Foto: Theatro Municipal de São João da Boa Vista
Monochrome
* Por
Marcelo Sguassábia
Tento derramar cores
sobre a foto de família: o resultado soa falso. Uma coisa desalmada, sem pulso
e temperatura. Cria-se uma inadequação, um ar postiço, não caberia cor ali de
forma alguma. O mundo de 1941 da foto com margem branca e cantoneira, tirada de
um álbum de madeira marchetada, é natural e necessariamente em preto e branco.
Há propósito, graça e sentido em ser assim.
No entanto, quem
estava lá posando para a pesada câmera, num vestido estampado e eternizado no
clique em paupérrima escala de cinza, jura que o mundo era mais colorido que
hoje. As cores mais vivas e intensas, flores e gramados sem a fuligem - essa
sim monocromática - das chaminés e escapamentos. Sim, as hoje muito velhas
gentes garantem que o branco e preto das fotos não fazia justiça ao
variadíssimo pantone da vida real. Por mais que os ternos de linho fossem
impecavelmente brancos, e as largas saias das beatas de respeito
invariavelmente negras, havia cores intensas por todos os lados.
A mulher do vestido
estampado, enquanto ensaia a melhor posição para o clique, flerta com os olhos
azuis do moço do reluzente Cadillac verde, tinindo debaixo do sol. Logo mais, à
noite, a fila no cinema dobra o quarteirão para assistir Cidadão Kane. Honrando
o preto e branco da obra-prima, só mesmo o preto e branco da plateia. Não pode
ser de outra maneira, gente colorida assistindo seria profanar o monumento de
celuloide.
Há foto de cemitério
na penúltima página do álbum marchetado. O lugar onde faz mais sentido ainda o
black and white se bastando, o preto dos enlutados e o branco do mármore de
carrara dos túmulos. Complementam-se divinamente o pesar dos que ficam e a
leveza angelical dos que se foram. Negra é a escuridão embaixo da terra, alva é
a asa de anjo, promessa da Bíblia e do padre.
Aquele retrato do
Guevara de olhar posto em horizonte incerto, Carlitos em filme ou foto,
Einstein mostrando a língua, o beijo do final da guerra em Times Square:
qualquer cor banalizaria instantaneamente esses monumentos imagéticos, tiraria
deles a autoridade mítica.
Decerto que a cor é
uma ilusão do olho, que a Terra de azul não tem nada, é quando muito um ponto
branco e minúsculo no negro imenso do cosmo. A mim já está mais do que claro
que a madeira marchetada, do álbum aqui no colo, tem seus tons amarronzados só
dentro dessa cabeça. Incerta massa cinzenta, de cinzentos pensamentos que ficam
indo e voltando enquanto não viram cinzas.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Colorizar uma foto qualquer já é uma violência. Fazer isso numa imagem icônica então, é crime. Ainda que o mundo seja colorido, a foto sem cor merece permanecer assim, em P&B. Só posso concordar com sua viagem no tempo.
ResponderExcluir