Machado para todas as idades
* Por
Urariano Mota
No ano da graça de
2008, a capa da revista Nova Escola, da editora Abril, anunciou o mesmo título
destas linhas. E para deixar mais claro a quem se destinava, acrescentou na
mesma capa: “No ano dedicado ao nosso maior escritor, saiba como trabalhar seus
clássicos textos literários com alunos a partir do 3º ano”.
Ainda que vacinado
contra os enganos da imprensa Abril, não pude resistir à curiosidade. Quem
sabe?, eu me dizia, para de ser casmurro, quem sabe?, um órgão da Fundação
Victor Civita, destinado a quem educa, pode ter autonomia, ser uma boa
descoberta, porque afinal a Nova Escola não é o mesmo que a revista Veja. E
depois, a intenção era nobre: tratava-se de Machado, para todas as idades. E
fui conhecer, e aprender, de novo.
Dentro da revista, o
título da matéria era mais fino e esperançoso. Se não conseguiram o que
anunciavam, isso era outra história, mas sabiam dar um título: “Machado, um
clássico para todos”. Coisa bela. Um antegozo tomava conta da gente. Os
prolegômenos das orientações práticas aos mestres, como garçons que dispunham a
mesa com acepipes ou salgadinhos, eram ótimos. Como nesta citação da escritora
Ana Maria Machado, prêmio internacional Andersen no ano 2000: “Tentar criar o
gosto pelos livros por meio de um sistema de forçar a ler só para fazer uma
prova é uma maneira infalível de despertar o horror nos estudantes”.
Tais citações faziam a
gente passar por cima, como irrelevantes, algumas grosseiras simplificações no
resumo biográfico de Machado: que ele descendia de um “negro e uma portuguesa”,
que era “igualmente admirado pela corte e pelo povo”... Adiante. Queriamos
saber como apresentar as obras de Machado de Assis aos estudantes.
Quisemos. Queríamos.
Quereríamos. Muito. Mas entre o querer e o ser o mundo não é a vontade e sua
representação. O pessimismo do bruxo é outro. Logo em um intertítulo da matéria
– Contos para pequenos – o espírito de Machado era expulso: “Nos ciclos
iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos contos, compreensíveis
por leitores de qualquer idade e com uma história bem próxima da realidade
infantil”. O leitor leu o que entendeu. Isto: os contos são mais simples que os
romances. Claro, nessa definição não cabem Uns braços, Noite de Almirante,
Missa do Galo, por exemplo, porque neles a idade e realidade dos personagens
não são mais crianças. Mas cabem Conto de Escola e Um Apólogo, porque são
contos (narrações “mais simples”, digo) e porque são mais próximos da realidade
infantil. Se Machado de Assis fosse vivo, poderia pontuar tais explicativas com
uma enxurrada de pontos de exclamação, à semelhança das reticências que pôs no
título do capítulo 53 das Memórias Póstumas de Brás Cubas:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! .
Ora, dava vontade de
gritar, mais que escrever: contos não são mais simples que romances; contos
podem ser tão complexos quanto romances; a extensão de uma narrativa não é o
seu número de linhas; a extensão do que se lê é a duração na alma do leitor;
pelo peso, volume e número de linhas, qualquer catálogo telefônico é mais
complexo que Missa do Galo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Mas gritar é mais
próprio de um ser em desespero que de um que espera. Quem sabe se na condução
prática de apresentar o Machado “pequeno” não surgissem luzes? Para crianças do
3º ao 5º ano, o Conto de Escola era assim apresentado: “...As antíteses e os paradoxos
permitem levantar uma série de discussões em sala de aula. Um dos objetivos
dessa leitura é a distinção entre conto e outros gêneros, como apólogo, fábula
e lenda”. Exclamação primeira: em Conto de Escola o que menos importa são as
antíteses e os paradoxos! Exclamação segunda: se é que as antíteses e paradoxos
importam!! Exclamação terceira: o conto, como gênero, não é diferente do
apólogo, fábula ou lenda!!! Exclamação quarta: nesse destaque há mais que uma
pedagogia burra: há uma ignorância colossal, aliada ao desamor pela pessoa
humana!!!!
Mas não devíamos
perder a esperança. Fomos à seqüência didática para Um Apólogo, que não é um
conto, já se viu, mas estava indicado para estudantes do 4º. e do 5º. ano.
“Material necessário
- Cópias de Um Apólogo
para todos
- Livros e sites de
História sobre o Rio de Janeiro do século 19
- Caixa de costura com
agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido”.
Vocês leram o que
entenderam: “caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de
tecido”. Isso porque, no apólogo, dialogam uma agulha e uma linha, mais a
reflexão de um alfinete! Imaginem como seria a leitura das Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Cenário de caixões de defunto, funerárias, cemitérios, com pedras
tumulares trazidas para dentro da sala de aula. Vozes do além, esqueletos, e
vermes, melhor, só um, o primeiro deles em uma corrida, porque a ele se dedicam
as memórias póstumas! É bem possível que tal criatividade tenha sido já
executada em aulas mais avançadas nos colégios que se orientam pela revista
Nova Escola..
Mas não nos percamos.
Em Um Apólogo, a função da caixa de costura ficava mais clara na 3ª. etapa do
que se recomendava aos mestres : “... Deixe a caixa de costura à vista.
Pergunte às crianças se elas sabem quem serão os personagens da história. Dobre
o tecido, prenda-o com o alfinete, enfie a linha na agulha e costure...”. Isso
queria dizer: a redução dos elementos de um ...conto, apólogo!, ao acessório.
Um amesquinhamento, portanto, do universo da narrativa. Isso quer dizer,
portanto, a expulsão da moral, da ética, para em seu lugar existirem agulhas –
estão vendo a agulha? -, a linha – estão vendo a linha? -, o alfinete – veem o
alfinete? Pior, devemos ser justos, a moral que se destacava aparecia na 6ª
etapa da sequência didática: “O alfinete é o porta-voz da moral da história.
Discuta sobre ela com
os estudantes: existem pessoas que ajudam outras, abrindo caminhos. Mas,
conquistada uma vitória, quem se beneficia é aquela que foi ajudada. Pergunte o
que eles pensam sobre isso”. Que pedagogia! O que se ensinava a pretexto de
Machado?! Ora, convenhamos: não foi para formar monstrinhos de egoísmo que o
gênio da literatura escreveu Um Apólogo. Pelo contrário, ele condena tal
comportamento, pela revolta que acende na gente contra a linha. Ele próprio, na
vida real, biográfica, foi linha agradecida à agulha Manuel Antonio de Almeida,
que lhe deu ajuda, quando Machado era aprendiz de tipógrafo. Não seria essa a
moral – no sentido pedagógico, construtora de caráter de pessoas – que poderia
ser relacionada ao Apólogo? Não, porque moral se confunde a lições de moralismo
em tal pedagogia. Duvidam? Eis o que veio como uma proposta: “um debate sobre
quem era mais importante: a linha ou a agulha”.
Então chegamos ao
ápice, se é que alguma vez estivemos a meio caminho de. Para os alunos do 9º
ano levava-se o romance Dom Casmurro. Prometo ser imparcial e mudo como uma
porta ou uma parede. Apenas transcrever. Por isso vamos à sequência didática de
trabalho para o livro:
“OBJETIVO – Ampliação
da capacidade de análise literária. CONTEÚDO – Análise do foco narrativo. TEMPO
ESTIMADO – Cinco aulas. ...2ª ETAPA – Os estudantes devem terminar a leitura do
livro, se possível, sozinhos....”.
Mas devo logo terminar
o pacto. Antes da penetração do mérito, passemos ao largo do Objetivo, que em
vez de formar leitores, em lugar de acordar a paixão pela vida dos romances,
objetiva reproduzir em meninos os vícios dos adultos de Letras. Esqueçamos que
não se lê um romance para se fazer “análise literária”, ou ampliar tal análise
em... esqueçamos. Percamos de vista ainda o Conteúdo de uma “análise do foco
narrativo”, essa coisa pomposa e purgativa, que espalha o contágio de bactéria
vomitória. Mas não podemos deixar de nos deter em Dom Casmurro para o tempo estimado
de 5 aulas. Nem, muito menos, para a meta de alunos terminarem a leitura desse
livro sozinhos. Há um erro de raiz, que derruba e põe por terra as melhores
intenções do Machado clássico para todos.
Deus e o Diabo sabem,
a experiência e os anos de erros confirmam: o Machado de Assis maduro não é
compreendido pelos anos imaturos. Observem que o Dom Casmurro, para as turmas
do 9º ano, passava a ser distribuído entre jovens de idades em torno de 15
anos. Imaginem como as digressões, chistes, circunlóquios, paráfrases,
paródias, ironias, metáforas, inversões podiam ser compreendidas por meninos e
meninas em cinco aulas. Ora, cinco. Multipliquem-nas por vinte. Imaginem mais.
Como pode uma criança cheia de vigor e alegria, entender algo como
“- Meu senhor,
respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos
textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que
roemos: nós roemos.... Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos,
fosse ainda um modo de roer o roído”?
A narrativa em Dom
Casmurro é com frequência e fartura suspensa para digressões, cutiladas,
venenos, pragas e piscar malicioso de olhos que só o tempo amadurecido
responderá. Que são uma graça, um grato humor, um espírito que não se conhece até
hoje igual em língua portuguesa. “Antes lhe pagasse a lepra”, o narrador fala
em relação ao filho Ezequiel, que desconfiava ser do amigo Escobar. Para
completar no capítulo seguinte: “Não houve lepra, mas há febres por todas essas
terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de
uma febre tifóide...”. Note-se que o problema não é só de forma, de linguagem,
dos dribles, firulas e recursos de linguagem, é da visão de mundo enformada
nessa prosa. A sua persona mais usual, como narrador, é a de um homem cético,
cruel, fino e zombeteiro. Como se lembrasse, aqui e ali, “meninos, eu conheço,
eu sei aonde vai dar essa estrada”.
Daí que na
impossibilidade de uma compreensão plena, a leitura nas idades primeiras se
faça aos saltos ou às cegas. Daí que as intenções, na aparência mais
pedagógicas, reduzam a complexidade de uma prosa livre e liberta às linhas
exteriores da trama. Como se escrevia na revista, abaixo do intertítulo
Romances para os jovens : “No 7º, é viável começar a trabalhar com as grandes
histórias de Machado. Um dos títulos que se encaixa bem nessa faixa etária é
Dom Casmurro. O enredo gira em torno de Bentinho, um jovem aristocrata carioca,
que desconfia que a mulher, Capitu, cometeu adultério”. E relatava uma
experiência, que deve ser modelar na apresentação do clássico Machado aos
jovens:
“Então uma grande
discussão em aula foi armada. Cada um tinha de contar um pouco do que tinha
entendido e adotar uma posição: Capitu traiu ou não? Para defender a
‘sentença’, era necessário dar exemplos. ‘Alguns se exaltavam e sustentavam sua
teoria com muito furor’”.
O que era, guardadas
as proporções, um novo conto do bruxo, do mestre em mostrar o ridículo e o
risível. Um conto, quem sabe, com o título de Machado para todos. De enredo bem
literal: cabeças duras cortadas pela pedagogia cujo nome real era outro
machado, um substantivo comum para emburrecer jovens.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Tudo indica que não dará certo.
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