A desterritorialização e a perda de sentido dos
excluídos. A reterritorialização a partir das cidades. (2)
* Por Urda Alice Klueger
(CONTINUAÇÃO)
2. REFLETINDO
Esta
distância existente entre as diversas classes sociais das cidades, no caso,
notadamente a dos excluídos, faz-nos pensar no que escreveu Doxiadis (1966,
s/p), “Enquanto nossas cidades crescem, a distância entre os homens aumenta”[8].
Milton
Santos vai se manifestar a respeito do funcionamento das nossas cidades de
hoje, a cidade que vai como que “engolir”, e ao mesmo tempo servir de abrigo
aos desterritorializados pela pobreza e que já não encontram um sentido para a
vida, e que caminham pelas nossas estradas:
“A própria cidade converteu-se
num meio e num instrumento de trabalho, num utensílio como a enxada na aurora
dos tempos sociais. Instrumento de trabalho sui generis, pois sua
matéria é dada pelo próprio trabalhador. Quanto mais o processo produtivo é
complexo, mais as forças materiais e intelectuais necessárias ao trabalho são
desenvolvidas, e maiores são as cidades. Mas a proximidade física não elimina o
distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não
funcionais. A proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura
social. A crescente separação entre as classes agrava a distância social. Os
homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas,
mas estão isolados uns dos outros.[9]
Assim,
os homens que caminham em todas as direções por este mundo afora e que têm por
abrigo as cidades na sua busca de sentido e de reterritorialização têm-na, na
verdade, em condições precárias. Ao mesmo tempo em que nas cidades encontram a
ajuda necessária para a sobrevivência, são também marginalizados provavelmente
ainda mais do que um dia já o foram na sua cidade ou local de origem – párias
das estradas, escorraçados da área rural, os caminhantes das estradas ocupam
nas cidades a maior distância social possível das classes mais altas.
Mesmo
assim, a cidade continua sendo o seu abrigo, a sua busca de sentido e de
território, o único abrigo real que conseguem avistar. Segundo Sartre (1960, p.
427-428), “o objeto reúne os esforços dos homens em sua unidade desumana”[10], e não se torna muito difícil comprovar
tal coisa em se tratando dos mais desvalidos, que vivem precárias vidas em
precários lugares dos aglomerados humanos aos quais chamamos de cidades.
Relacionado
com o processo de desenvolvimento que envolve o modo de produção capitalista e
a cidade, o território produzido pelo homem assume características complexas
que guardam as evidências do desenvolvimento contraditório, combinado e nos
dias atuais, mais complexos. xxxxxxx
Essas
evidências podem ser analisadas a partir das diversas categorias geográfias que
procuram compreender a realidade produzida pela relação entre
o espaço e a sociedade.
A
cidade é o locus onde
se expressam todas as nossas contradições sociais (MORAGAS, 2006). É a
dialética do estar vivo, do querer e do não querer. Parece-nos que na cidade
todos os problemas são evidenciados, viram notícias, todas as mazelas sociais
são mais profundas, pois no campo elas também existem, mas na cidade há um caráter
próprio dela que é o de aglomeração, enquanto no campo é o da dispersão.
De
acordo com Santos (1997, p.22) apud Ribas (1998), “os homens vivem cada vez
mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns
dos outros”, gerando com isso uma certa passividade em relação às decisões que
atingem diretamente sua vida. Nas grandes metrópoles isso vem ocorrendo com
maior ênfase, dando lugar muito mais ao consumidor do que ao cidadão.
A
monumentalidade, quando pensamos a cidade, atua na dimensão do simbólico, dando
visualidade, representando e valorizando as idéias, ações e concepções daqueles
que a utilizam. Ela tem sempre uma razão de ser, a qual pode estar bem
explicitada ou não. A monumentalidade se difunde e se concentra, como diz
Lefebvre, nas mais variadas formas, e aqueles que habitam as cidades,
especialmente (mas não unicamente) os grandes centros e capitais, com ela
convivem e a admiram ou odeiam, por ela são intimidados, e, às vezes, a ela
tentam desafiar (RODRIGUES, 2001).
O ser humano se
comporta de acordo com suas crenças, valores, significados, modos de pensar e
de agir, conforme o seu convívio com a família, com o lugar em que nasce e
cresce, com o mundo em que vive e com a aprendizagem durante a formação
escolar. Segundo Moreira (2005, p. 157):xxxx
[...] as crenças cognitivas
são construídas a partir da informação que a pessoa possui, e é definida como a
convicção de algo que pode ser acompanhado de elementos emotivos e/ou afetivos.
As atitudes são formadas a partir das crenças adquiridas e da experiência
pessoal que estão acomodadas por elementos emotivos que auxiliam na criação de
sentimentos positivos ou negativos, dependendo da situação.
Há vários fatores
que podem influenciar uma pessoa no modo de ver as coisas, entre eles a
cultura, idade e a diferença de sexos. Homens e mulheres percebem diferentes
aspectos do meio ambiente e têm atitudes diferentes em relação a eles (TUAN,
1980). Podemos citar, como exemplo, a diferença de mentalidade do casal na sociedade
ocidental. A mente da dona de casa em relação aos cuidados com as crianças
pequenas, provavelmente é diferente da mentalidade do seu marido.
Em
relação às definições de percepção, sobretudo numa perspectiva socioambiental,
que amplia o entendimento da visão de mundo dos outros, encontramos
interpretações de vários autores, mas para Tuan (1980, p. 4), percepção é:
Percepção é tanto a resposta dos
sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos
fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra
ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a
sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão
enraizadas na cultura.
Ferrara
(1999, p. 264) faz a seguinte definição sobre percepção, ajudando no
entendimento e visão de mundo socioambiental, como no caso dos caminhantes:
Portanto, percepção ambiental é a forma
de conhecimento, processo ativo de representação que vai muito além do que se
vê ou penetra pelos sentidos, mas é uma prática representativa de claras
conseqüências sociais e culturais. [...] supõe uma elaboração de
informações que ocorrem no interior do indivíduo a partir de pequenas
experiências, porém são apenas possíveis e, nesse sentido, não podem ser jamais
previstas ou programadas.
Mas
devido o curto tempo para incorporações referentes a essas interessantes
leituras para a análise proposta por esse artigo, o olhar passa apenas pela
possibilidade e por esse breve esboço referencial, pois a mesma exigiria
profunda leitura dos autores e posterior incorporação dos discursos dos
caminhantes. Dessa forma, brevemente é apresentado o olhar sobre eles e sobre
Antônio, deixando para um trabalho futuro, a possibilidade de verificação da
teoria com mais informações que podem ser colhidas, pois eles, os caminhantes,
continuarão pelas estradas, seja de Santa Catarina, do Paraná ou de qualquer
outro lugar do Brasil e do Mundo.
Mas
sabemos das limitações de tais leituras, as que envolvem a percepção, assim
como outras análises possíveis sobre outros autores, pois ampliando um pouco a
discussão de percepção, Oliveira (2002, p. 1992), diz que “a percepção é essencialmente
egocêntrica e ligada a uma certa posição do sujeito percebedor em relação ao
objeto, ao percepto, sendo estritamente individual e incomunicável (senão
através da linguagem ou do desenho)”; no caso pretendido, se fez análise por
meio dos discursos, ou seja, dos diálogos produzidos a partir do contato com
caminhantes e em especial com Antônio.
Não
podemos deixar de citar algo sobre aquilo que diz respeito às representações
sociais, enquanto possibilidade de análise da percepção, Moscovici (2005, p.
9), estabelece que, “em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e,
como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um
grupo específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas
quais estão engajadas em projetos definidos”.
Muitas
leituras científicas poderíamos ainda fazer sobre a vida dos caminhantes e até
mesmo dos andarilhos nas cidades e no meio rural, inclusive abrir um novo
trabalho sobre a violência por eles vivida, mas há que se terminar este
trabalho, mostrando apenas um exemplo da violência vivida por estes cidadãos
(in)visíveis no cotidiano, que dá uma dimensão maior a esta questão, sobretudo
a policial, hoje mais urbana do que rural:
“Uma voluntária de um
grupo religioso chegou a garantir para a reportagem que integrantes “dessas
corporações costumam se dirigir a esses moradores já batendo. E se fazem isso
na nossa frente, sem nem respeitar a gente, imagina na nossa ausência”,
observou, temendo dar mais informações. “Nós também estamos na madrugada
ajudando aqueles que vivem em situação de rua e corremos riscos. A gente
prefere não entrar no assunto. Já temos problemas demais”, enfatiza.”[11]
Arlete
Moises Rodrigues (2007, s/p) nos permite concluir e abrir novas questões, em A
cidade como direito, onde abre diversas vertentes
possíveis para se caminhar analiticamente sobre o que trouxemos neste artigo,
ela coloca que:
“Para analisar a utopia da “cidade como
direito”, apontamos alguns pressupostos sobre utopia, heterotopias, topias,
direito à cidade, cidade/urbano, movimentos sociais, desigualdades socioespaciais,
cidade-mercadoria, com seus vários significantes, significados,
conteúdos, definições, noções, conceitos, desigualdade sociais, econômicas,
sócio-espaciais. O conhecimento cientifico é incompleto, inconcluso, o
que segundo Morin (1996) é próprio da ciência. Destacamos, com
fundamental, a incompletude da importância do espaço.”
Mesmo
sendo uma utopia, acreditamos que o direito a cidade é algo fundamental e a
grande luta deste século, para todos os cidadãos, aqui mais do que incluído o caminhante
e o andarilho.
CONCLUSÃO
Apesar dos muitos testemunhos dados
pela Literatura e pela História ao longo da vida da Humanidade sobre a
existência dos desvalidos deste mundo caminhando em direção às cidades e se
internando nelas como a proteção mais eficaz, houve um período recente da nossa
História em que eles eram em muito menor quantidade, pelo menos no meio
ambiente onde vivíamos. Referimo-nos às décadas de 1970/80. Já tínhamos
automóvel, então, e andávamos por muitas estradas, sendo que nosso senso de
observação sempre foi bastante aguçado para estar atenta ao nosso entorno. É
possível que talvez fosse igual a quantidade dos caminhantes sem bagagem física
pelos caminhos deste mundo, e que se tornassem menos visíveis devido ao hábito
de se pedir e se dar carona que então vigia, hábito esse que nos traz à
presença de um tipo de solidariedade que ora foi olvidada e de um sentimento de
segurança que então existia.
Parece-nos,
no entanto, que a implantação do neoliberalismo foi um marco básico para que a
atual realidade se concretizasse: o ser humano, acossado pelo grande Capital,
tanto deixou de ter confiança no seu semelhante quanto “esqueceu” a
solidariedade que o fazia dividir o seu transporte particular com os que pouco
ou nada têm de material, com os que já não tem território ou sentido.
O
fato é que hoje a realidade dos caminhantes que sequer perdem tempo pedindo
carona e dos motoristas que tem um grande medo de serem assaltados se casou e,
acreditamos, tais fatos somados à nefanda implantação do neoliberalismo criou
esta nova situação onde seres humanos perpassam pelas estradas quase que com
invisibilidade, como um carreiro de formigas ao qual não se presta atenção,
seguindo em direção às cidades onde poderão se internar e voltar a compor
comunidades de sobrevivência, redes de mútuo apoio, reterritorializações e
buscas de sentido, sobreviverem de novo como indivíduos, deixando de lado o
estigma de formigas invisíveis que caminham ao lado dos nossos automóveis como
se já não existissem.
Trazendo
novamente um olhar utópico, acreditamos e reafirmamos que o direito a cidade é
algo fundamental e a grande luta deste século, assim como o direito à vida e à
diversidade para todos os cidadãos, aqui incluindo outra vez o caminhante e o
andarilho. Mas a realidade é um pouco mais dura. No concluir deste trabalho,
nos vem a notícia de que em Maceió/AL, vive-se uma onda de assassinatos de
moradores de rua, onde há a desconfiança de que por trás dos assassinatos
esteja um grupo de extermínio, que estaria realizando uma "limpeza
social" nas ruas da cidade.[12] Mesmo com essa notícia, mantemos o entendimento de
que a utopia é um sonho possível e que em breve tais notícias não sejam mais
corriqueiras e que a cidade seja, de fato, de todos.
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Trabalho apresentado à Disciplina de Multiterritorilidade,
modernidade-mundo e vínculos territoriais, ministrada pelo Prof. Dr. Álvaro
Luiz Heidrich, do Programa de Pós-graduação em Geografia (Doutorado), da
Universidade Federal do Paraná.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
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