Sujeito Zero (13)
* Por Sergio Vilas Boas
Juntando as
peças, entrevejo
que Alma é a heroína tentando penetrar na mente de um homem incógnito e em sua
própria mente; a filha autêntica disposta a oferecer ao pai pelo menos alguns
ossos para uma minibiografia; deseja que uma imagem deformada de anos reassuma
feições humanas e um cunho de familiaridade. Ou seja, ela quer que o pai exista
e resista. Mas precisou bater de frente com sua omissões.
As pessoas “normais” – seria também
impróprio dizer “comuns” (eu mesmo nunca conheci “uma pessoa comum”) –
raramente são exibidas como modelos porque suas potencialidades não estão
evidentes à primeira vista. Não são estátuas de grandeza como as criaturas
extraordinárias, que, em muitos casos, não passam de uma criação a serviço de
um Deus, da mídia ou de uma imaginação fértil e ingênua.
Até o cotidiano tem algum tipo de
importância. Útil ou inútil, com ou sem valor, bravo ou covarde, não importa.
Seu Edmundo ao menos ensinou à filha que o trivial esconde enigmas incríveis;
que, quando necessário, o centro invade a periferia; que o reino das
experiências comuns pode ser posto a nu; ou seja, dá para ser único em um mundo
meio vulgar.
Os choques elétricos contemporâneos que
Seu Edmundo recebeu foram de baixa voltagem. Ele não foi cúmplice de seu tempo
nem atravessou corredores na ponta dos pés, espiou buracos de fechadura ou
arrombou portas com o peito para quebrar a cara em seguida. Ao contrário,
evitou as surpresas como os lunáticos evitam a realidade.
Alma tem consciência de que seu pai
revelava mais do que escondia. Sua aparente banalidade opunha-se à ordem
artificial da atualidade. Talvez porque ele não se comunicava com aparências
nem tagarelava neuroticamente a fim de ver e ser visto em troca de migalhas.
Mas Alma e eu estamos tão distanciados
do nosso próprio passado que parece que não temos história. Às vezes passo
noites inteiras tentando iluminar os túneis em que me meti. Neste momento,
sinto-me devorado por
um quarto absolutamente escuro, em que todos os objetos estão fora de lugar e o
espaço para trânsito é mínimo.
* Jornalista, escritor e
professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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