Lucrativa reverência de uma cidade a
seu filho ilustre
A cidadezinha inglesa de Stratford-upon-Avon é, hoje, mundialmente
conhecida por ser o lugar de nascimento (e de morte) de um gênio das letras e
da arte dramática: William Shakespeare. Nem sempre foi assim. Ela teve certa
importância mais de oito séculos antes do nascimento de seu filho mais ilustre –
foi fundada por volta de 700 depois de Cristo, enquanto o genial bardo nasceu
somente em 1564 – e sobreviveu razoavelmente bem nos últimos quase 400 anos após
sua morte, “esquecendo-o” na maior parte desse tempo. Todavia, alguém (não se
sabe quem e nem quando) teve a inteligência de resgatar sua memória. E hoje
essa ilustre figura é sua principal fonte de renda e de prestígio.
A cidade, atualmente, está vinculada ao teatro (e nem
poderia ser diferente) e ao turismo. Recebe cerca de três milhões de visitantes
ao ano, procedentes de todo o mundo, que gastam quantias exorbitantes de
dinheiro, alimentando seu comércio e gerando muitos recursos em termos de impostos
para a municipalidade. E o que os turistas vão ver lá? Suas belezas naturais? Ora,
ora, ora, obviamente não! Seus monumentos históricos? Até poderiam, mas não é
isso o que os atrai. Essa multidão de pessoas, dos quatro cantos do mundo,
aflui, anualmente, a Stratford-upon-Avon exclusivamente por causa de Shakespeare,
cujos restos mortais estão sepultados ali há quase 400 anos, na igreja da
Santíssima Trindade, onde o bardo foi batizado, conforme comprovam documentos
(nos dois casos).
Os visitantes querem ver as casas ligadas à vida do autor de
“Romeu e Julieta”. Tanto aquela em que ele nasceu, quanto a em que deu adeus ao
mundo, ambas devidamente restauradas e preservadas. Pudera! Eu, se tivesse
recursos financeiros para tal, também gostaria de visitá-las. Tudo o que se
refira à vida do ilustre cidadão de Stratford-Upon-Avon, que pôde ser resgatado
e preservado, é, hoje, objeto de interesse e da curiosidade de turistas e de
pesquisadores de todas as partes do mundo. Sabe-se que Shakespeare adquiriu
várias propriedades em sua terra natal, quando regressou a ela, e que as deixou
como herança à sua filha mais velha, Suzanna. Desconhece-se, porém, a razão de
não ter deixado nada para a mais nova. Deve ter tido lá seus motivos. Mas quais?
Surpreende o fato de uma cidade de mais de 1.300 anos não
haver se desenvolvido, como a quase vizinha Birmingham, por exemplo – que é a
segunda mais populosa da Inglaterra – se desenvolveu. Passados tantos séculos,
mais de um milênio, Strattford-upon-Avon conta com população incipiente, que
não chega sequer a 25 mil habitantes, de acordo com estimativas atuais. Já foi
muito mais habitada no passado, posto que não tão recente. É certo que em
várias ocasiões correu o risco de ser até mesmo riscada do mapa, em decorrência
de fulminantes e devastadoras epidemias, de cólera, de febre tifóide e de
outras tantas doenças. Inclusive suspeita-se que seu filho mais ilustre foi
vitimado por uma delas, embora não se tenha certeza se o foi e por qual.
Por pouco, muito pouco a cidade ficou privada do túmulo de
Shakespeare, um dos pontos turísticos que mais atraem multidões e provê a cidadezinha,
quase aldeia, quase vila, de tantos e indispensáveis recursos. Explico. Havia
um costume, na época da morte do bardo inglês de se esvaziar as sepulturas mais
antigas, para abrir espaço de sepultamento aos mortos mais recentes. Os parentes
do dramaturgo, porém, prevendo que isso pudesse ocorrer com ele, fizeram
inscrever na lápide sobre sua sepultura o seguinte epitáfio, que soava como uma
espécie de praga, ou de maldição:
“Bom amigo, por Jesus, abstém-te
de profanar o corpo aqui enterrado.
Bendito seja o homem que respeite estas
pedras,
e maldito o que remover meus ossos”.
Não se sabe se por causa disso ou se por mera coincidência o
túmulo de Shakespeare não foi tocado, mesmo no longuíssimo período em que ele
foi completamente esquecido pelo mundo e por seus concidadãos. Graças a isso,
Stratford-upon-Avon fatura tão alto, anualmente, com o turismo. A sepultura do
dramaturgo, na milenar igreja da Santíssima Trindade, é, reitero, um dos locais
mais visitados dessa bucólica cidade inglesa, famosíssima no mundo todo, a
despeito de sua pequenez. Seu túmulo é identificado por uma estátua dele, que
parece até estar viva de tão perfeita, cujo escultor ninguém identificou, junto
à qual, há muito tempo, se estabeleceu uma espécie de tradição. A cada ano, na
data da morte de Shakespeare (que a maioria considera, também, como sendo,
coincidentemente, a de seu nascimento, 23 de abril) é colocada uma nova pena de
ave na mão direita da escultura. Esse objeto, recorde-se, era a “caneta” da época.
Que bom seria se todas as cidades do mundo, não importa seu
tamanho ou sua população, fizessem como Stratford-Upon-Avon faz com seu filho
mais ilustre, e reverenciassem a memória de suas personalidades locais que
merecessem ser reverenciadas. E mais, se investissem pesado em marketing, para
atrair as atenções gerais para tal reverência. Certamente não se trataria de
despesa, como muitos poderiam argumentar, mas de inteligente investimento, com
alta probabilidade de compensador retorno financeiro, ditado pela atração
turística. Baltimore, no Estado de Maryland, nos Estados Unidos, faz isso em
relação a Edgar Alan Poe. Taubaté também, embora sem tanta divulgação, com a
memória de Monteiro Lobato. Mas... deixa pra lá!!!
Boa leitura.
O Editor.
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Poderíamos tentar ser um povo sem memória, mas nem tanto.
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