixa periférica à subtração da sua capacidade de protagonismo pelo Ocidente, esta análise definiria as condições concretas de emergência do Terceiro Mundo como sujeito histórico, através do movimento conjunto do nacionalismo e do desenvolvimento.

(Nacionalismo e desenvolvimento, 1963.)


* Jurista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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