quarta-feira, 10 de junho de 2015

A desterritorialização e a perda de sentido dos excluídos. A reterritorialização a partir das cidades. (2)


* Por Urda Alice Klueger


(CONTINUAÇÃO)


2. REFLETINDO

Esta distância existente entre as diversas classes sociais das cidades, no caso, notadamente a dos excluídos, faz-nos pensar no que escreveu Doxiadis (1966, s/p), “Enquanto nossas cidades crescem, a distância entre os homens aumenta”[8].

Milton Santos vai se manifestar a respeito do funcionamento das nossas cidades de hoje, a cidade que vai como que “engolir”, e ao mesmo tempo servir de abrigo aos desterritorializados pela pobreza e que já não encontram um sentido para a vida, e que caminham pelas nossas estradas:

 “A própria cidade converteu-se num meio e num instrumento de trabalho, num utensílio como a enxada na aurora dos tempos sociais. Instrumento de trabalho sui generis, pois sua matéria é dada pelo próprio trabalhador. Quanto mais o processo produtivo é complexo, mais as forças materiais e intelectuais necessárias ao trabalho são desenvolvidas, e maiores são as cidades. Mas a proximidade física não elimina o distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não funcionais. A proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura social. A crescente separação entre as classes agrava a distância social. Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros.[9]


Assim, os homens que caminham em todas as direções por este mundo afora e que têm por abrigo as cidades na sua busca de sentido e de reterritorialização têm-na, na verdade, em condições precárias. Ao mesmo tempo em que nas cidades encontram a ajuda necessária para a sobrevivência, são também marginalizados provavelmente ainda mais do que um dia já o foram na sua cidade ou local de origem – párias das estradas, escorraçados da área rural, os caminhantes das estradas ocupam nas cidades a maior distância social possível das classes mais altas.

Mesmo assim, a cidade continua sendo o seu abrigo, a sua busca de sentido e de território, o único abrigo real que conseguem avistar. Segundo Sartre (1960, p. 427-428), “o objeto reúne os esforços dos homens em sua unidade desumana”[10], e não se torna muito difícil comprovar tal coisa em se tratando dos mais desvalidos, que vivem precárias vidas em precários lugares dos aglomerados humanos aos quais chamamos de cidades.

Relacionado com o processo de desenvolvimento que envolve o modo de produção capitalista e a cidade, o território produzido pelo homem assume características complexas que guardam as evidências do desenvolvimento contraditório, combinado e nos dias atuais, mais complexos. xxxxxxx

Essas evidências podem ser analisadas a partir das diversas categorias geográfias que procuram compreender a realidade produzida pela relação entre o espaço e a sociedade.

A cidade é o locus onde se expressam todas as nossas contradições sociais (MORAGAS, 2006). É a dialética do estar vivo, do querer e do não querer. Parece-nos que na cidade todos os problemas são evidenciados, viram notícias, todas as mazelas sociais são mais profundas, pois no campo elas também existem, mas na cidade há um caráter próprio dela que é o de aglomeração, enquanto no campo é o da dispersão.

De acordo com Santos (1997, p.22) apud Ribas (1998), “os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros”, gerando com isso uma certa passividade em relação às decisões que atingem diretamente sua vida. Nas grandes metrópoles isso vem ocorrendo com maior ênfase, dando lugar muito mais ao consumidor do que ao cidadão.

A monumentalidade, quando pensamos a cidade, atua na dimensão do simbólico, dando visualidade, representando e valorizando as idéias, ações e concepções daqueles que a utilizam. Ela tem sempre uma razão de ser, a qual pode estar bem explicitada ou não. A monumentalidade se difunde e se concentra, como diz Lefebvre, nas mais variadas formas, e aqueles que habitam as cidades, especialmente (mas não unicamente) os grandes centros e capitais, com ela convivem e a admiram ou odeiam, por ela são intimidados, e, às vezes, a ela tentam desafiar (RODRIGUES, 2001).

O ser humano se comporta de acordo com suas crenças, valores, significados, modos de pensar e de agir, conforme o seu convívio com a família, com o lugar em que nasce e cresce, com o mundo em que vive e com a aprendizagem durante a formação escolar. Segundo Moreira (2005, p. 157):xxxx

[...] as crenças cognitivas são construídas a partir da informação que a pessoa possui, e é definida como a convicção de algo que pode ser acompanhado de elementos emotivos e/ou afetivos. As atitudes são formadas a partir das crenças adquiridas e da experiência pessoal que estão acomodadas por elementos emotivos que auxiliam na criação de sentimentos positivos ou negativos, dependendo da situação.

Há vários fatores que podem influenciar uma pessoa no modo de ver as coisas, entre eles a cultura, idade e a diferença de sexos. Homens e mulheres percebem diferentes aspectos do meio ambiente e têm atitudes diferentes em relação a eles (TUAN, 1980). Podemos citar, como exemplo, a diferença de mentalidade do casal na sociedade ocidental. A mente da dona de casa em relação aos cuidados com as crianças pequenas, provavelmente é diferente da mentalidade do seu marido.

Em relação às definições de percepção, sobretudo numa perspectiva socioambiental, que amplia o entendimento da visão de mundo dos outros, encontramos interpretações de vários autores, mas para Tuan (1980, p. 4), percepção é:

Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura.

Ferrara (1999, p. 264) faz a seguinte definição sobre percepção, ajudando no entendimento e visão de mundo socioambiental, como no caso dos caminhantes:

Portanto, percepção ambiental é a forma de conhecimento, processo ativo de representação que vai muito além do que se vê ou penetra pelos sentidos, mas é uma prática representativa de claras conseqüências sociais e culturais. [...]  supõe uma elaboração de informações que ocorrem no interior do indivíduo a partir de pequenas experiências, porém são apenas possíveis e, nesse sentido, não podem ser jamais previstas ou programadas.

Mas devido o curto tempo para incorporações referentes a essas interessantes leituras para a análise proposta por esse artigo, o olhar passa apenas pela possibilidade e por esse breve esboço referencial, pois a mesma exigiria profunda leitura dos autores e posterior incorporação dos discursos dos caminhantes. Dessa forma, brevemente é apresentado o olhar sobre eles e sobre Antônio, deixando para um trabalho futuro, a possibilidade de verificação da teoria com mais informações que podem ser colhidas, pois eles, os caminhantes, continuarão pelas estradas, seja de Santa Catarina, do Paraná ou de qualquer outro lugar do Brasil e do Mundo.

Mas sabemos das limitações de tais leituras, as que envolvem a percepção, assim como outras análises possíveis sobre outros autores, pois ampliando um pouco a discussão de percepção, Oliveira (2002, p. 1992), diz que “a percepção é essencialmente egocêntrica e ligada a uma certa posição do sujeito percebedor em relação ao objeto, ao percepto, sendo estritamente individual e incomunicável (senão através da linguagem ou do desenho)”; no caso pretendido, se fez análise por meio dos discursos, ou seja, dos diálogos produzidos a partir do contato com caminhantes e em especial com Antônio.

Não podemos deixar de citar algo sobre aquilo que diz respeito às representações sociais, enquanto possibilidade de análise da percepção, Moscovici (2005, p. 9), estabelece que, “em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um grupo específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais estão engajadas em projetos definidos”.

Muitas leituras científicas poderíamos ainda fazer sobre a vida dos caminhantes e até mesmo dos andarilhos nas cidades e no meio rural, inclusive abrir um novo trabalho sobre a violência por eles vivida, mas há que se terminar este trabalho, mostrando apenas um exemplo da violência vivida por estes cidadãos (in)visíveis no cotidiano, que dá uma dimensão maior a esta questão, sobretudo a policial, hoje mais urbana do que rural:

“Uma voluntária de um grupo religioso chegou a garantir para a reportagem que integrantes “dessas corporações costumam se dirigir a esses moradores já batendo. E se fazem isso na nossa frente, sem nem respeitar a gente, imagina na nossa ausência”, observou, temendo dar mais informações. “Nós também estamos na madrugada ajudando aqueles que vivem em situação de rua e corremos riscos. A gente prefere não entrar no assunto. Já temos problemas demais”, enfatiza.”[11]

Arlete Moises Rodrigues (2007, s/p) nos permite concluir e abrir novas questões, em A cidade como direito, onde abre diversas vertentes possíveis para se caminhar analiticamente sobre o que trouxemos neste artigo, ela coloca que:

“Para analisar a utopia da “cidade como direito”, apontamos alguns pressupostos sobre utopia, heterotopias, topias, direito à cidade, cidade/urbano, movimentos sociais, desigualdades socioespaciais, cidade-mercadoria, com seus vários significantes,  significados, conteúdos, definições, noções, conceitos, desigualdade sociais, econômicas, sócio-espaciais. O conhecimento cientifico é incompleto,  inconcluso, o que segundo Morin (1996) é próprio da ciência. Destacamos, com fundamental,  a incompletude da importância do espaço.”


Mesmo sendo uma utopia, acreditamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, para todos os cidadãos, aqui mais do que incluído o caminhante e o andarilho.


CONCLUSÃO

            Apesar dos muitos testemunhos dados pela Literatura e pela História ao longo da vida da Humanidade sobre a existência dos desvalidos deste mundo caminhando em direção às cidades e se internando nelas como a proteção mais eficaz, houve um período recente da nossa História em que eles eram em muito menor quantidade, pelo menos no meio ambiente onde vivíamos. Referimo-nos às décadas de 1970/80. Já tínhamos automóvel, então, e andávamos por muitas estradas, sendo que nosso senso de observação sempre foi bastante aguçado para estar atenta ao nosso entorno. É possível que talvez fosse igual a quantidade dos caminhantes sem bagagem física pelos caminhos deste mundo, e que se tornassem menos visíveis devido ao hábito de se pedir e se dar carona que então vigia, hábito esse que nos traz à presença de um tipo de solidariedade que ora foi olvidada e de um sentimento de segurança que então existia.
       
       Parece-nos, no entanto, que a implantação do neoliberalismo foi um marco básico para que a atual realidade se concretizasse: o ser humano, acossado pelo grande Capital, tanto deixou de ter confiança no seu semelhante quanto “esqueceu” a solidariedade que o fazia dividir o seu transporte particular com os que pouco ou nada têm de material, com os que já não tem território ou sentido.

        O fato é que hoje a realidade dos caminhantes que sequer perdem tempo pedindo carona e dos motoristas que tem um grande medo de serem assaltados se casou e, acreditamos, tais fatos somados à nefanda implantação do neoliberalismo criou esta nova situação onde seres humanos perpassam pelas estradas quase que com invisibilidade, como um carreiro de formigas ao qual não se presta atenção, seguindo em direção às cidades onde poderão se internar e voltar a compor comunidades de sobrevivência, redes de mútuo apoio, reterritorializações e buscas de sentido, sobreviverem de novo como indivíduos, deixando de lado o estigma de formigas invisíveis que caminham ao lado dos nossos automóveis como se já não existissem.

Trazendo novamente um olhar utópico, acreditamos e reafirmamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, assim como o direito à vida e à diversidade para todos os cidadãos, aqui incluindo outra vez o caminhante e o andarilho. Mas a realidade é um pouco mais dura. No concluir deste trabalho, nos vem a notícia de que em Maceió/AL, vive-se uma onda de assassinatos de moradores de rua, onde há a desconfiança de que por trás dos assassinatos esteja um grupo de extermínio, que estaria realizando uma "limpeza social" nas ruas da cidade.[12] Mesmo com essa notícia, mantemos o entendimento de que a utopia é um sonho possível e que em breve tais notícias não sejam mais corriqueiras e que a cidade seja, de fato, de todos.

REFERÊNCIAS

FERRARA, L. D. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1999.
FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio: Global, 2003
GOLON, Anne e Serge. Angélica, a marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: FTD, 2003.
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
MORAGAS, R. A. R. Concepção de cidade/urbano no ensino de Geografia: elementos para análise. Jataí (GO). Revista Eletrônica de Educação do Curso de Pedagogia do Campus Avançado de Jataí da Universidade Federal de Goiás, vol. I, n. 2, jan./jul., 2006.
MOREIRA, A. L. O.  A floresta: um referencial para a percepção e educação ambiental. 2005. 218 f. Tese (Doutorado)– Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005.
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em psicologia social. Tradução: Pedrinho A. Guaresche. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
OLIVEIRA, Lívia. Ainda sobre percepção, cognição e representação em Geografia. In. Mendonça, F. A. & Kozel, S (Orgs.). Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002.
RIBAS, R. A. Subutilização dos espaços públicos de lazer: o caso do parque das andorinhas - Presidente Prudente-SP. Presidente Prudente,1998. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista.
RODRIGUES, A. M. A cidade como direito. Porto Alegre: IX Coloquio Internacional de Geocrítica. Los problemas del mundo actual.
soluciones y alternativas desde la geografía y las ciencias sociales
. UFRGS, 28 de mayo - 1 de junio de 2007.
RODRIGUES, C. M. Cidade, monumentalidade e poder. Uberlândia: GEOgraphia, vol. 3, n. 6, 2001.
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: EDUSP, 2009. 
STEINBECK, John. As vinhas da ira. Lisboa: Livros do Brasil, 2007.
TUAN, Y-F. Topofolia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.
WWW.google.com.br , consultado em 24 e 25.07.10.


Trabalho apresentado à Disciplina de Multiterritorilidade, modernidade-mundo e vínculos territoriais, ministrada pelo Prof. Dr. Álvaro Luiz Heidrich, do Programa de Pós-graduação em Geografia (Doutorado), da Universidade Federal do Paraná.


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).




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