domingo, 14 de junho de 2015

Sujeito Zero (8)


* Por Sergio Vilas Boas



Ainda há tempo para eu declinar do nosso “contrato”, Alma? Suspeito que Seu Edmundo não é o tipo ideal para protagonizar a minha primeira investida no livre-arbítrio da ficção. Vocês dois me obrigam a ficar montando e desmontando peças tão minúsculas quanto os mecanismos de um relógio de pulso. Sei, eu devia estar apaixonado pelo que faço, ou fazer-me apaixonar. Mas...

O que me falta? Desgraçada pergunta. Talvez eu seja um viciado em correspondências, diários, gravações, ensaios e outras contrapartidas; ou a minha mente esteja condicionada à utopia da objetividade; ou talvez tenha me tornado um dependente químico que precisa de álcool para imaginar e de imaginação para começar a beber.

Você me ofereceu uma serpente cifrada. Na medida do possível, procuro preencher as lacunas de suas anotações com imaginação, este recurso precioso que nunca me permiti utilizar antes. Mas a narrativa tropeça, solavanca e, cada vez que isto acontece, me martirizo. Sinto-me o próprio Sujeito Zero, Alma, o braço direito de uma autêntica montagem, o astro improvável de uma legítima armação.

Seu Sujeito é ininteligível em estado bruto. Ontem saí tresloucado à cata de alguma coerência em suas notas. Lá na frente entendi que elas não se encaixavam. Insisti em remontar tudo desde o início. Apus minha narrativa sobre seus apontamentos como quem reescreve uma carta salvando o arquivo sempre com o mesmo nome, usando e abusando dos comandos Recortar e Colar.

Mais: apertei a tecla Salvar tantas vezes que desfigurei seu discurso, Alma, desmobilizei suas razões e desenterrei suas raízes. Minha imaginação tem limites, não domino a arte da invenção. Sinto-me como se esculpisse um torso clássico a partir de um torrão modernista. De eternizador de minorias mudas, tornei-me uma espécie de “laranja” das letras.

O pior de tudo é que carrego dentro de mim a desagradável sensação de que você e Seu Edmundo estão me usando. Se pensar demais nisso, sei que acabarei desistindo. Melhor então eu me virar para o lado direito (costumo dormir nessa posição, assim não ausculto as batidas do meu coração) e adormecer sob os cobertores. Em poucos minutos virão aqueles terríveis pesadelos que só reforçam meus fracassos.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.



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