Rádio miolo
* Por
Marcelo Sguassábia
Independentemente
do que você esteja pensando agora, por trás desse pensamento tem uma
musiquinha, não tem? De pano de fundo, como quem não quer nada. Às vezes uma,
depois outra. Tem dias em que rola uma faixa só, teimosamente. Você até quer
passar pra outra, mas o cérebro não deixa. O programador da Sinapse FM resolveu
que aquele é o dia daquela música, e não há jabá que o faça mudar de idéia.
Ocorre também da
música não ter nada a ver com você, muito menos com seu estado de espírito
naquela hora. Mas gruda como chiclete nos neurônios. É quando você se pega
cantarolando o prefixo do Programa da Xuxa, sem saber por que cargas d’água, no
meio de uma reunião da empresa.
Meu DJ mental é um
cara eclético, mas acima de tudo beatlemaníaco. Assumido e incorrigível.
Colocar Beatles no aparelho de som pra mim é redundância - as mais de duzentas
músicas deles eu assovio o tempo todo. É o que se pode chamar de original
soundtrack biológico. Tocou na entrada do meu casamento e quero que toque no
meu enterro, mesmo não estando mais lá pra escutar.
Acontece algo que
me deixa feliz e a Rádio Miolo ataca de “I want to hold your hand”. Se falta
coragem não falta “Hey Jude”, a fabulosa injeção de ânimo que o velho Macca fez
para o filho do John. Um momento de reflexão e tiro da cachola “Julia”,
“Because”, “Across the Universe”. Se quero meditar, a lavra do George Harrison
leva à Índia numa sentada, de preferência em posição de lótus.
Porém nem tudo é
Beatles, embora quase tudo seja. E de repente se abre o inesgotável baú dos
mineiros. Só de Beto Guedes tem pelo menos umas 20 músicas no hit parade
pessoal: “Tesouro da Juventude”, “Noite sem Luar”, “Sol de Primavera”, “Maria
Solidária”, não há o que ainda possa ser dito dessas coisas, são os profetas do
Aleijadinho em forma musical. Valem todo o ouro das Gerais.
Chico é a próxima
parada do dial. “Meus Caros Amigos”, com “O que será” e “Mulheres de Atenas”,
ou aquele outro disco com um Buarque pra lá do terceiro uísque, fotografado à
frente de uma samambaia, que tem “Cálice” e “Trocando em miúdos”. Em outra
estação, mas na mesma frequência, Caetano e o eterno espanto de “Bicho”,
“Jóia”, “Muito”, de um “Cinema Transcendental” que transcende “Qualquer Coisa”.
Trilhas de uma época em que não se falava de música de trabalho, exposição à
mídia, shows privê no Golden Room do Copa.
Vamos aos
clássicos. A Quarta balada de Chopin, alguns trechos de Tristão e Isolda, os
Brandenburgos de Bach, o concerto para piano de Rachmaninov. Tudo isso em
deliciosa ciranda no toca-discos interno. Vira e mexe esses monumentos
reaparecem, virando e mexendo comigo, tocando sem que seja preciso levantar da
cadeira e caçar o disco na estante.
O que acaba
acontecendo é que eu coloco pra tocar só os mais novos. O tido como
“diferente”, que vai surgindo. E ouço a fim, muito a fim de ser pego de
surpresa, arrebatado com algo demolidor. É pena, mas essa primeira audição
quase sempre acaba sendo a última.
Então volto ao meu
flash-back. Som na caixa craniana, graves e agudos equalizados. No repertório,
só as dez mais de todos os tempos. Sem correr o risco de incomodar o vizinho e
economizando energia elétrica.
* Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Uma alegria nostálgica, silenciosa no seu tema musical, algo melancólica. O passado quando vem na formas de música, dificilmente vem como festa. Mesmo as boas festas de ontem vêm embaladas numa alegria triste.Belíssimo texto!
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