A imortalidade pelo bronze
* Por
Sousa Bandeira
Entre as tradições
convencionais que nos legou a antigüidade, figura o uso de consagrar a memória
dos grandes homens por meio de estátuas erigidas nas praças públicas.
Nos belos tempos
helênicos da arte pela arte, a escultura era apenas destinada a exprimir o
culto da forma, o divino ritmo das linhas, a majestosa harmonia de expressão e
de contornos que, ainda hoje, fazem o desespero dos acadêmicos. Conhecidas as
condições de vida dos gregos, cuja admiração pela plástica vencia a justiça, o
pudor e a virtude (o Areópago absolvendo Frinéa à vista do esplendor do seu
corpo, e permitindo que Aspásia provocasse um aborto para se não deformar com a
maternidade), bem se compreende que os antigos procurassem tão-somente traduzir
a suprema beleza do corpo humano, sem ligar grande importância à figura da
personagem, que muitas vezes era representada com as órbitas sem pupilas.
Em todo caso, ou
copiassem da natureza os seus efebos, as suas canéforas, os seus atletas, ou
quisessem imortalizá-los, transformando-os em deuses mitológicos, ou tentassem
reproduzir no mármore os seus homens notáveis, o que desejavam os helenos era
fazer uma obra de arte, segundo o cânon da época. Só na decadência procuraram a
estatuária iconográfica, que se aproxima do retrato, no sentido em que
atualmente o compreendemos.
O domínio romano
introduziu na arte outras preocupações que não as do puro ideal, e de então
para cá, através de todas as vicissitudes da civilização, ora o sentimento
religioso, ora o espírito patriótico, ora a cultura literária, ora as
pretensões científicas, tentam desviar a arte do puro campo do belo, para lhe
emprestarem outras tendências, além de observar a natureza e saber reproduzi-la
com a nota individual que o artista vai procurar nos íntimos refolhos da sua
alma.
Figure-se o antigo
templo grego com a severidade das suas linhas, a simplicidade da sua
ornamentação, a elegância da sua arquitetura, a exigüidade das suas dimensões,
e em cujo centro se levantava a estátua do Deus, a que o edifício servia de
ostensório, na frase de Taine. Basta compará-lo com as estátuas perdidas no
meio dos complicados ornatos das catedrais góticas ou bizantinas, para ver
como, com o andar dos tempos, a escultura se tornou um acessório da
arquitetura.
Ao passo que a pintura
pôde refugiar-se nas regiões da arte pura, os escultores, presos à necessidade
das encomendas, tiveram de modelar estátuas para ornamentar palácios, igrejas
ou túmulos, ou para perpetuar a memória de ilustres mediocridades. Daí a
sujeição da nobre arte à disciplina do convencional e do oficialismo, o que,
fornecendo de antemão os assuntos e a maneira de tratá-los, circunscreveu
extraordinariamente a imaginação do artista. Verdade é que para os grandes
escultores, para aqueles que atingiram às culminâncias do gênio, havia sempre
meio de revelar a sua individualidade, como aconteceu com os artistas daquele
glorioso quattrocento, que em todas as suas obras deixaram um lampejo de gênio,
ora como protesto, ora como inspiração. Bernini enchia de voluptuosas figuras
de mulheres os mausoléus dos papas, Leonardo da Vinci afirmava a Ludovico
Sforza que o cavalo da estátua eqüestre do pai deste seria a glória imortal e a
honra eterna da família. Miguelângelo selava o seu desprezo pela obra de
encomenda, colocando na capela funerária de S. Lourenço seu famoso dístico:
Grato m’é il sonno e
piú l’ésser di sasso,
Mentre che il danno e
la vergogna dura.
A democratização dos
costumes tornou, porém, muito reduzido o papel da arte de encomenda no tocante
à estatuária. Enquanto Carolus Duran ou Bonnat continuam a imortalizar na tela
os americanos ricos ou os ilustres desconhecidos do Tout Paris, da mesma forma
que Rembrandt e Rubens eternizaram os bons salsicheiros e negociantes de panos
de sua época, não há hoje muitos príncipes magníficos que se dêem ao luxo de
ter monumentos.
Tirante a escultura
funerária que, ainda hoje, pode elevar sarcófagos à áurea mediocridade, ninguém
mais se lembra de levantar estátuas senão a indivíduos que sejam considerados
notáveis. O interior das habitações não admite mais estátuas, e os Médicis de
hoje, se quiserem passar à posteridade em bronze ou em mármore, hão de se
contentar com o busto.
Eis por que tem grande
interesse a questão das estátuas, quer sob o ponto de vista social, quer sob o
ponto de vista artístico. Como só se levantam estátuas a grandes homens, o
primeiro ponto a indagar é quem se pode verdadeiramente considerar grande
homem, e qual a medida para saber se uma personagem merece efetivamente as
honras de uma estátua. Ponhamos de parte o conceito de Carlyle, definindo
grande homem "um mensageiro mandado expressamente do fundo do misterioso
infinito". Mesmo, porém, sob o ponto de vista secundário e nacional, pois
tudo é relativo, só se pode saber se um homem foi notável, depois de
compreender o seu papel na sociedade do seu tempo, a sua influência no espírito
dos contemporâneos, e o feitio posterior dos fatos sociais em que influiu.
Tanto importa dizer que, só depois de volvidos os tempos, se pode pensar em lhe
levantar uma estátua, porque, enquanto estão vivas as paixões, e ainda
persistem os efeitos dos atos, não se pode saber com segurança qual o grau de
influência que ele teve nos acontecimentos, e qual a medida de imparcialidade
na censura ou no elogio dos contemporâneos. E quanta coisa relativa à vida dos
grandes homens só vem a ser conhecida depois da morte!
O que se diz dos
homens políticos, e dos chefes de Estado, diz-se com a mesma razão dos
militares, dos artistas e dos homens de letras. A quantos altos e baixos de
reputações literárias assistiu o século passado!
No tempo em que
Auguste Comte morria ignorado, Cousin estava em todo o prestígio do ensino
oficial, e se intitulava o chefe do pensamento francês. Beranger, que foi o
poeta mais repetido da França do seu tempo, e um dos mais conhecidos do mundo
de então, hoje só tem valor histórico, ao passo que a nossa época volta a
Chateaubriand com um entusiasmo de que há poucos exemplos na história da
literatura. É por isso que grandes espíritos, como Kant, Diderot, Condorcet e
Schopenhauer, mais se preocupavam com o juízo da posteridade do que com o dos
contemporâneos. Sthendal, que morreu em 1842, consolava-se dos cem leitores que
dizia ter então, com a certeza de que em 1880 seria apreciado, mas ficava em
dúvida se em 1935 teria leitores.
Eis porque é perigoso
abusar das estátuas, e infelizmente a história aponta, mesmo nos países que se
pretendem mais civilizados verdadeiras cenas de vandalismo, em que se destruíram
monumentos à memória de homens que se tinham tornado impopulares.
Convém acrescentar
que, no momento atual da evolução artística, a escultura está atravessando um
período de transição para se emancipar das velhas tradições acadêmicas, e
entrar abertamente no domínio da vida e do movimento, realçado sobriamente pelo
símbolo, e pela invocação direta às forças vivas da natureza, como fazem os
artistas franceses da arte nova, e os americanos com as ousadas inovações de
Saint Gaudens e de Daniel French.
A estátua desaparece
diante do monumento, e a figura se perde nas alegorias referentes ao fato ou
fatos sociais que se têm em vista comemorar. Se é esta realmente a nova
orientação da arte, bem triste figura faria em cima de um pedestal aquele
Conselheiro Pacheco de que nos fala Eça de Queirós, metido na sua fúnebre
sobrecasaca, e sem um ato qualquer, além dos seus apoiados, que mereça as
honras de uma alegoria.
Tudo isto mostra
claramente como devemos ser reservados quando se trata de imortalizar pelo
bronze a memória dos homens ilustres, sem que nos deixemos levar por
entusiasmos de momento, nem por simpatias pessoais. Para podermos com segurança
elevar uma estátua a um homem ilustre é preciso afirmarmos que ele ultrapassará
os lindes da atualidade, e será conhecido dos vindouros, mesmo sem a estátua.
Quem tomará tão grave responsabilidade?
Até agora as nossas
estátuas representam homens verdadeiramente ilustres, e cuja vida correspondeu
a fatos sociais de repercussão no futuro. Enquanto é tempo, é preciso que os
poderes competentes intervenham no caso, para que se não quebre a tradição.
E já que não temos lei
sobre o assunto, conviria estabelecer um prazo, quinze anos, por exemplo,
depois da morte, a fim de se poderem levantar estátuas. Assim se deixará tempo ao
amadurecimento da idéia, ter-se-á o recuo necessário para decidir se a
personagem merecia as honras de uma estátua, e, estabelecendo uma média comum a
todos, evitar-se-ão susceptibilidades póstumas.
Para compreender, em
matéria de monumentos, quanto é arriscado fazer as coisas de afogadilho, basta
lembrar que há apenas sete anos foi lançada no Largo da Lapa a primeira pedra
da estátua de Monroe, a qual felizmente não passou disso. Os jacobinos de então
lêem hoje, com avidez, a segunda tiragem da Ilusão americana, do nosso saudoso
Eduardo Prado, cuja primeira edição era então seqüestrada pela polícia.
As estátuas são em
geral promovidas por comissões particulares, que, se até agora têm sido bem
escolhidas, como provam os resultados obtidos, bem podem para o futuro não o
ser. Em uma terra onde o gosto artístico é tão variável que tem chegado a
acafelar de branco, fingindo mármore, estátuas de mármore, e a substituir pelas
figuras atuais as águias do Palácio do Catete, é muito possível que tenhamos
qualquer dia de ver nas nossas praças algum disforme aleijão.
Não é que eu nutra a
superstição do gosto artístico oficial, pois basta conversar com qualquer dos
nossas artistas para saber quanto vale. Mas em todo o caso uma comissão só tem
que dar satisfação aos seus subscritores, ao passo que a municipalidade,
intervindo diretamente no assunto, com a permissão, com a fiscalização, e
principalmente com a limitação de prazo, sem ofender de modo algum a iniciativa
particular, assume maior responsabilidade perante a opinião pública e, ao
menos, acoberta a geração atual do severo juízo da posteridade.1
Isto foi escrito em
1901. O monstruoso monumento a Floriano Peixoto, levantado em 1910, veio provar
como eu tinha razão.
(Páginas literárias,
1917.)
*
João Carneiro Sousa Bandeira foi advogado, professor, ensaísta, diplomata e
escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.
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