domingo, 21 de junho de 2015

A dupla nacionalidade de D. Pedro (2)


* Por Sérgio Corrêa da Costa


(CONTINUAÇÃO)


Não tem o menor fundamento a alegação de que D. Pedro perdeu os direitos de cidadão por ter violado o § 2º artigo 7º da Constituição quando empregou-se no serviço do país a que primeiro pertencera, sem a necessária licença. Ora, os atos praticados por D. Pedro em relação a Portugal, depois da abdicação, foram simplesmente a continuação dos que exercera quando imperador em exercício. Como chefe do poder Executivo, não necessitava o soberano de autorização para praticar qualquer dos atos mencionados no § 2º artigo 7º da Constituição, ou, se quiserem, dava ele, a si mesmo, a precisa licença sob a responsabilidade de seus ministros. Foi o que se fez e, nessas condições, aceitou ele a coroa de Portugal e exerceu todas as funções inerentes ao cargo, embora por pouco tempo. E disso, como se viu, com aprovação da Assembléia Geral, "que tem o direito e o dever de velar na guarda da lei fundamental".

A licença dada pelo imperador a si próprio não poderia ter caducado com a abdicação. Tivesse ele, por exemplo, antes do 7 de abril, dado permissão a um funcionário brasileiro para aceitar uma comissão de um governo estrangeiro, essa autorização teria cessado com a renúncia de D. Pedro ao trono? Claro que não. Por conseguinte, não se pode privar o imperador daquilo que não se retiraria a um simples cidadão.

O próprio governo brasileiro forneceu, em 1833, um argumento decisivo em favor do que sustentamos. Por decreto de 4 de dezembro, foram destituídos dos direitos de cidadania o Marquês de Resende e outros brasileiros porque tinham aceitado empregos e condecorações do governo português sem a necessária licença. Porque não se procedeu, então, de igual modo, contra D. Pedro, que era o próprio chefe do governo que havia empregado e condecorado os brasileiros por isso destituídos? A resposta é clara. Porque já havia a convicção de que os casos eram diversos e que o imperador prescindia da autorização exigida aos demais súditos. Poderiam privá-lo dos direitos de cidadão os atos que não o tinham privado da coroa?
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Em junho de 1833, o deputado Venâncio Henriques de Resende apresentou à Câmara um projeto de banimento do antigo imperador. O projeto foi ali aprovado, mas o Senado repeliu-o, depois, por grande maioria. Ora, votando o projeto de banimento, a Câmara reconhecia que D. Pedro era brasileiro porque, de acordo com o Código Penal (artigo 50), a pena de banimento só é aplicável aos cidadãos brasileiros. A Câmara, pois, reconhecia a nacionalidade para poder cassá-la. Realmente, se o projeto fosse aprovado nas duas Casas e devidamente sancionado, D. Pedro I teria perdido, desde então, os seus direitos de cidadão, pois tal é a conseqüência da pena de banimento. Da rejeição do projeto, porém, ficou assentado que o Augusto Fundador do Império continuava a ser cidadão brasileiro.

A última palavra sobre a nacionalidade de D. Pedro foi dada depois de sua morte pelo reconhecimento de sua filha, nascida depois da abdicação, como princesa brasileira. Como é o Direito Constitucional e não o Direito Civil que regula a nossa nacionalidade, e só podendo D. Maria Amélia ser reconhecida princesa do Brasil depois de provada a sua nacionalidade brasileira, é fora de dúvida que a Assembléia Geral estava, ipso facto, reconhecendo que o imperador não perdera os seus direitos de cidadão.

Juridicamente provado, como está, que D. Pedro I conservou até à morte a nacionalidade brasileira, passemos ao estudo da questão do ponto de vista português, o qual afirma, por seu lado, que jamais perdeu o primogênito de D. João VI a nacionalidade paterna.

D. Francisco de S. Luiz Saraiva, bispo resignatário de Coimbra, nas suas Breves reflexões sobre o assento das chamadas Cortes dos Três Estados de 1828,3 procura demonstrar, com farta argumentação, que "S. M. I., o Senhor D. Pedro, não pode ser havido por estrangeiro em Portugal, sem o mais intolerável abuso da significação deste vocábulo".
As nossas leis pátrias [diz ele], em conformidade com o que deixamos estabelecido, chamam sempre naturais, isto é, verdadeiramente portugueses, os que "nascem nestes reinos e seus senhorios" e constantemente opõem estrangeiros e naturais.

Veja Orden., liv. V, tit. XLIII, pp. 106, 107, 108, 109 e 112 e determinadamente o liv. II, tit. LV, onde firma a regra geral: "Ordenamos que as pessoas que não nasceram nestes reinos e senhorios deles não sejam havidos por naturais deles, posto que, neles morem, e residam, e casem com mulheres naturais deles, e neles vivam continuadamente, e tenham seus domicílios e bens".

Sendo, pois, certo e notório que S. M. Imperial e Real, o Senhor D. Pedro IV é filho primogênito de El-Rei de Portugal, "natural deste Reino", como nascido e criado na corte e no palácio de seu augusto pai; que fala, e falou sempre a língua portuguesa; que viveu sempre com portugueses; como é possível que, sem o mais intolerável abuso e improprieddae dos vocábulos, sem o mais escandaloso desprezo da razão e das leis, e lhe queira impor a nota de estrangeiro e se tome tão absurdo pretexto para o excluir da sucessão ao trono de seu pai e de seus maiores?

Cita como antecedente o Infante D. Afonso, depois Rei D. Afonso III, o qual, sendo conde soberano de Bolonha, e estando, por este título, no mais alto grau de naturalização bolonhesa, nem por isso foi julgado estrangeiro em Portugal, nem essa qualidade lhe pôs embaraço algum à sucessão do trono, e continua:

A lei de Lamego quer e ordena que o rei seja sempre de Portugal; que o reino nunca "vá a estranhos", isto é, "nunca vá fora de portugueses". O Senhor D. Pedro é de Portugal; é filho de El-Rei de Portugal; é natural de Portugal, e se ele foi rei, não vai o reino "fora de portugueses". Logo, o Senhor D. Pedro não pode ser excluído do trono por estranho ou estrangeiro, senão com manifesto desprezo das próprias leis do Lamego e com uma injustiça tão clara como a luz do meio-dia.

Almeida Garrett, publicista de mérito e redator da Constituição portuguesa de 1833, examinando a questão,5 conclui:

D. Pedro não era estrangeiro por ter aceitado das mãos de seu pai, por doação inter-vivos, uma das coroas que, ambas, devia herdar mortis-causa. Se, com efeito, as leis de Lamego excluíssem todo estrangeiro da coroa portuguesa, neste caso não seriam ainda aplicáveis porque D. Pedro não era estrangeiro.

O desembargador Antônio da Silva Lopes Rocha, em sua Análise e refutação jurídica do assento dos chamados Três Estados do Reino de Portugal de 11 de julho de 1828, depois de examinar o título 55 do Livro 2º das Ordenações Filipinas, argumenta:

São portanto estrangeiros relativamente a Portugal:

1°) os que nasceram fora dos Reinos e Senhorios deles; posto que neles morem, e residam, casem, vivam continuamente, e tenham seu domicílio e bens;

2°) os que nasceram no Reino, mas de pai estrangeiro, e de mãe natural do Reino, salvo quando o pai estrangeiro tiver seu domicílio e bens no Reino, por mais de dez anos contínuos;

3°) os que nasceram fora do Reino, de pais que, suposto fossem naturais do Reino, se ausentaram dele por sua vontade e foram viver em outro. Todos os mais, que não são compreendidos em alguma destas três classes, são pelo nosso Direito Público, e preceito daquela Lei, havidos por Naturais do Reino. E a qual destas três classes pertencerá o Senhor D. Pedro IV para ser havido por estrangeiro? Não à primeira porque ele nasceu em Portugal. Não à segunda porque é filho de pai português, que sempre viveu nos Reinos de Portugal e seus Senhorios. E não à terceira porque nem é nascido fora do Reino, nem de pai, que por sua vontade se ausentasse dele; logo, é indubitavelmente português, e natural do Reino; e eis o primeiro erro de jurisprudência, e a primeira falsidade que apresenta o Assento.6
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Concluindo, quer-nos parecer que nos achamos diante de um caso de dupla nacionalidade. Há um evidente conflito de leis. O mesmo indivíduo é proclamado e considerado nacional por duas legislações diferentes: a portuguesa e a brasileira.

Aliás, todas as naturalizações compulsórias geram casos de duplicidade de cidadania. O que se dera com a Constituição imperial foi repetido, em grande escala, pelo primeiro estatuto republicano, o qual declarou brasileiros todos os estrangeiros que, presentes no Brasil, em 15 de novembro de 1889, não manifestassem, até 24 de agosto de 1891, o desejo de conservar a nacionalidade originária. Observa Diena que, para evitar que a naturalização possa dar origem a casos de dupla nacionalidade, fora mister que nenhum Estado concedesse a aturalizaç ão aos estrangeiros que não provassem que o seu Estado de origem deixou de considerá-los cidadãos, ou deixará de reputá-los como tais, quando o ato de naturalização começar a produzir seus efeitos.7

De acordo com a nossa moderna legislação (decreto-lei no 389, de abril de 1938), inspirada na doutrina norte-americana, D. Pedro teria perdido a naturalização brasileira passados dois anos consecutivos de residência no seu país de origem.

Como, porém, as leis estão vigentes jamais cassaram a D. Pedro os direitos de cidadão brasileiro, consideremo-lo como tal. Portugal reclama-o, mas com isso nada tem o Brasil: português em Portugal, era brasileiro no Brasil.

Bem pouco lhe valeu, entretanto, a dupla nacionalidade. No Brasil, não o quiseram mais porque era português. Em Portugal, recusavam-no porque era brasileiro...

NOTAS

1. Ofício de 24 de novembro de 1831.
2. Ofício de 1o de novembro de 1831.
3. Estudo publicado na Gazeta de Lisboa, de 2 de agosto de 1828, no 128, e, mais tarde, em 1867, no Elogio histórico, do Marquês de Resende.
4. Cf. Prov. da Hist. Genealog., tomo I, liv. I, no 5, p. 9.
5. Almeida Garrett, Portugal na balança da Europa, p. 189.
6. Páginas 91 e 92. Este trabalho tem também o título de Injusta aclamação do Sereníssimo Infante D. Miguel, Londres, 1828.
7. Diritto Internazionale Publico, 2a ed., 1914, p. 272.

(As quatro coroas de D. Pedro I, 1941.)


* Advogado, diplomata e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras


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