sexta-feira, 14 de junho de 2013

Eldorado para todos

* Por Urariano Mota

As imobiliárias, as construtoras, são irônicas e bárbaras em um só movimento quando põem nomes nas suas armadilhas, mais conhecidas pela alcunhas de  Residenciais e Edifícios. Não têm escrúpulos nem limites. Vão de Leonardo da Vinci, de Praia do Sol, de Costa Azul a Paraíso Tropical. Ou de Morada dos Deuses, de Céu de Anil a Recanto das Acácias, e a tudo o quanto o cérebro do lucro inventar. Existe toda uma poética de logro e embuste, de roubo e furto, para enganar incautos e necessitados. Que chegam, que caem, sempre caem, pois a carência de um lar, de uma casa, é um desejo que resiste a todas as ilusões.

O recente caso do Conjunto Residencial Eldorado, de 14 prédios juntos no Recife, é ilustrativo dos edifícios de nomes belos que se revelam trágicos. A começar por sua localização. A partir do bairro onde precário se plantou houve uma primeira vitória da imobiliária e corretores, que levaram bem na lábia os compradores das arapucas. O Eldorado foi construído, mal e porcamente construído como se viu depois, em um subúrbio mais conhecido por Água Fria, mas as notícias e moradores mais bem nascidos (pois sempre há nobres nos que se envergonham da pobreza) teimam em chamar de Arruda, como se houvesse um salto de qualidade, quem sabe de renascimento, do Arruda para Água Fria.

E para quê tanta distinção, se o destino de todos nós é comum, amigos? As primeiras notícias anunciaram que a fachada do prédio, de um só em todo o Eldorado das 14 construções de ouro, havia cedido e os moradores correram às pressas para a rua. A desgraça veio com um estrondo, que gritou para exibir rachaduras profundas no paraíso. Então o que era perpendicular, ou quase firme e perpendicular à terra, ficou penso, oblíquo. O que fazer? Os técnicos da Defesa Civil, que atuam como enfermeiros da doença avançada, avaliaram o dano e concluíram, “sem dúvida, vai cair”. E tomaram a justa medida de providenciar caminhões de mudanças para os que possuíam alguma família de abrigo um pouco mais sólido.   

Depois, o que começou em um bloco de estrondo se alastrou por todo o Residencial Eldorado. Então a Prefeitura do Recife decidiu pela retirada dos moradores de todos os blocos dourados de Água Fria, ou do Arruda, na Rua da Regeneração (o nome é esse mesmo), por conta do risco de desabamento de todos os prédios. Daria uma comédia se o assunto não fosse trágico. Os administradores públicos atuam como bombeiros sem mangueira, dotados apenas  da boa vontade em conjunturas e sociedades em fogo. Jogam água em um incêndio aqui, ele rebenta em outro. A população pede providências. O prefeito vai à comunidade, sorri, conversa, anota, dá ordens e sai declarando que o governo está ao lado dos sem teto, enquanto a ganância do capital se alastra e prospera. Mas o governo está a seu lado.

Então vem o mais comovente. Os ex-donos de apartamentos comprados em sacrificadas economias, que decoraram suas paredes com quadros, cores e pensavam ali estar em morada que atravessasse os tempos como herança para os filhos e netos, e que, por outro lado, julgavam-se diferentes dos que nada têm lá nas favelas, então vem o mais deprimente, para usar a palavra mais precisa. Os ex-donos fazem protestos com apitos e cartazes cuja maior reivindicação é um auxílio-aluguel. Ou auxílio-moradia. Pois estão sem nada, mas ainda têm direitos, pelo menos o da miséria de uma ajuda municipal. E a construtora, a criminosa? Dizem que ela faliu, deixando como legado a falência para os que ansiavam morar nos apartamentos do Eldorado.

No final, houve à sua maneira o que descobri no romance O filho renegado de Deus:

“Ali, a casa possuía um valor de vida, sonho e morte.... É de se notar que havia uma profunda e indecifrável ironia nos nomes que em tudo cercavam aquela gente. A fieira, ou enfileirado correr de quartos, era chamada de Vila Alegria. A estreita faixa onde passavam pessoas em fila, o beco, era Rua do Éden, que de um lado saía para a Rua Esperança.... No entanto, esse aluvião irônico, tamanha era a sua riqueza e impacto, não era então percebido. Talvez como um choque, uma descarga de altíssima voltagem, que abalasse e ferisse tão rápido e forte, que deixava a impressão de destruir sem dor a vida. Assim, mesmo que corra o risco de não ser maturado, digerido no espírito de quem lê estas linhas, acrescento que havia em torno da Vila Alegria uma Vila Felicidade, uma Rua Alegre, mais a Rua das Moças, e uma Rua dos Sete Pecados, que não distava da Rua da Regeneração”.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

    

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