sábado, 27 de junho de 2015

A imortalidade pelo bronze


* Por Sousa Bandeira


Entre as tradições convencionais que nos legou a antigüidade, figura o uso de consagrar a memória dos grandes homens por meio de estátuas erigidas nas praças públicas.

Nos belos tempos helênicos da arte pela arte, a escultura era apenas destinada a exprimir o culto da forma, o divino ritmo das linhas, a majestosa harmonia de expressão e de contornos que, ainda hoje, fazem o desespero dos acadêmicos. Conhecidas as condições de vida dos gregos, cuja admiração pela plástica vencia a justiça, o pudor e a virtude (o Areópago absolvendo Frinéa à vista do esplendor do seu corpo, e permitindo que Aspásia provocasse um aborto para se não deformar com a maternidade), bem se compreende que os antigos procurassem tão-somente traduzir a suprema beleza do corpo humano, sem ligar grande importância à figura da personagem, que muitas vezes era representada com as órbitas sem pupilas.

Em todo caso, ou copiassem da natureza os seus efebos, as suas canéforas, os seus atletas, ou quisessem imortalizá-los, transformando-os em deuses mitológicos, ou tentassem reproduzir no mármore os seus homens notáveis, o que desejavam os helenos era fazer uma obra de arte, segundo o cânon da época. Só na decadência procuraram a estatuária iconográfica, que se aproxima do retrato, no sentido em que atualmente o compreendemos.

O domínio romano introduziu na arte outras preocupações que não as do puro ideal, e de então para cá, através de todas as vicissitudes da civilização, ora o sentimento religioso, ora o espírito patriótico, ora a cultura literária, ora as pretensões científicas, tentam desviar a arte do puro campo do belo, para lhe emprestarem outras tendências, além de observar a natureza e saber reproduzi-la com a nota individual que o artista vai procurar nos íntimos refolhos da sua alma.

Figure-se o antigo templo grego com a severidade das suas linhas, a simplicidade da sua ornamentação, a elegância da sua arquitetura, a exigüidade das suas dimensões, e em cujo centro se levantava a estátua do Deus, a que o edifício servia de ostensório, na frase de Taine. Basta compará-lo com as estátuas perdidas no meio dos complicados ornatos das catedrais góticas ou bizantinas, para ver como, com o andar dos tempos, a escultura se tornou um acessório da arquitetura.

Ao passo que a pintura pôde refugiar-se nas regiões da arte pura, os escultores, presos à necessidade das encomendas, tiveram de modelar estátuas para ornamentar palácios, igrejas ou túmulos, ou para perpetuar a memória de ilustres mediocridades. Daí a sujeição da nobre arte à disciplina do convencional e do oficialismo, o que, fornecendo de antemão os assuntos e a maneira de tratá-los, circunscreveu extraordinariamente a imaginação do artista. Verdade é que para os grandes escultores, para aqueles que atingiram às culminâncias do gênio, havia sempre meio de revelar a sua individualidade, como aconteceu com os artistas daquele glorioso quattrocento, que em todas as suas obras deixaram um lampejo de gênio, ora como protesto, ora como inspiração. Bernini enchia de voluptuosas figuras de mulheres os mausoléus dos papas, Leonardo da Vinci afirmava a Ludovico Sforza que o cavalo da estátua eqüestre do pai deste seria a glória imortal e a honra eterna da família. Miguelângelo selava o seu desprezo pela obra de encomenda, colocando na capela funerária de S. Lourenço seu famoso dístico:
Grato m’é il sonno e piú l’ésser di sasso,
Mentre che il danno e la vergogna dura.

A democratização dos costumes tornou, porém, muito reduzido o papel da arte de encomenda no tocante à estatuária. Enquanto Carolus Duran ou Bonnat continuam a imortalizar na tela os americanos ricos ou os ilustres desconhecidos do Tout Paris, da mesma forma que Rembrandt e Rubens eternizaram os bons salsicheiros e negociantes de panos de sua época, não há hoje muitos príncipes magníficos que se dêem ao luxo de ter monumentos.

Tirante a escultura funerária que, ainda hoje, pode elevar sarcófagos à áurea mediocridade, ninguém mais se lembra de levantar estátuas senão a indivíduos que sejam considerados notáveis. O interior das habitações não admite mais estátuas, e os Médicis de hoje, se quiserem passar à posteridade em bronze ou em mármore, hão de se contentar com o busto.

Eis por que tem grande interesse a questão das estátuas, quer sob o ponto de vista social, quer sob o ponto de vista artístico. Como só se levantam estátuas a grandes homens, o primeiro ponto a indagar é quem se pode verdadeiramente considerar grande homem, e qual a medida para saber se uma personagem merece efetivamente as honras de uma estátua. Ponhamos de parte o conceito de Carlyle, definindo grande homem "um mensageiro mandado expressamente do fundo do misterioso infinito". Mesmo, porém, sob o ponto de vista secundário e nacional, pois tudo é relativo, só se pode saber se um homem foi notável, depois de compreender o seu papel na sociedade do seu tempo, a sua influência no espírito dos contemporâneos, e o feitio posterior dos fatos sociais em que influiu. Tanto importa dizer que, só depois de volvidos os tempos, se pode pensar em lhe levantar uma estátua, porque, enquanto estão vivas as paixões, e ainda persistem os efeitos dos atos, não se pode saber com segurança qual o grau de influência que ele teve nos acontecimentos, e qual a medida de imparcialidade na censura ou no elogio dos contemporâneos. E quanta coisa relativa à vida dos grandes homens só vem a ser conhecida depois da morte!

O que se diz dos homens políticos, e dos chefes de Estado, diz-se com a mesma razão dos militares, dos artistas e dos homens de letras. A quantos altos e baixos de reputações literárias assistiu o século passado!

No tempo em que Auguste Comte morria ignorado, Cousin estava em todo o prestígio do ensino oficial, e se intitulava o chefe do pensamento francês. Beranger, que foi o poeta mais repetido da França do seu tempo, e um dos mais conhecidos do mundo de então, hoje só tem valor histórico, ao passo que a nossa época volta a Chateaubriand com um entusiasmo de que há poucos exemplos na história da literatura. É por isso que grandes espíritos, como Kant, Diderot, Condorcet e Schopenhauer, mais se preocupavam com o juízo da posteridade do que com o dos contemporâneos. Sthendal, que morreu em 1842, consolava-se dos cem leitores que dizia ter então, com a certeza de que em 1880 seria apreciado, mas ficava em dúvida se em 1935 teria leitores.

Eis porque é perigoso abusar das estátuas, e infelizmente a história aponta, mesmo nos países que se pretendem mais civilizados verdadeiras cenas de vandalismo, em que se destruíram monumentos à memória de homens que se tinham tornado impopulares.

Convém acrescentar que, no momento atual da evolução artística, a escultura está atravessando um período de transição para se emancipar das velhas tradições acadêmicas, e entrar abertamente no domínio da vida e do movimento, realçado sobriamente pelo símbolo, e pela invocação direta às forças vivas da natureza, como fazem os artistas franceses da arte nova, e os americanos com as ousadas inovações de Saint Gaudens e de Daniel French.

A estátua desaparece diante do monumento, e a figura se perde nas alegorias referentes ao fato ou fatos sociais que se têm em vista comemorar. Se é esta realmente a nova orientação da arte, bem triste figura faria em cima de um pedestal aquele Conselheiro Pacheco de que nos fala Eça de Queirós, metido na sua fúnebre sobrecasaca, e sem um ato qualquer, além dos seus apoiados, que mereça as honras de uma alegoria.

Tudo isto mostra claramente como devemos ser reservados quando se trata de imortalizar pelo bronze a memória dos homens ilustres, sem que nos deixemos levar por entusiasmos de momento, nem por simpatias pessoais. Para podermos com segurança elevar uma estátua a um homem ilustre é preciso afirmarmos que ele ultrapassará os lindes da atualidade, e será conhecido dos vindouros, mesmo sem a estátua. Quem tomará tão grave responsabilidade?

Até agora as nossas estátuas representam homens verdadeiramente ilustres, e cuja vida correspondeu a fatos sociais de repercussão no futuro. Enquanto é tempo, é preciso que os poderes competentes intervenham no caso, para que se não quebre a tradição.

E já que não temos lei sobre o assunto, conviria estabelecer um prazo, quinze anos, por exemplo, depois da morte, a fim de se poderem levantar estátuas. Assim se deixará tempo ao amadurecimento da idéia, ter-se-á o recuo necessário para decidir se a personagem merecia as honras de uma estátua, e, estabelecendo uma média comum a todos, evitar-se-ão susceptibilidades póstumas.

Para compreender, em matéria de monumentos, quanto é arriscado fazer as coisas de afogadilho, basta lembrar que há apenas sete anos foi lançada no Largo da Lapa a primeira pedra da estátua de Monroe, a qual felizmente não passou disso. Os jacobinos de então lêem hoje, com avidez, a segunda tiragem da Ilusão americana, do nosso saudoso Eduardo Prado, cuja primeira edição era então seqüestrada pela polícia.

As estátuas são em geral promovidas por comissões particulares, que, se até agora têm sido bem escolhidas, como provam os resultados obtidos, bem podem para o futuro não o ser. Em uma terra onde o gosto artístico é tão variável que tem chegado a acafelar de branco, fingindo mármore, estátuas de mármore, e a substituir pelas figuras atuais as águias do Palácio do Catete, é muito possível que tenhamos qualquer dia de ver nas nossas praças algum disforme aleijão.

Não é que eu nutra a superstição do gosto artístico oficial, pois basta conversar com qualquer dos nossas artistas para saber quanto vale. Mas em todo o caso uma comissão só tem que dar satisfação aos seus subscritores, ao passo que a municipalidade, intervindo diretamente no assunto, com a permissão, com a fiscalização, e principalmente com a limitação de prazo, sem ofender de modo algum a iniciativa particular, assume maior responsabilidade perante a opinião pública e, ao menos, acoberta a geração atual do severo juízo da posteridade.1

Isto foi escrito em 1901. O monstruoso monumento a Floriano Peixoto, levantado em 1910, veio provar como eu tinha razão.

(Páginas literárias, 1917.)


* João Carneiro Sousa Bandeira foi advogado, professor, ensaísta, diplomata e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. 

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