quarta-feira, 24 de junho de 2015

Meu baiano mestre!

* Por Urda Alice Klueger


“A parir de certo momento passamos a viver mais com os mortos do que com os vivos, a ter mais amigos do lado de lá do que do lado de cá”.

“Não vou repousar em paz, não me despeço... vou adiante, vou me divertir, axé.”

Oh! Meu mestre, quanta emoção com “Navegação de Cabotagem”, lido nesta semana – toda a minha família entrou no clima do livro, eu a ler e a contar os causos, a descobrir facetas não imaginadas do grande romancista e a deliciar com elas a minha gente – o clima ficou tão grande que acabei o livro pensando em lhe escrever a respeito. Dei uma ligadinha para Salvador, para que sua secretária me informasse se o senhor estaria no Brasil, e o clima explode em alegria e júbilo: o sr. mesmo foi quem atendeu ao telefone! Deve lembrar-se, identifiquei-me como leitora de Santa Catarina – só não pode saber da minha alegria ao ouvir a sua voz de verdade, nítida como se Salvador estivesse a 1 km de distância!

O sr. se confessa, no livro, como grande leitor, e então não vou me preocupar em alongar um pouquinho esta carta. Eu também  sou uma história brasileira; por que não lhe contar? Na verdade, sou uma história onde o sr. tem uma grande influência; por sua causa estou planejando, já há tempos, mudar até de região  no Brasil, ir-me embora do Sul – é, pensando bem, sua influência na minha vida é enorme.

Sou uma brasileira de Blumenau, legítima loira de olhos azuis e de muitas procedências: tenho seis etnias misturadas, acham-me com cara de estrangeira quando saio daqui, mas sou brasileiríssima. Tenho o vício da leitura desde que fui alfabetizada, tenho o vício de inventar histórias desde que me lembro, desde os três anos de idade. Depois que cresci escrevi alguns livros: continuo a escrevê-los. Uma vez, faz alguns anos, no pique do entusiasmo com a publicação dos primeiros livros, enviei-lhe alguns, e tive a ventura indescritível de receber um seu, autografado: “Os pastores da noite”, que já lera quando adolescente, e que reli com uma paixão muito maior depois de adulta. Não vou lhe mandar livros meus agora porque sei como isso é chato: apesar de ser apenas uma pequena escritora do interior de Santa Catarina, também recebo uma porção de livros para ler de uma porção de lugares do Brasil, e os leio todos, aos bons e aos ruins, e os ruins me roubam um tempo precioso, mas não sei deixar de lê-los. Creio que aos 80 anos já terei adquirido a imunidade da idade para não ler mais o que não goste, e não vou lhe encher as medidas enviando-lhe livros de aprendiz, quando seu tempo, agora, é um tempo de fazer só o que gosta. Chega esta carta que, se me conheço, vai ficar bem grande.

Sem dúvida sofri muitas influências na minha vida, de todas as coisas, de todas as pessoas, de todas as situações, de muitos livros. Não há dúvida que os dois escritores brasileiros que mais me influenciaram chamavam-se Érico Veríssimo e Jorge Amado. Um dia, faz tantos anos, numa estrada, dez horas da noite, ouço no rádio do carro que Érico Veríssimo se fora. Chorei, meu Deus, chorei como se ele pertencesse à minha família, fiquei de luto por dias e dias – perdera um mestre, um passarinho deixou de cantar dentro de mim por muito tempo.

Restava-me Jorge Amado e toda uma sua galeria de heróis: Tereza Batista, para mim, é a grande heroína brasileira, a mais comovente, a mais perfeita, a mais emocionante (pena que na série de televisão ela ficou tão fraquinha!). Restava-me Jorge Amado, como pessoa, alguém tão distante quanto a lua, mas alguém muito vivo no que escrevia, e por causa dele aconteceu na minha vida um milagre: a Bahia.

Por sua causa, em 1988, resolvi passar o centenário da Abolição em Salvador e tentar encontrar os personagens conhecidos. Vou detalhar um pouco o que aconteceu:

Acabávamos de sair do Plano Cruzado, a grana era curtíssima, nem pensar em pegar avião para os 3.000 km de distância. Encarei 48 horas de ônibus de rodoviária para conhecer a Bahia, sem hotel reservado, sem nenhum amigo  por lá – fui ver o que acontecia. No ônibus, amizade com a boa gente baiana, amizade com dois moços que iam para lá a trabalho – um deles já conhecia a Bahia, prontificou-se a ser cicerone, acabamos indo para o mesmo hotel barato na Avenida Sete. Chegamos às sete da noite; jantamos às oito, e depois partimos para a praça Castro Alves, para a Sé, etc. – o amigo que em Salvador vivera soube até mostrar onde fora o Tabaris – às dez da noite, por escolha minha, estávamos dançando na zona da Montanha, e eu já entrara em contato com uma multidão de personagens de Jorge Amado. Gentilíssimas, as moças e a dona da zona ficaram nossas amigas, e até nos arranjaram um táxi para cairmos fora dali, de madrugada, pois os capitães d’ areia nos esperavam do lado de fora da porta, a esses turistas desavisados que eles deviam estar imaginando que nunca tinham lido Jorge Amado.

Em pouquíssimas horas tinha me apaixonado totalmente por Salvador. Fazia turismo de dia; à noite,  me juntava com meus amigos e fazíamos farra – foram umas férias que marcaram minha vida de vez, a ponto de, desde então, já ter voltado à Bahia seis vezes – devo ir de novo agora em novembro, tenho 15 dias para passar lá. Mas a coisa da Bahia é muito mais forte para mim: pretendo ir morar  lá, morar no Pelourinho, tão logo me aposente, daqui a um ano e pouco. Sei que atualmente está bastante difícil conseguir-se morar no Pelourinho, mas sei que vou conseguir um cantinho para mim lá. A intimidade que eu sinto em relação a Salvador é uma coisa única, maior, até, que a intimidade que eu sinto com a minha cidade. Senti algo parecido quando estive em Havana, mas o Brasil é o Brasil e Salvador é o meu lugar nele. E como foi que tudo isso aconteceu? Aconteceu porque um escritor chamado Jorge Amado soube contar a sua gente como ninguém mais o fez, a culpa é dele. Vê o sr. quanta influência já exerceu na minha vida? Digamos que a mudou com radicalidade, a mim que poderia ter continuado pequena burguesa blumenauense pelo resto da vida, a achar que a Oktoberfest era o máximo, que as nossas praias eram a grande curtição da vida – poderia ter vivido a vida inteira desconhecendo a magia, o mistério, o encanto dessa sua terra que eu sinto como minha. Há que se ter sensibilidade para se descobrir o quanto a Bahia é mágica; acho que a tenho.

Mas já me desviei um monte do assunto: estávamos a falar de “Navegação de cabotagem” e da minha emoção pelo livro inteiro. Volta e meia, nele, aparecia um amigo: Ascendino Leite, Oswaldo França Júnior, Korda, o meu querido Korda que já andou aqui por Blumenau e tomamos juntos quase todo o rum da cidade (França, antes de morrer tão tragicamente, também andou por aqui, e tomávamos, então, cubas-libres), sei lá, fui encontrando os amigos, fui amando cada episódio, morri de rir com as suas safadezas, descobri o outro lado do escritor, aquele que a gente não conhece, o livro é ÓTIMO! Não poderia, desta vez, deixar de lhe dizer isto, e foi então que liguei para saber se o sr. estava no Brasil.

Meu querido mestre, ainda estou toda alvoroçada por ter ouvido a sua voz sem ter sido na televisão: quando pensei que um dia isto poderia acontecer a mim? Obrigada, muito obrigada pela alegria que me deu. Acho que já deu para perceber como sou sua macaca de auditório; sinto-me dispensada de falar de cada livro e cada personagem seu, como gostaria de fazê-lo, pois senão esta carta vira um livro, e já falei antes que não quero encher as suas medidas impingindo-lhe livros para ler. Chega o tamanhão da carta.

Aqui em Blumenau o sr. tem um lugar todo de ouro no meu coração. Muito, muito obrigada por me ter dado tantas coisas lindas para ler e para viver.

Com um carinho enorme,
Urda Alice Klueger

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Um comentário:

  1. Eu também poderia dizer isso, pela admiração que tenho por Jorge Amado e pelo amor que tenho pelos seus livros e pela Bahia. "Quantas amarras, meu Capitão"? "Todas". Inesquecível livro sobre os lobos do mar, os verdadeiros e os falsos.

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