segunda-feira, 10 de junho de 2013

Estátua sem reverência

* Por Daniel Santos


Os pombos começaram a chegar... sabe-se lá quando! Vinham de longe, na maioria brancos como lencinhos de adeus, passavam por cima do telhado e desciam no terreno dos fundos, onde há tempos o velho vivia.

De início, ele morava na casa com a esposa, mas esta faleceu, a filha casou, deu-lhe netos e apossou-se do imóvel, enquanto o verdadeiro dono se afastava por sentir-se inútil e também porque o escorraçavam.

Enfim, cansado de tanto azedume, caras feias, muxoxos e maus-bofes, retirou-se para o quarto do anexo, de onde saía apenas para o banho e refeições, e assim mesmo se lhe abriam a porta traseira da casa.

Foi mais ou menos por aí que os pombos começaram a aparecer, um após outro, e não se empoleiravam só no varal: também nos ombros do senhor, cada vez mais rígidos pela idade, eles esperavam o grande dia.

A família tudo espionava pelo basculante da cozinha, mais intrigada com as aves do que com o destino do velho quase esquecido. Foi então que ele surgiu, súbito, no centro do terreno, com a melhor roupa do seu baú.

De início, o susto. Depois, a vontade tardia de reavê-lo. Mas sua rigidez terminal fixara a pose definitiva de estátua. Ou quase. Porque tinha pombos, tinha fraque, tinha data, mas aguardava ainda alguma reverência.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


Um comentário:

  1. Espantada com o vivo há muito morto e rígido com seus pombos. Só faltavam o fraque e a data. Agora não mais.

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