sábado, 6 de agosto de 2016

Sujeito Zero (13)


* Por Sergio Vilas Boas


Juntando as peças, entrevejo que Alma é a heroína tentando penetrar na mente de um homem incógnito e em sua própria mente; a filha autêntica disposta a oferecer ao pai pelo menos alguns ossos para uma minibiografia; deseja que uma imagem deformada de anos reassuma feições humanas e um cunho de familiaridade. Ou seja, ela quer que o pai exista e resista. Mas precisou bater de frente com sua omissões.

As pessoas “normais” – seria também impróprio dizer “comuns” (eu mesmo nunca conheci “uma pessoa comum”) – raramente são exibidas como modelos porque suas potencialidades não estão evidentes à primeira vista. Não são estátuas de grandeza como as criaturas extraordinárias, que, em muitos casos, não passam de uma criação a serviço de um Deus, da mídia ou de uma imaginação fértil e ingênua.

Até o cotidiano tem algum tipo de importância. Útil ou inútil, com ou sem valor, bravo ou covarde, não importa. Seu Edmundo ao menos ensinou à filha que o trivial esconde enigmas incríveis; que, quando necessário, o centro invade a periferia; que o reino das experiências comuns pode ser posto a nu; ou seja, dá para ser único em um mundo meio vulgar.

Os choques elétricos contemporâneos que Seu Edmundo recebeu foram de baixa voltagem. Ele não foi cúmplice de seu tempo nem atravessou corredores na ponta dos pés, espiou buracos de fechadura ou arrombou portas com o peito para quebrar a cara em seguida. Ao contrário, evitou as surpresas como os lunáticos evitam a realidade.

Alma tem consciência de que seu pai revelava mais do que escondia. Sua aparente banalidade opunha-se à ordem artificial da atualidade. Talvez porque ele não se comunicava com aparências nem tagarelava neuroticamente a fim de ver e ser visto em troca de migalhas.

Mas Alma e eu estamos tão distanciados do nosso próprio passado que parece que não temos história. Às vezes passo noites inteiras tentando iluminar os túneis em que me meti. Neste momento, sinto-me devorado por um quarto absolutamente escuro, em que todos os objetos estão fora de lugar e o espaço para trânsito é mínimo.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.




Nenhum comentário:

Postar um comentário