Shakespeare apaixonado
O cinema é excelente fonte de entretenimento. Certo? Certíssimo!
Todavia, não pode ser considerado veículo de informação confiável, com o rigor
que os fatos exigem. Esta sequer é sua finalidade. Menos rigoroso o cinema
tende a ser quando trata de acontecimentos do passado. Sua falta de exatidão se
multiplica exponencialmente, quanto mais antigo for o episódio que busque
retratar (na verdade, dramatizar). Um bom filme exige, sobretudo, ação, embora
não exclua necessariamente a reflexão, desde que colocada de forma pertinente
na boca de personagens e que esteja inserida no contexto e não quebre a continuidade
da narrativa.
Mesmo os melhores e mais consagrados romances, dos mais
acatados escritores, nunca são levados à tela exatamente como seus autores os escreveram.
É impossível! A linguagem e a técnica cinematográfica diferem das literárias.
São duas formas de arte distintas, embora, às vezes, possam ser complementares.
Nos filmes, há cortes, acréscimos, alterações, adaptações etc. de acordo com as
necessidades de continuidade das filmagens que sequer passaram pela cabeça dos
romancistas, autores das histórias originais que criaram, adaptadas pelos
roteiristas.
Se isso acontece em ficção, imaginem quando se trata de
levar à tela biografias, que exigem documentação que comprove a veracidade do
que se está tratando e, mesmo tendo esta em mãos, e sendo farta e confiável,
nem sempre expressa com exatidão o que o personagem fez ou foi! Quando muito, o
filme pode dar, apenas, pálida idéia do que a personalidade biografada realizou
e viveu. E olhem lá!!! Este longo preâmbulo vem a propósito da coprodução
cinematográfica norte-americana-inglesa, datada de 1998, dirigida por John
Madden, intitulada, no Brasil, de “Shakespeare apaixonado”. Nem preciso
ressaltar que foi estrondoso sucesso de crítica e de público. Isso é do conhecimento
de qualquer pessoa razoavelmente bem informada.
Esclareço, antes que me contestem, que não estou
questionando a qualidade do filme. Esta é inegável. Afinal, não foi por acaso
que conquistou sete estatuetas do Oscar, a maior premiação do cinema, a saber: Melhor
Filme, Melhor Atriz (Gwyneth Paltrow), Melhor Atriz Coadjuvante (Judi Dench),
Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte, Melhor Canção Original e Melhor
Roteiro Original. Questiono, isto sim, a “veracidade” da história. Muita gente
com relativa experiência e bom conhecimento de Literatura, considera que aquilo
de que o enredo trata aconteceu, de fato, e da maneira exposta. Não aconteceu!!!
É fruto da imaginação dos roteiristas – o checo, naturalizado inglês, Tom
Stoppard e o norte-americano Marc Norman – o que não lhes tira o mérito, mas,
pelo contrário, somente o ressalta. Afinal, souberam ser convincentes.
Os próprios produtores do filme deixaram claro que se
tratava de ficção, embora enfocando personagens que de fato existiram, ao
categorizá-lo de “comédia romântica”. Sua finalidade, portanto, não foi a de
trazer bombásticas revelações, baseadas em documentos, sobre a vida e a obra de
William Shakespeare (até porque, estes são raros e imprecisos), mas de fazer a platéia
rir. E fez! Talvez objetivasse fazer o expectador também se emocionar, (claro,
quando fosse o caso). Nesse aspecto, se deram bem. Todavia, enfatizo (e reitero
“n” vezes) que o objetivo dos roteiristas não foi o de lançar luz sobre a
biografia do genial dramaturgo e muito menos o de dirimir dúvidas e pôr fim às
inúmeras polêmicas em torno dessa figura carismática, mas tão misteriosa.
Nem Tom Stoppard – nascido na antiga Checoslováquia em 2 de
julho de 1937 – e nem Marc Norman – natural de Los Angeles, na Califórnia, onde
nasceu em 10 de fevereiro de 1941 – são biógrafos. Podem até conhecer a obra de
Shakespeare (parte dela ou sua totalidade). Mas estão longe, a milhares de
anos-luz de distância, de poderem ser considerados, mesmo que remotamente, pesquisadores
dela e muito menos especialistas na matéria. Não são, sequer, críticos
literários. Ambos são dramaturgos (como o bardo inglês foi) e roteiristas brilhantes.
Tanto isso é verdade que ganharam o Oscar da categoria.
Embora o filme – que comentarei com mais vagar oportunamente
- esbarre em atuações por vezes superestimadas, e que não raro caem na
estereotipia, o tom certo de humor utilizado acaba por fazer de “Shakespeare Apaixonado”
uma obra artística, no melhor sentido da palavra, pelo fato simplesmente de
transpirar arte. Mas é ficcional e não documental. Insisto que se trata,
apenas, de “comédia romântica” e nada além disso. O ponto alto do filme,
pode-se dizer, é a forma como estimula a imaginação do espectador. Quem o
assistiu, certamente ficou com a sensação de que aquela foi a verdadeira
história por trás da lenda de duas das principais peças escritas por Shakespeare:
“Romeu e Julieta” e “Noite de Reis”. Pode ter sido, como pode não ter. Embora
convincente, é mera especulação. Para não deixar o leitor que não teve a
oportunidade de assistir ao filme na mão, resumo, em poucas palavras, seu enredo.
William Shakespeare precisa escrever uma nova peça de
teatro, uma história de amor com final trágico, mas está passando por uma fase
tão comum para quem lida com redação de textos: a de um bloqueio mental, a tão
temida “crise de criatividade”. Para se livrar do problema, somente uma musa
inspiradora poderá ajudá-lo. Ao apaixonar-se por Lady Viola, o dramaturgo volta
a ter inspiração. Aproveita o momento e escreve a peça “Romeu e Julieta”. Na
época, mulheres não podiam interpretar papeis no teatro. E o que a musa de
Shakespeare faz para driblar essa proibição? Veste-se de homem. Lady Viola, por
quem o dramaturgo se apaixonou, é noiva de um nobre, do Lord Wessex, dono de
terras na Virgínia, á procura de dinheiro para voltar para os Estados Unidos.
No final das contas, a Rainha Elizabeth I finda por autorizar a participação de
mulheres no teatro. Tomou essa decisão após descobrir que Lady Viola se vestira
de homem apenas para participar das peças de William Shakespeare.
Isso aconteceu mesmo e da forma relatada no filme? Sou capaz
de jurar por todas as juras que não, embora milhões e milhões de pessoas ao
redor do mundo, influenciadas por essa produção cinematográfica, acreditem,
piamente, que sim. Se as pessoas acreditam até em Papai Noel, Coelhinho da
Páscoa, duendes e outras dezenas de bobagens, por que não acreditariam nessa
história, puríssimo fruto da imaginação de dois bons roteiristas, mas com
aspecto de verossimilhança?!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Bem convincentes, pois eu que sou cética acreditei tratar-se sim, de ficção, mas com proximidades da verdade.
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